Mestres da linha de sombra

Senhores da psique, os marinheiros Herman Melville e Joseph Conrad ainda têm muito a ensinar aos leitores de hoje
Ilustração: Osvalter
01/03/2006

No livro tão bom quanto pouco citado que é Literature and western man (na Parte V, em que trata dos “modernos”), J. B. Priestley introduz assim a abordagem da obra de Joseph Conrad:

A nova crítica do após-guerra, excitada a respeito de Joyce, Proust, Kafka, esqueceu-se de Conrad, embora haja indícios, agora, quando o Simbolismo em ficção está sendo tão elogiado (e tem sido retardadamente descoberto nele), de que receberá ainda a atenção e o reconhecimento que bem merece. Seja como for, reconheçamos que o autor de Lord Jim é um daqueles escritores cuja importância achamos difícil estimar, exatamente porque em alguma época de nossas vidas somos completamente fascinados por eles, e, depois, porque já recebemos tanto deles, que perdemos, mais tarde, um pouco do primeiro encantamento.

Ao ser solicitado, pelos editores de Rascunho, para escrever sobre o autor de Arrow of gold, a fim de assinalar-se, aqui, o auspicioso lançamento da obra conradiana completa, pela Editora Revan (em tradução de Julieta Cupertino), foram essas palavras de Priestley que vieram, de imediato, à minha memória de leitor ainda encantado e de escritor em dívida para com o polonês-anglicanizado que vemos freqüentemente louvado como um dos “mais altos mestres da língua inglesa”. Ora, sem dúvida que ele o é — tendo para isso lutado com o idioma como um marujo solitário lutando contra algum tufão furioso dos mares da China —, porém o elogio também soa como um clichê preguiçoso e só em parte verdadeiro.

Leitores monoglotas podem aceitar, sem maiores questionamentos, tal idéia feita e repetida (principalmente no Brasil, onde muitos tiveram a sorte de entrar em contato com Lord Jim, Victory e outros livros por intermédio das excelentes traduções de Mario Quintana e Leonel Vallandro para a velha Coleção Nobel, da antiga editora Globo, de Porto Alegre). Conrad tornou-se, sim, um dos grandes manejadores do idioma para ele estrangeiro, o “inglês de ouro” dos elizabetanos, aprendido em livros de poesia e ficção da lavra de ingleses da gema — lidos primeiramente no tombadilho de navios, ao longo da travessia dos oceanos, e, depois, placidamente sentado no seu escritório de ex-lobo do mar contemplando a linha de sombra do horizonte, após a aposentadoria e o casamento com a insossa Jessie Conrad (autora de uma biografia pífia do marido, que a gordota Jessie nunca entendeu muito bem). E se essa “luta” do escritor de origem eslava com a orgulhosa língua de Shakespeare — poeta que ele amava — realmente se deu, nem por isso merecia virar um dos chavões recorrentes da literatura, citados sempre que alguém se refere ao próprio Conrad ou a Nabokov e outros que também sofreram forte influência francesa, espalhada até Varsóvia e Moscou, onde se conversava na língua musical de Villon, nos salões elegantes freqüentados pelos Turgueniev (por exemplo) divididos entre as duas Europas.

Essa influência se faz presente no espírito do jovem polonês Józef Teodor Konrad Nalecz Korzaniowski, nascido em 3 de dezembro de 1857, em Berdiachev, na Ucrânia Polonesa, herdeiro de um fazendeiro com certas pretensões literárias e ousada participação em movimentos de libertação da pátria que lhe custaram ser exilado no norte da Rússia.

Por esse motivo, o menino Józef seria enviado, com nove anos, para a casa de um tio, na Cracóvia, cheia de livros no idioma do país subjugado e no francês que ainda respirava, longinquamente, liberdade, igualdade e fraternidade. Por isso é que mais uma vez o agudo Priestley observa: “Há ocasiões em que a prosa de Conrad parece uma tradução do francês, enquanto em temperamento e visão é claro que ele está mais perto da Europa oriental do que da Ocidental”.

