A calma dos dias não é um livro tranquilo. Os questionamentos que propõe fazem de um balançar vespertino numa rede de varanda uma noite de tempestade mental. Está logo na capa, que nos detalhes não contradiz o conteúdo: de dentro da ruína, o mar cheio de carneirinhos indica agitação, ainda que a cena da foto sugira isolamento, silêncio e azul. O título então é ironia? Pode ser, mas algumas pistas nele indicam que não, que é mais um desejo, uma esperança.
É o segundo livro de prosa de Rodrigo Naves. O primeiro, como explica na apresentação, é O filantropo, de 1998. Conta que nada foi mais gratificante para ele que os comentários sobre essa obra de estreia na ficção, por isso a nova investida. Mas A calma dos dias não é apenas ficção. É uma mistura que dificulta definições. Tem minicontos, tem crônicas, tem ensaios, tem pensamentos em texto que não se encaixam bem em gêneros. Para que os limites mesmo?
No caso desse livro é importante para o leitor saber que Naves é um reconhecido historiador e crítico de arte. Isso porque alguns dos textos tratam frontalmente do assunto — sobre Nuno Ramos, Willys de Castro, Mira Schendel e Guignard —, ora como ensaio, ora como homenagem. Formalismo, Ainda sobre arte e vida e Forma e conteúdo são outros textos que tratam de arte, desta vez com conceitos: “A forma artística tira sua força de momentos que experimentamos de maneira falha na realidade (…) Por isso a arte nos faz sentir melhores do que somos (…)”.
Pensamentos sobre arte provavelmente estão por todo lado e, de acordo com o nível de conhecimento, o leitor pode pescar mais referências. Alguns aparecem mais diretamente, como dentro do belo texto que homenageia José Paulo Paes — o mais longo dessa obra, com onze páginas. Nele, pode-se conhecer mais de perto, pelo olhar de um amigo, esse homem importante para a literatura brasileira, tradutor de títulos fundamentais, autor de poemas que devem fazer parte de qualquer antologia de melhores do século 20 e que, apesar disso, fugia da própria grandiosidade. Aí que Naves pinça, no meio dessa crônica sobre o amigo Paes, uma passagem do filósofo Merleau-Ponty sobre o pintor Cézanne:
O melhor de um artista deve ser buscado em sua obra. É nela que as incapacidades pessoais de alguma forma se redimem, que os nossos limites fazem vislumbrar algo maior do que se conseguiu ser, e por isso as obras precisam ganhar a luz do dia. Neuróticos renitentes deixaram trabalhos admiráveis. Cézanne, por exemplo. São os pecadores que entendem de salvação. Não os carolas.
O livro vai se equilibrando entre ficção e não ficção, sem placa nenhuma que indique, no entanto, em que terreno o leitor está pisando. Entre os que mais se definem como contos, pela forma, pela escolha de outras vozes narrativas, percebe-se que o texto é construído de maneira mais fluida, com frases curtas, palavras cotidianas, deixando o desafio do entendimento para a metáfora que o todo representa. Nos ensaios, as explicações são menos concisas — pois são textos de natureza diferente, convivendo lado a lado.
Mas não se trata de uma mistura maluca. Há ingredientes em comum ao longo do livro, questões que são abordadas repetidas vezes, de formas diferentes. Ou seja, não é o gênero que dá unidade à obra. Fazer relações é o esporte que se apresenta ao leitor.
Um ponto de partida para compreender essa perspectiva pode ser o texto Objetividade, que se comporta como um miniconto, escrito em terceira pessoa, e começa com a seguinte frase: “Ele acreditava apenas nos sentimentos”. Depois: “Não conseguia avaliar as pessoas além daquilo que revelavam em sua conduta. Sabia que seus critérios limitavam sua visão do mundo”. Dez páginas adiante, o tema é atacado de outro jeito, no texto Ao relento, com tom autobiográfico (pode bem não ser): “Experimento o mundo pelo lado de fora. São-me estranhos intenções, processos inconscientes, maquinações de qualquer ordem”. E no mesmo texto: “Acredito no que me transmitem os sentidos”. Curiosidade inútil, ainda sim uma curiosidade: qual texto teria sido escrito primeiro? Um realmente nasceu do outro? Ou essas questões simplesmente estariam tão enraizadas na mente do autor que borbulham pelos dedos quase incontrolavelmente?
