Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres. […] Para saciarem a sua lascívia, copulam até mesmo com os demônios. […] E abençoado seja o Altíssimo, que até agora tem preservado o sexo masculino de crime tão hediondo: como Ele veio ao mundo e sofreu por nós, deu-nos, a nós homens, esse privilégio. (Malleus maleficarum — Heinrich Kramer e James Sprenger)
Em entrevista divulgada em janeiro de 2006, Salman Rushdie afirmou que é o medo da sexualidade feminina que leva ao terrorismo islâmico. Para o escritor, sem levar em conta a culpa ou a salvação, o homem islâmico concede grande importância à honra e à ameaça de perdê-la. Abri este texto com uma citação do final do século 15, de um manual escrito por dominicanos, ou seja, pelos braços “purificadores” do Santo Ofício, que, em fins do medievo ocidental, também viveu atormentado pela sexualidade feminina, ameaçada por fundamentalismos de qualquer espécie. Mas, na verdade, todo esse movimento que engloba a mulher é resultado de um interdito maior: a restrição universal da liberdade sexual.
O livro Intimidades, organizado por Luisa Coelho, é composto por dez contos eróticos escritos por mulheres. O objetivo da coletânea é bastante racional e não há nada mais oposto a Eros que o trabalho meticuloso que nasce sobre o império da razão. Na apresentação, talvez longa demais, Luisa Coelho afirma que o objetivo da obra é “contribuir para divulgação, simultaneamente no Brasil e em Portugal, da literatura contemporânea de língua portuguesa dos diferentes países”. Lemos cinco escritoras brasileiras e cinco portuguesas ordenadas alfabeticamente, como uma “pequena deferência civilizada” em nome da preservação do patrimônio cultural. Tudo é muito bem intencionado. Luisa explica a autoria feminina, a opção por contos e o tema, enfim. Depois, analisa conceitos — pornografia e erotismo — tece relações entre as obras e ainda sintetiza as tramas.
As Intimidades de Luisa e companhia e sua análise do erotismo e da pornografia me fizeram visitar um texto maravilho chamado O erotismo, de Georges Bataille. Nele, não li pornografia, a palavra não está lá, porque o erotismo é a transgressão, a violação da individualidade descontínua, desequilíbrio, violência e afirmação da vida, embora não seja estranho à morte. O obsceno não está afastado, é uma forma significativa, mesmo que o pescoço vire o rosto, o horror reforça a atração e a vontade de olhar.
Luisa Coelho escreve que, no discurso pornográfico, o objetivo é produzir excitação, que o “ato sexual [fica] aparente” e que é “apenas a representação de uma pulsão primária a-subjetiva, imbuída de uma violência subjacente”, etc. e tal. Não seriam esses critérios de moralização do erótico? A única diferença entre o erotismo do homem e da mulher e a sexualidade animal é a vida interior, segundo Bataille. Desequilíbrio e ameaça sempre há, mas o animal ignora isso. O erotismo é um segredo que a linguagem conspurca, porque o transforma em coisa. Como a expressão do homem civilizado pode dizer a verdade de uma violência tão silenciosa ou representá-la sem mentir? Esse é o desafio do conto erótico ou pornográfico, se quiserem insistir na distinção.
“O homem desprendeu-se da animalidade primeira […] ao trabalhar, ao compreender que morreria e ao passar da sexualidade sem pudor para a sexualidade vergonhosa, da qual o erotismo resultou”, escreveu Bataille. Na verdade, as interdições nasceram da necessidade de evitar o dispêndio da energia comprometida com as tarefas guiadas pela razão, no mundo profano. Mas a natureza é dispendiosa em seu esplendor, portanto, enquanto mobilizamos proibições, sempre há rasgos que o desejo abre para a comunhão com o sagrado, e o erotismo está nesse mundo sagrado, na vida interior de homens e mulheres. Foi só depois de o sagrado ter sido dividido em bem e mal que o erotismo foi varrido para o lado do mal, junto com outros desperdícios, excrescências e imundices que nos causam horror.
Quatro obras
Não há como falar em erotismo sem falar em interdição e transgressão, seu conhecimento é mediado por essa experiência contraditória. Por isso, não concordo com Luisa Coelho quando ela separa as interdições para as escritoras portuguesas e as transgressões para as brasileiras. Como separar um movimento que está em nós, dependente das duas flexões?
