Ganhou nova edição brasileira, pela Penguin/Companhia das Letras, o livro de Alexis de Tocqueville, Lembranças de 1848. Com efeito, e respeitando a linha editorial da coleção de clássicos das editoras acima citadas, o livro de Tocqueville possui importância exatamente porque pertence ao panteão das obras que merecem ser revisitadas de tempos em tempos, haja vista que, entre outros aspectos, sua mensagem ainda é capaz de renovar os leitores, sem mencionar o fato de que essas obras propõem-se lançar um novo olhar sobre tempos contemporâneos. São, acima de tudo, textos atemporais. A princípio, essa explicação faria mais sentido em se tratando de um texto literário, que, por sua vez, exige comprometimento por parte do intérprete tanto na apreciação formal quanto no entendimento de seu sentido. No caso do presente livro de Tocqueville, essa percepção se torna fundamental não somente porque o texto é do século 19, mas porque a prosa do pensador francês emula um estilo próximo da memorialística da literatura. Nesse sentido, é bem possível buscar na obra de Tocqueville os elementos básicos do seu pensamento, da sua ideologia. Em síntese: o texto é a mais perfeita tradução de um relato, acrescido de lúcida reflexão, a propósito da mudança no status quo na vida política e social.
É certo que as lembranças de Alexis de Tocqueville, da maneira como estão registradas no livro, dão conta de um cenário bastante específico, aquele que envolve o ambiente político do período da Revolução de 1848. Acerca desse acontecimento, Renato Janine Ribeiro, autor do prefácio e das notas que acompanham o livro, escreveu que se trata da primeira revolução socialista. Nesse particular, é notável observar como o pensador francês estabelece sua pensata sobre os bastidores daquele evento político. Em outras palavras, Tocqueville reconstitui historicamente o que houve na França pré-revolucionária, e, ao mesmo tempo, propõe olhar arguto e analítico dos fatos e dos principais personagens daquele período. Ao comentar a personalidade do líder político daquele país, o autor não economiza na descrição que revela o caráter:
De rei só possuía uma virtude: a coragem. Tinha uma cortesia extrema, que mais se assemelhava à de um comerciante do que à de um príncipe. Não gostava das letras ou das belas-artes, mas amava a indústria com paixão. Sua memória era prodigiosa, capaz de reter obstinadamente os menores detalhes.
Mais do que essa descrição da personalidade do líder político que esteve no epicentro da Revolução de 1848, Tocqueville vai além e expõe o clima social pelo qual passava a França naquele período. Essa análise é fundamental para compreender como o espírito do tempo era favorável à ocorrência da revolução. Nas palavras do arguto Tocqueville:
o que havia de peculiar no caso de Luís Filipe era uma analogia, ou seja, uma espécie de parentesco e de consaguinidade presente entre seus defeitos e os de sua época, o que o tornava para os contemporâneos, e em particular para a classe que possuía o poder, um príncipe atraente e singularmente perigoso e sedutor.
Como se lê a partir desses dois excertos, chama a atenção o modo que a prosa cristalina de Tocqueville desponta como manifestação de sua erudição e de seu posicionamento, como um observador, a um só tempo, informado e cético do governo do qual fez parte. Eis o paradoxo: as memórias de Tocqueville estabelecem um novo paradigma, pois, ao contrário da amargura daqueles que estão alijados do poder, o leitor tem em mãos um documento histórico que se notabiliza pela maneira lúcida e sólida de expor seu ponto de vista acerca daquele momento revolucionário.
Referência
Para além de documento de época, existe outra possibilidade para avaliar/ler o texto de Tocqueville. É que recentemente o mundo tem sido tomado de assalto com as constantes revoltas e manifestações de jovens e não tão jovens assim indignados com o estado das coisas. Assim, do Oriente Médio (com a chamada “Primavera Árabe”) aos Estados Unidos (“Occupy Wall Street”), passando pela Espanha e pelo Chile (os indignados sem perspectiva de conseguir colocação profissional e os estudantes em busca de melhores condições de ensino), os tempos parecem estar fora do eixo, de maneira que é perceptível, aqui e ali, alguma excitação por parte dos comentaristas que, decerto influenciados pelo clamor que vem das ruas, têm ecoado as palavras de ordem e os epítetos de protesto que fazem sucesso nas canções de música pop, à moda: “é o fim do mundo tal qual nós conhecemos. E eu me sinto muito bem”. Ora, a despeito das mudanças tecnológicas e do estatuto da comoção político-social no instável século 21 (agora os jovens parecem estar cada vez mais distantes do discurso da ideologia política), é correto assinalar que a leitura de Tocqueville ainda é referência para a compreensão desses tempos interessantes.
Os motivos para tanto são simples. A começar pelo fato de Tocqueville apresentar um comentário que, em absoluto, não desconsidera as causas para o acontecimento dessa insurreição contra o status quo. Ocorre que, em vez de louvar a ordem que ora se instituía, Tocqueville mostrou o quanto isso pode ser pernicioso e nocivo, numa prova de independência intelectual. Aqui, é certo que os partidários da ideologia política mais à esquerda poderão ler uma reação conservadora por parte do pensador francês. Mas é importante frisar que, em nenhum momento, Tocqueville esconde seu posicionamento político. O que se lê, entretanto, é a postura madura de alguém que analisa o cenário que o cerca sem se deixar afetar, para o bem e para o mal, com as paixões — passageiras e efêmeras. Dito de outra forma, é como se, no calor da hora, essa reflexão de Tocqueville passasse a servir como revelação das mudanças de ordem no futuro. É preciso deixar claro que o autor não escreve com essa pretensão, mas a qualidade do seu texto conquista esse espaço nas ciências humanas e proporciona ao leitor do século 21 uma perspectiva menos arrivista e fugaz dos tempos de mudança.
Com isso, em Lembranças de 1848, é possível conhecer tanto as pertinentes reflexões de um relevante período histórico-político em convulsão quanto a forma como um pensador original, do porte de Alexis de Tocqueville, percebeu essa mudança. Tal percepção se acentua não pelo uso da força ou das palavras de ordem, mas num estilo literário esvaziado de jargões ou retórica proselitista. Assim, em vez do lugar-comum do político que comete um livro de memórias, Alexis de Tocqueville se revela um escritor que concede às memórias políticas um novo paradigma. À direita e à esquerda, é necessário louvar esse feito.