Mergulhar e emergir

"Breve ato de descascar laranjas", de Bianca Monteiro Garcia, revela pulso e consciência de composição
Bianca Monteiro Garcia, autora de “Breve ato de descascar laranjas” Foto: Beatriz Menezes
01/01/2025

A ausência do pai é o abalo sísmico que leva ao mergulho que só vai aprofundando no decorrer do Breve ato de descascar laranjas, de Bianca Monteiro Garcia. O livro acaba ganhar o prêmio Jabuti 2024 na categoria poeta estreante.

Esse mergulho feito na voz da poeta nos leva para o mais profundo do mundo. Literalmente, ou melhor, geologicamente, vamos com ela para as camadas mais profundas da terra, que podem, claro, ser também as camadas mais profundas de quem elabora a dor e a falta.

O primeiro poema, endereçado ao pai, se oferece feito missiva:

pai,
desde que partiu
me vejo incapaz de
encarar
espelhos

desvio os olhos
ao perceber que
vesti seu rosto

O que parte não é apenas o pai, sabemos, é também o espelho que mantinha algum rosto no lugar. Agora, sem espelho, não há saída que não passe pela elaboração da própria imagem. Esse parece ser o esforço das duas primeiras partes do livro, pois na segunda a poeta tratará da ausência da avó.

O gesto escolhido então consiste nessa sondagem que vai para o fundo da terra e de si. A obra está dividida em descontinuidade de mohorovičić, crosta, manto e núcleo (camadas de estruturação da terra). O start é uma fratura, que em ciência representa, justamente por meio da descontinuação, um elo entre a superfície e a profundidade. Esse arranjo do livro revela a complexidade do mergulho, pois não se vai diretamente ao centro da terra, ou de si. Começa-se já do intervalo (mohorovičić), da falta, da ausência, volta-se para a superfície, a face do pai, da vó e de si, para depois se aprofundar novamente, dessa vez em direção ao manto e, enfim, ao núcleo.

Fluxo de sentido
O que descontinua é, em verdade, o reconhecimento de que aquilo que acreditávamos estável, o que nos liga à base, também é uma impermanência, um fluxo de sentido que não cessa de se refazer. Diante disso e da saudade, o desespero para respirar nos leva para mais próximo da superfície, a crosta, onde, no caso deste livro, se encontra a vó. Mas também para onde não vamos sem antes rearranjar a casa:

muita coisa morre quando morre uma pessoa
a casa morre
fica a carcaça
(…)
muita coisa morre quando morre uma pessoa
a casa habita outras memórias
e o que resta da família habita outras casas
uma moradia fincada no limbo.

Fazer da carcaça que fica uma casa suportável. Uma casa em que se pode novamente constituir memórias, cercar de sentido a obra acabada, o pai, para conhecer melhor a si mesma. Refazer o rosto, a superfície em outros espelhos. Juntar cacos da face do pai em mosaico com a face da vó. Revirar a própria face até entender, ou melhor, saber da morte. E saber também que qualquer tentativa de fixação de residência, ou de identidade, é habitar um limbo.

Bianca Monteiro Garcia faz dessa escrita de dor o movimento lírico de traçar contornos possíveis e ordinários em direção ao profundo desconhecido, o núcleo. Da terra? Não, de si. Mas se engana quem pensa encontrar um livro duro, pesado, de morte. Antes, é um livro de elaboração e articulação das coisas mundanas e suas perdas.

A imagem que intitula o livro, por exemplo, vem do (f)ato curioso de descascar laranjas em estado de sonambulismo, como fazia o pai. Mas o mesmo ato se memoriza na explicação que o pai dá sobre a rotação da terra. Evidência também de um pai presente que faz doer ainda mais a falta.