A minha digressão também é uma forma de mentir, a expressão pensada e racional trai o silêncio do transporte erótico. É a hora dos contos. Em Intimidades, há quatro obras maravilhosas e, por falta de espaço, só sobre elas escreverei: Animal, de Ana Miranda; O conto do nadador, de Lídia Jorge; Mónica, de Maria Teresa Horta; e O segredo de chiffon, de Rita Ferro. Ana Miranda é a única brasileira dessa minha lista, ressalto o traço de nacionalidade para ficar em harmonia com as intenções do projeto unicamente.
O conto de Ana Miranda é um passeio pelo corpo, antes ou depois do transporte da “pequena morte”. A narradora revela os desejos do amante — “ele me ama, […] ele quer que eu seja […], quer as minhas veias […]”, todos os desejos dele se ligam à posse absoluta, que brinca de decidir o fim. “Aqui você morreria em apenas três minutos e toca na veia do meu pescoço.” Brincar não é excessivo, pois o corpo dela é “brinquedo”. Mas que o leitor não ache sadicamente que brincar de morrer é pouco, porque “o amor não é o desejo de perder, mas o de viver no medo de sua possível perda” (Bataille). A posse do corpo tomada pelo passeio dos dedos encena literalmente o sagrado, de que falei antes — “Teu corpo é minha igreja”. Para o cristão, a continuidade é o encontro com Deus, ainda que esse encontro prometa a eternidade de almas descontínuas. No conto, a igreja é apenas o lugar mais reconhecível culturalmente do sagrado, onde a continuidade, a fusão, é possível. Depois da igreja, o corpo é a casa, onde é possível sentir-se só. Assim, Ana Miranda encena o caminho da continuidade, nossa ambição secreta, e da descontinuidade, nossa realidade.
O conto do nadador, de Lídia Jorge, é o melhor do livro, sem dúvida. Resgata a memória de um homem que talvez seja o personagem que, em um longínquo verão de 55, surpreendeu e participou da transgressão de cinco meninas: uma que “quase” sabia nadar, a única nomeada, Delfina, não por acaso; uma que tinha um sinal na virilha; outra que tricotava; outra que escrevia cartas; e uma que tinha pulseiras nas quatro extremidades do corpo, como algemas. Seus banhos matinais, bem vigiados, eram um espetáculo para homens distantes por muitas razões. Gritinhos, que dissimulavam o quente ou o frio da água; e toques — “acotovelavam-se, agarravam-se, […] Batiam-se” — quase um estado de pletora que vivia a prévia da continuidade apenas no encontro rápido com o mar. Um dia, as “pobrezinhas”, “fechadas” e “limitadas”, ambicionaram “passear junto ao Oceano, até não poder mais”. Sua transgressão é apreciada pela voz narrativa: “faziam muito bem”. Ao chegarem a um sítio convidativo e afastado o suficiente da vigilância, entraram de combinação e viraram o rosto ao interdito da nudez, viam-se na transparência, mas ninguém as via… No dia seguinte, o banho foi surpreendido por um homem, enrolado em uma toalha vermelha. Medo dele? No dia seguinte, nova resolução, a nudez completa!
Nenhuma transgressão ignora o interdito, até dele precisa para se constituir. Tudo no conto revela e esconde o desejo. Cada palavra mente e jura o que virá. Quem propõe a nudez é justamente a menina com um sinal na virilha. Mas, em um dia especial, em que a toalha está estendida no chão, ponte sobre a qual as meninas passam, Delfina nada para encontrar o homem. Ele também se aproxima e recua, afinal, ela “quase” sabia nadar… Mas o mar é um amante que ignora o despreparo — “de costas e de bruços, eram puxadas para dentro, e de dentro repelidas […] Descer, subir, beber água, inundar-se de água […] lutar contra a onda, entregar-se à onda”. Toda a descrição é a evidência clara do transporte erótico. Era Delfina a mais ameaçada, pois tinha chegado mais longe. De outro longe, as meninas assistiam a uma cena que embriagava, o homem da toalha vermelha toma a mais intrépida nos braços, tira-a do mar, beija-a, cobre-a… Pelos olhos das meninas só vemos a fusão, mas seu desejo esconde mal o fato de o homem estar salvando Delfina que, ao tentar entregar-se à possibilidade erótica, aproxima-se perigosamente da morte. As meninas custam a entender e só quando o homem as chama à razão pela linguagem verbal — “Suas levianas, suas estúpidas levianas!” —, elas entendem o acontecido.