Controle/descontrole é uma questão nesse livro.
Os primeiros cinco textos são minicontos que lidam com o tema. Logo em Declaração, o narrador em primeira pessoa coloca escolhas feitas na maturidade em busca de vida melhor. Em seguida, Pânico traz as dúvidas que quase nunca abandonam as decisões na vida. Em Autocontrole, o narrador aposta que a estética pode provocar mudança interior:
Em certos dias, visto uma expressão serena. É o que faço com mais frequência. Sinto aos poucos minhas energias alcançar um ponto de equilíbrio, como se sedimentassem. Esse movimento de decantação produz em mim um estado de repouso que pede continuidade e zelo.
É o total controle do próprio estado de espírito. Mas no mesmo texto isso é relativizado, quando revela o fracasso do método ao evocar a alegria, que estaria ligada talvez ao acaso, ao descontrole. E essa ideia de acaso volta no texto seguinte, O urubu e a cidade, que retrata o voo entregue ao vento da ave, sobre a urbe feita de limites e direções obrigatórias. Essa sequência se fecha com Teoria do cão, com acasos e escolhas se confundindo na vida do personagem que primeiro tenta socorrer um cão de rua e acaba sendo atraído por ele para a vida nas ruas (ao vento?). Uma dúvida fica por conta do texto que vem a seguir desse, Vontade de potência, que soa como uma explicação ao que já estava posto ao leitor.
O exterior, a casca das coisas, do mundo, aparece algumas vezes como o possível a ser alcançado e analisado pelos humanos. Enquanto fala-se tanto do “interior” das pessoas ou no “místico”, no “sobrenatural”, as diversas vozes que compõem esse livro se aprofundam no que é aparente. Com essa ideia conversam as crônicas e ensaios sobre Michael Jackson, Gisele Bündchen e um texto chamado Maritacas, em que analisa o modo de vestir das mulheres, o modo de andar de acordo com saltos, saias e outros itens da moda.
A ideia do exterior que pode transformar o interior (e a dúvida a respeito) volta no texto sobre o astro pop: “No seu autorretrato encarnado, Michael Jackson quis planejar sua espiritualidade a partir da determinação de suas feições. É difícil conceber uma aposta mais arriscada. Olhar no espelho e não saber quem reflete e quem é refletido”.
Sorriso
Há momentos de calmaria verdadeira, momentos de sorrir em A calma dos dias. Por exemplo em Nuca, uma crônica cheia de lirismo: “Sou um homem cansado de volumes. Quero-lhes a nuca”. Também o poema Queda, estrofe única em quatro pequeníssimos versos.
É de arrancar sorriso de admiração também diversas primeiras frases dos textos de Rodrigo Naves. É uma característica marcante de sua habilidade com as palavras — mais do que os títulos, são convidativas portas de entrada para a leitura: “Decidi ser imortal hoje à tarde, enquanto molhava as plantas do jardim” (Imortalidade); “Experimento o mundo pelo lado de fora” (Ao relento); “Saio de casa todas as manhãs equilibrando o mundo na ponta do nariz” (Foca); “Tenho saudade de um odor que tive e que ficou para trás” (Profumo d’uomo).
A sequência final revela mais sobre escolhas e acasos que fazem a vida, como forças opostas às vezes, em Alzheimer, Coragem e Sexo. Assis, o último texto, talvez seja o que melhor traduza título e capa de A calma dos dias. Mas esse não será transcrito aqui. É necessário percorrer o livro.