Memórias reviradas

"Esboço em pedra e sonho", de Marilia Arnaud, narra uma história intimista sobre pertencimento, solidão, luto, culpa e autoaceitação
Marilia Arnaud, autora de “Esboço em pedra e sonho”
01/02/2025

A morte de uma tia e a consequente necessidade de lidar com questões burocráticas levam Ramona de volta a Nossa Senhora das Pedras. O retorno à cidade natal tantos anos depois vem acompanhado de memórias, redescobertas e revelações profundas sobre um passado repleto de movimento e inquietação.

O título de Esboço em pedra e sonho já prenuncia: o novo romance de Marilia Arnaud apresenta linguagem poética para contar uma história intimista, autêntica e sensível. Na trama, a protagonista — uma artista plástica — revisita lugares que fizeram parte da sua infância e recorda acontecimentos que marcaram esse período de sua vida, desde os mais felizes aos mais aterrorizantes.

As relações familiares ganham destaque num primeiro momento. A morte de tia Concebida faz com que a personagem-narradora pense sobre sua relação não apenas com a familiar falecida, mas também com a tia Anunciada, a mãe e, principalmente, o avô. Entre lutos, separações abruptas e a busca pelo pertencimento, Ramona recorda o tempo em que vivia acompanhada pelo canto dos pássaros, frutas saborosas e doces caseiros.

Agora, no entanto, Nossa Senhora das Pedras já não é a mesma. Há novas construções, aumento da criminalidade, pedintes e o surgimento de igrejas evangélicas. Ramona constata tudo isso enquanto caminha pelas ruas à procura de uma sensação de aconchego que talvez não exista mais. Ao menos não ali.

Sua busca idealizada evoca Italo Calvino em As cidades invisíveis (com tradução de Diogo Mainardi):

Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou um retículo em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que deseja recordar: nomes de homens ilustres, virtudes, números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações, partes do discurso. Entre cada noção e cada ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de afinidades ou de contrastes que sirva de evocação à memória.

Mas não são apenas os espaços físicos que a personagem busca reencontrar. Suas memórias garantem um lugar especial a Teo e Concita, seus dois melhores amigos de infância. Embora a amizade do trio tenha começado entre grosserias e piadas de mau gosto, os três se tornaram inseparáveis, especialmente Ramona e Teo, que chegaram a viver um romance sem que Concita soubesse.

Agora uma parte de Ramona parece querer tudo isso de volta. Reencontrá-los e abraçá-los como se ainda fossem as mesmas pessoas e continuassem a partilhar aquela cumplicidade pueril. Tenta, inclusive, se reaproximar de Concita por meio da neta da melhor amiga de infância, uma menina bastante rebelde e independente chamada Nina.

Pazes com o passado
Outra figura marcante nos anos de Ramona em Nossa Senhora das Pedras foi Tonho Mefisto, um artista que se enquadra no conceito clássico de gênio incompreendido. Pintava quadros impactantes, chegou a ser uma espécie de mentor para Ramona, mas era visto como o doido da cidade por boa parte da população. Por isso, a artista plástica busca fazer justiça ao talento de Tonho Mefisto e tenta encontrar os quadros do pintor para mostrá-los ao mundo.

As tentativas de fazer as pazes com o passado nem sempre chegam ao resultado esperado, mas dão bastante movimento à narrativa e revelam as nuances da protagonista. As situações também são eficientes ao incorporar novos personagens à trama e ao desenvolver os aspectos psicológicos e as motivações de cada um deles, sempre com uma cuidadosa preocupação com a verossimilhança.

Cochichos sobre atos institucionais
A obra ainda é eficaz ao trabalhar o tempo e espaço, com destaque para acontecimentos relacionados à ditadura militar, pano de fundo do romance. Na infância, Ramona não compreende bem o que está acontecendo no cenário político brasileiro, mas percebe alguns movimentos incomuns e conversas secretas.

Na sua primeira ida ao dentista, por exemplo, aquele motorzinho se torna menos assustador depois que ela escuta um diálogo entre seu avô e o dentista e percebe o medo nos dois adultos ao falar sobre um termo até então desconhecido para a garota: ato institucional.

Pouco a pouco, ela compreende que seu avô guarda alguns segredos e que a perseguição do governo a “comunistas” pode chegar à sua família. Também nota que as tias — donas de personalidades tão diferentes entre si — protegerão a menina a todo custo, o que não significa que elas também não tenham os seus próprios segredos.

Lembranças e segredos
Dedicado à escritora Maria Valéria Rezende, Esboço em pedra e sonho é um livro delicado, com linguagem lírica marcante e bem definida. A trama traz personagens cativantes, metáforas profundas e um olhar contemplativo que passeia livremente por temas como pertencimento, solidão, luto, culpa e autoaceitação.

Ramona hipnotiza leitores e leitoras ao revirar memórias e apresentar sua visão de mundo. A protagonista percorre o passado em busca de respostas complexas e, em alguns casos, tão urgentes quanto necessárias. Busca afagos em um ambiente que já não a acolhe e compreende que sua infância esconde muito mais segredos do que imaginava.

Ao mesmo tempo, quando percorre tudo aquilo que vivenciou enquanto criança, encontra a coragem infantil necessária para enfrentar os dilemas da vida adulta. Assim, sai a cada novo capítulo um pouco mais transformada, um pouco mais ela mesma.

Esboço em pedra e sonho costura o passado e o presente, o antigo e o moderno, o rural e o urbano para evidenciar contradições, mas também fazer aproximações. Uma obra em que povos ciganos, festas católicas, pais ausentes, quadros nas paredes, silêncios reconfortantes e descrições arquitetônicas se misturam a memórias agitadas e ganham um novo significado, longe de simplismos ou epifanias.

Esboço em pedra e sonho

Marilia Arnaud
Faria e Silva
224 págs.
Marilia Arnaud
Contista e romancista, a paraibana Marilia Arnaud publicou quatro livros de contos, entre eles O livro dos afetos (2005), que recentemente venceu o Prêmio Sundial House de Tradução Literária (Universidade Columbia). Além do infantil Salomão, o elefante (2013), publicou três romances: Suíte de silêncios (2012), Liturgia do fim (2016) e O pássaro secreto (2021), vencedor do Prêmio Kindle de Literatura.
Bruno Inácio

É jornalista e escritor. Autor de Desprazeres existenciais em colapso (contos) e Desemprego e outras heresias (romance)

Rascunho