Nada mais verdadeiro. Quem tenha experiência (e ouvido) de tradutor — principalmente do inglês — percebe isso nos três primeiros romances publicados em perfeita seqüência: Almayer’s folly (1895), An outcast of the islands (1896) e The nigger of the Narcissus — A tale of the sea (1897). Precisaria chegar o ano de sua primeira obra-prima (Lord Jim, de 1900), para se ler um Conrad soando quase totalmente “inglês” no tom e no estilo um pouco pomposo, a tornear as frases com a sua hesitação calculada. Isso veio a acontecer (não foi do dia para a noite, é claro) quando o ex-capitão da marinha mercante já contava alguns anos baseado em terra firme e já introduzido no mundo das letras por John Galsworthy. Este fora passageiro numa das últimas viagens do sisudo comandante, e merece a justiça de se dizer que sobrevive, hoje, na crônica literária um pouco pela ajuda que pôde prestar ao seu anfitrião. Ganhador do Nobel (láurea internacional que se deu ao luxo de ignorar a obra de Joseph), John aceitara ler um original para o qual o tímido capitão solicitara a sua “benevolente crítica”, etc., e, ao fim da leitura, mostrar-se-ia inteiramente fascinado pelo talento do autor novato e ainda inseguro com relação a Almayer’s folly, sua primeira produção dada por concluída, após inúmeras versões jogadas ao mar dos tubarões.

Preconceitos
O resto já se tornou história dos primórdios da moderna literatura: o escritor experimentado, pasmo com a qualidade do inédito do “amador”, diz que o livro era melhor do que qualquer coisa que ele próprio já havia escrito, e que, portanto, merecia ser de imediato encaminhado para alguma das casas editoras capazes de acatar uma recomendação sua.

E foi o que aconteceu. Publicados sem hesitação, os romances do ex-marinheiro das zonas tropicais (um homem elegante e circunspecto, de barba em ponta e olhos apertados para enxergar longe), iriam se tornar, com ao passar dos anos, um sucesso invejado — inclusive por seu descobridor — “graças ao caráter exótico da sua obra inicial, ao sopro de peripécia e poesia marítima” (nas palavras de Antonio Cândido). Entre os invejosos, é impossível não citar o hoje esquecido George Moore (ainda mais esquecido, atualmente, do que John Galswosthy), cuja contribuição à crítica das primeiras obra de Conrad foi classificá-lo de “sub-Henry James”. Nada mais absurdo: em James, encontramos muitas e admiráveis qualidades, porém não se trafega no chronical looping como método de construção da narrativa, nem temos as “consciências intermediárias” usadas por Conrad como uma espécie de espelho que ao mesmo autentica e falseia os relatos partidos, os muitos pedaços de realidade que, na verdade, não se colam num todo, nem configuram uma única visão dos caracteres, das motivações e dos próprios acontecimentos descritos numa espécie de zona nevoenta de terraços evocativos das fumaças de ilhas distantes, entre sóis de olhar duro e braços de rio internados em florestas equatoriais.

E o sucesso na nova profissão viria trazer mais do que inveja, no rol dos prejuicios literários transformados, literalmente, em quase preconceitos contra o novo autor. Conrad passaria a ser visto apenas como um “romancista do mar”, um novelista do exótico, um narrador de “casos” remotos e ações estranhas acontecidas no mínimo em ligação com aquele meio que Herman Melville já definira: “Certamente no mar é possível que haja espaço livre suficiente para nele dizer-se a verdade”…

