Memórias póstumas de um ditador

Em "Sua excelência, de corpo presente", Pepetela traz um defunto-narrador que evidencia os podres por trás de governos totalitários
Pepetela, autor de “Sua excelência, de corpo presente”
01/10/2021

Um morto conta sua história enquanto está sendo velado pela família, com a presença de aliados políticos e prováveis adversários. Está morto, mas vê, ouve e reflete sobre tudo e todos ao seu redor e rememora. Ao recordar os tempos passados, a vida de menino, a chegada ao exército, e o crescimento no poder, as linhas da narrativa da existência se misturam com a história do país. É um ditador de um país genérico do continente africano, que lutara pela independência e via-se agora frente à possibilidade de rever seu passado.

As relações familiares e de poder emergem das lembranças do narrador. É um discurso de autoridade que se lê nas suas palavras ao contar a sua vida. As relações construídas ao longo dos anos vão sendo tecidas e justificadas pela personagem-narradora.

A infância e a chegada no exército, crescendo por sua perspicácia, discrição e capacidade de mira. O ditador dava-se bem com as armas, tornando-se um excelente sniper. A aliança com o chefe, o coronel, depois se tornaria o general-meu-kamba, a maneira silenciosa e inteligente de investigar, descobrir e planejar as soluções para os problemas levaram-no a conseguir os postos altos no exército e a garantia de receber a confiança para controlar o poder no país. Conseguira reunir homens em que confiava, como o Vidal e o espião-de-um-olho-só, que iniciara na juventude a vida de espião a pedido do general. Eram coisas pequenas, como um namorado sigiloso da filha do coronel, até as mais sérias, como espreitar possíveis traidores do governo. Aliados políticos e adversários se alternam nas páginas do romance, compondo o grande painel das ações, estratégias e ligações no percurso da sua vida política e pessoal. Relembra de como chegou ao poder, do desejo de reformar e das relações com o povo, com os subalternos e aliados. Lembra-se da dificuldade que tinha em entender a si mesmo.

Amores
No velório, o desfile das figuras pelo cenário também desencadeia uma série de memórias e sensações sentidas em vida num quadro simbólico das relações estabelecidas afetiva e politicamente. A vida no exército e o amor vivido na juventude, com uma moça que, apesar de malfalada por todos, dera-lhe Nhonho, seu primogênito — e por quem o general nutria um grande amor e esperança, sua provável sucessão. O filho sempre estivera ao seu lado e continuava mesmo depois da sua morte.

Casara-se pela primeira vez com Efigénia, moça de boa índole e discreta. O desespero por não conseguir engravidar acabou por lhe tirar a vida ao ingerir poções supostamente mágicas para favorecer a fertilidade. Nhonho era o filho que ela não podia ter, e acabaria por ser seu único filho.

Da vasta prole de filhos gerados por diferentes amantes eram Nhonho e Isilda os prediletos, pela cumplicidade e boa índole. As mulheres foram várias e diferentes, com destaque para a primeira-dama, uma bela e nobre palanca, a esposa atual, uma mulher forte e comprometida com a vida política do general.

Defunto-narrador
Enquanto acontecem os ritos fúnebres, o narrador observa e pensa sobre tudo, numa perspectiva irônica da vida, da situação da própria morte, causada por uma maldita doença que lhe devorara a saúde. Não ocuparia mais a confortável cadeira de veludo vermelho que lhe causara a doença fatal.

O velório acaba de maneira inusitada, tendo às portas do lugar uma revolução popular que se mostrava pronta para invadir o cenário. O corpo do presidente acaba por ser escondido numa grande lixeira entre restos e dejetos. Era o manto do destino que lhe cobria finalmente, depois de ter passado a vida toda a procurar desvios, com enganos e aventuras. O silêncio que se apresentava sobre o futuro era a certeza de que estava realmente morto.

O recurso de um narrador-morto, ou defunto-autor, é conhecida do leitor nacional: trata-se da estratégia de Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas, romance publicado em 1881 e considerado um marco revolucionário na literatura brasileira. A personagem de Pepetela também está morta e revela suas memórias ao leitor, ocupa-se da juventude, da vida adulta, dos amores, das peripécias da vida política e da própria morte.

Crítica ao totalitarismo
Sua excelência, de corpo presente é uma crítica aos governos totalitários que se constituíram como parte da história política de Angola, caracterizada pelo poder abusivo e a corrupção. A independência do país levou a um sistema de governo em que o Estado se tornou a fonte de privilégios e rede de benefícios e favorecimentos, com uma elite descomprometida com a coletividade e que impede o crescimento do povo.

O romance é, então, uma grande alegoria da sociedade angolana pós-colonial. Ainda que não se descreva ou enuncie o país na narrativa, é nele que se passam as ações, e é a política de Angola que se aponta através dos comportamentos das personagens.

Sua excelência, de corpo presente
Pepetela
Kapulana
198 págs.
O desejo de Kianda
Pepetela
Kapulana
102 págs.
Pepetela
Nasceu na Angola, em 1941. Lutou pela independência de seu país e exerceu a função de vice-ministro em 1975. Como escritor, foi o primeiro angolano a vencer o Prêmio Camões (1997). Publicou os livros A geração da utopia (1992), Predadores (2005) e Se o passado não tivesse asas (2016), entre outros.
Gabriela Silva

Graduada em Letras, licenciatura plena em língua portuguesa, literaturas de língua portuguesa e Especialista em “Leitura: Teoria e Prática” pela Fapa; Especialista em Literatura Brasileira e Mestre em Teoria da Literatura pela PUC-RS. Doutora em Teoria da Literatura.

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