O homem parte, mas como decidir a volta para o espaço das interdições? As meninas firmam um pacto para explicar o estado de Delfina, o demorado da hora e seu estado descomposto — “um homem perseguiu-nos, e nós, para salvarmos a nossa honra, tivemos de lutar […] Era pequeno, magro, enfezado. Cabelo ruço, olhos claros”. Descrição mais antagônica impossível, segredo preservado. O halo de morte está no desejo de Delfina, que não pode ser realizado porque ela “quase” sabia nadar, mas a ciência para novos e secretos transportes é aprendida.
O conto Mónica, de Maria Teresa Horta, é uma aventura esplendorosa da fusão dos seres descontínuos. A protagonista, que dá nome ao conto, decide pela sua sexualidade que torna o homem, Pedro, o ser que espera o instante do transbordamento. Mónica tem preferências, ela conquistou o amado, interrompeu o primeiro momento de transporte pelo atordoamento de um instante no elevador, promessa cumprida depois, entre loucura, histeria, perigo e sangue, outro interdito. Ouvia Gustav Mahler, aventura que adensava a sua descontinuidade porque descobria o abandono, para logo depois derrubar a soberania em amplexos extraordinários, onde o sagrado pulsa também em outra forma culturalmente bem reconhecível — “deparou com as asas abertas nas suas próprias costas”. É talvez o conto que, na coletânea, melhor representa a saborosa violação da individualidade.
Primeira encíclica
Menciono o ótimo O segredo de chiffon com uma ressalva malcriada: o final do conto é péssimo. Todo ele nasce de uma constatação que escapa aos pais de uma filha caçula — “Não interessa: a cama podia ser retardada, mas eu já era mulher!” (grifo meu). A narradora, anos depois, contempla um momento fundamental da sua vida, quando a sua explosão erótica mal contida pela indiferença dos pais transbordou na retidão de um amigo do pai, um professor dois anos mais velho que ele. Há nesse conto um dado pouco comum na coletânea, o humor, como quando a menina é descoberta na mentira da idade, abre a blusa e grita na frente do pai, que a humilhara com um apelido de infância, e do visitante — “Muito bem: tenho doze anos, mas já uso soutien!”. Depois do arroubo, que não deflagrou os pequenos ataques da menina, mas apenas os modificou, o pacto. Na volta à casa do amigo, o professor tenta um segredo ainda terno, oferta à sua admiradora um livro, ela retribui com a desordem que, embora disfarçada, no caso em questão, é uma forma de violência — “depois de lhe lançar os braços ao pescoço e de o beijar sem querer perto da boca, sussurrando-lhe […] Gosto de si por amor, sabia? Todos os dias o senhor vai ao meu quarto e faz-me festas no cabelo!”. Surpresa, vergonha e perigo. Ele escolhe o perigo, ainda que nada tente e só seja tentado. O ápice culmina com a nudez, a “morte” e o silêncio, que o último parágrafo estraga dizendo demais.
A divulgação da primeira encíclica do Papa Bento XVI traz à tona mais uma discussão sobre o erotismo. Joseph Ratzinger afirma que o cristianismo não destruiu Eros. Na verdade, segundo ele, só o caráter inebriante e indisciplinado pode nos afastar do divino, portanto só esse caráter deve ser coibido… Trata-se de “sanar” Eros, nas palavras do próprio pontífice. Mas, como esclareceu Bataille, “a faculdade que temos de nos fazer entender está na razão direta da cegueira na qual resolvemos permanecer”… Cheias de boas intenções de divulgação cultural, etc., etc., etc., as escritoras reunidas por Luisa Coelho enfrentam a cegueira, desafiando, bem ou mal disfarçadas, a linguagem, sacerdotisa da razão.