O ordinário da vida e da poesia de Bianca aparece com força na crosta, ou melhor, na parte em que a falta é a avó. Em um poema prosaico singelo e bonito, encontramos a tentativa de preparar o prato de batata-doce que aprendeu com a vó, tentativa frustrada:

elas murcharam, queimaram e não douraram. estavam cruas por dentro e duras por fora. eu sei fazer batata-doce. aprendi com quem muito tinha o que ensinar. você sempre me disse que é preciso boa vontade para fazer comida gostosa. é isso, então!

as batatas perceberam no meu choro tímido a falta do som que saia do rádio e seu balbucio tímido…

A tentativa de se conectar com a vó por meio do preparo de uma comida, seguida de uma frustração, revela não apenas que a poeta ainda não esteja pronta para encarar de novo o espelho, mas evidencia também a tentativa de aproximação com a ancestre. Preparar uma comida juntas, aprender a receita e o rito deram espessura a uma vivência temporal que fortaleceu a relação. O foco da percepção da cena deslocado para as batatas (elemento fundamental em idiossincrasias que se fiam na ancestralidade) revela a experiência não mais possível, dado que esta, a experiência, se dava na relação, na vivência com o que não está mais posto em presença física. Talvez as batatas voltem a ficar douradas quando quem ficou, o eu-lírico, aprimorar sua evocação ancestral. Quando o espelho for recomposto para rostos e memórias.

Mergulho para dentro de si
O livro parece cindido ao meio. A terceira e a quarta parte vão sondar o mergulho para dentro de si em episódios de uma internação em dois níveis. Cenas do tempo vivido num hospital psiquiátrico e de pandemia. Nessa parte, já estamos indo do manto ao núcleo. A patologia é evocada, mas não apenas como culto à melancolia, antes, como forma de se deixar arrebatar pela experiência artística (outro sentido filosófico para o conceito de pathos).

Em cenas patéticas (etimologia também em pathos), Bianca articula, sem abrandamento e sem enaltecimento da dor, modos de recompor as perdas e de encarar o desconhecido.

A casa descascada da primeira parte volta no baldio do quarto do hospital, “a cama de solteiro empurra a parede lilás/ do meu quarto descascado” (…) “e da madrugada mais fria do ano/ improviso num colchão sem cama/ agora o desejo de um quarto baldio/ o desejo de um mundo-casulo”. Da casa ao quarto, da cama ao colchão, vemos o mundo da poeta se encasulando. Vemos o mergulho no fundo de si, tendo a ver com os limites da fisiologia e com a recomposição das memórias.

O baldio do quarto, na última parte, quando se chega ao núcleo, se expande ao mundo. Tempo de pandemia.

Paradoxalmente, como todo exercício de compreensão de si, no encasulamento articulado pelos poemas, na aproximação do mais fundo do mundo, do núcleo da terra, é que a força da rememoração da poeta começa a se voltar para a amplidão. Afinal, depois da falta do pai e da avó e, podemos dizer, de si, a imposição do isolamento compulsório promovido pela pandemia acaba materializando outra falta, a do céu, “este céu que faz falta no peso do corpo”.

A percepção dessa outra falta, a do céu, marca uma virada final no livro de Bianca. Desse verso em diante, que aparece no poema de abertura da última parte (núcleo), o livro ganha novo respiro. Um poema de temática rural, outro que chama para o reaprendizado do corpo e dos modos de lidar com as doenças, um que retoma objetos da infância, outro que fala de futuro. Porém tudo sem falsas ilusões, sem romantismo ou mistificação de uma bela vida; aliás tudo ainda permeado de melancolia. No entanto, uma melancolia de recomposição. Justo quando se chega no mais profundo dos níveis da terra e de si, o livro deixa novamente respirar.

Como ao final de Claro enigma, de Drummond, parece surgir uma brecha de céu azul. Mas, também como em Drummond, esse céu que abre não promete mundo melhor. Apenas devolve o sujeito ao devir-mundo, sem “troféu na linha de chegada”.

Como é de se esperar de um livro de estreia, Bianca não deixa de homenagear todo um repertório que a formou. No entanto, ela mobiliza esse repertório na sondagem de si, dando a entender que o que torna possível voltar a olhar-se no espelho é o quanto do outro carregamos em nós.

Breve ato de descascar laranjas
Bianca Monteiro Garcia
Macabéa e 7Letras
132 págs.
Bianca Monteiro Garcia
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1994. É editora da Macabéa Edições e da Taioba Publicações. Formada em Letras e especialista em Literatura Brasileira pela UERJ. É revisora, professora e pesquisadora. Breve ato de descascar laranjas é seu livro de estreia.
Cristiano de Sales

É poeta e professor de literatura brasileira da UTFPR. Autor de De silêncios e demoras (2020) e Urgências que não são (2021).

Rascunho