Joseph Conrad não precisava do mar — e das proximidades de estranhamento próximas dele — senão para perseguir as linhas de sombra dos homens navegando em cascas frágeis sobre o dorso do elemento revelador que são os oceanos da terra de ninguém, naquele limbo no qual melhor se afia o seu olhar. Seja no meio do mar primordial — que “sobrevive a tudo” —, seja no curso de um rio que leve direto para o coração da treva (tradutores!: revertam o plural sem força que, em português, enfraquece Heart of darkness), sua literatura nunca foi de evasão, seu interesse jamais circunscreveu-se ao visível, muito pelo contrário: Conrad deveria ser o romancista amado dos psicanalistas, pelas descidas ao inferno do eu que pontuam algumas das suas obras-primas (escreveu três, pelo menos) equivocadamente tomadas até como leitura juvenil, em edições condensadas como fizeram também com o rochedo selvagem que é Moby Dick, do já citado Melville (o autor mais próximo do pessimista de Victoryou o contrário?).

Dois marujos
Eis aí um paralelo que faltou ser feito, talvez por Edmund Wilson ou Carl Van Doren. Um estudo de Melville e de Conrad resta por lançar luz sobre identidades e dessemelhanças desses dois marinheiros que lançaram mão do romance como um periscópio na bruma, focado no homem velado pela névoa do não-dito (e, aqui e ali, do inaudito). Em Catástrofe e sobrevivência, o nosso Antonio Cândido consegue escrever quase 40 páginas de ensaio sobre o autor de Nostromo, sem citar uma única vez o escritor do sombrio Pierre — dois artistas aparentados mais do que pela herança mais ou menos maldita das viagens para dentro: descrer da raça ameaçada de extinção apenas com um gemido meio inaudível, enquanto o sobrevivente final talvez faça apenas um gesto na direção de borboletas mortas.

No momento em que deve se saudar, com entusiasmo, o aparecimento (afinal!) da tradução da obra completa de Conrad, no Brasil, também aproveito para clamar pela falta de iniciativa igual com relação ao conjunto magnífico dos romances, das novelas e dos contos de Melville, mestre escassamente traduzido entre nós. Creio que somente o monumental Moby Dick (em tradução primorosa de Rachel de Queiroz), o sinistro Billy Budd, o “kafkaniano” — antes de Kafka — conto, supremamente inquietante, que é Bartleby, o inaugural Typee e mais algumas narrativas curtas aparecidas em antologias de contos americanos estejam ao alcance do leitor, no Brasil. Uma novela estranha como Pierre resta desconhecida, em português, com toda a ambigüidade da relação do personagem-título com a irmã, em clima entre gótico e claustrofóbico no qual virá a se aperfeiçoar, bem mais tarde, o mestre do sul profundo William Faulkner (na literatura americana, uma rica continuidade geracional faz Poe, Melville, Hawthorne e Whitman radicarem nos espíritos dos poetas e ficcionistas surgidos no século seguinte — diferentemente do Brasil onde cada um parece tentar o número difícil de uma “originalidade” desentranhada e, muitas vezes, desastrada).

Senhores da zona crepuscular da psique, Herman Melville e Joseph Conrad têm muito a ensinar, ainda, aos leitores de hoje, tanto tempo após o surgimento de suas obras, com um intervalo de meio século entre Typee editado em Londres (em 1846) e Almayer’s folly, surgido na mesma capital do grande romance, duas estréias radicadas em épocas diferentes, porém aproximadas pelo evoluir posterior desses autores de situações-limite (Conrad mais do que Melville) irmanados pela paixão da autoconfrontação de seus personagens em cenários longínquos, distantes do conforto que amacia a alma (em Melville ainda mais do que em Conrad). Desde então, os melhores talentos do romance pós-moderno não têm feito mais do que trabalhar nos veios da mina aberta em Nostromo, seguindo ainda no curso da perseguição feroz da baleia branca da alma (essa velha palavra).

Joseph Conrad
Nasceu em Berdiachev, na Ucrânia Polonesa, em 1857. Filho de poloneses, viveu na Rússia, na França e na Inglaterra. Depois de se tornar cidadão inglês, ingressou na marinha mercante britânica. Escreveu Lord Jim, A linha de sombra e O coração das trevas, entre vários outros clássicos. Morreu em 1924.
Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho