Memórias literárias

Resenha do livro "A hora terna do crepúsculo", de Richard Seaver
Richard Seaver, autor de “A hora terna do crepúsculo”
03/06/2014

Apesar de não ser um nome muito conhecido, Richard Seaver foi o editor responsável pela publicação de autores como Samuel Beckett, Henry Miller, William S. Burroughs, E. M. Cioran, Jack Kerouac e muitos outros nos EUA. Quando morreu, em 2009, Seaver deixou um original não editado de novecentas páginas narrando sua vida e experiência no mercado editorial. O pedido de familiares e amigos era antigo, e sua esposa, Jeannette, levou a cabo a edição e publicação de A hora terna do crepúsculo. O título foi dado pelo próprio autor: dias antes de morrer, o editor visitou uma exposição de Van Gogh e leu uma carta do pintor para o seu irmão, Theo. Nela, encontrou uma frase de Émile Zola e a anotou no verso de seu talão de cheques — anotação que ficou perdida até que a filha a encontrasse, antes da publicação do livro.

As memórias reunidas em A hora terna do crepúsculo focam principalmente a experiência editorial de Seaver por cerca de cinquenta anos. Logo na introdução, o autor assume uma fragilidade do gênero: “o livro de memórias é um olhar retroativo sobre a vida e o tempo de alguém pela lente inevitavelmente refringente do passado. Contei muitas vezes ao longo dos anos as histórias que registro aqui, e asseguro que as versões mais recentes diferem das originais em inúmeros sentidos”. Mesmo com o aviso, é muito fácil para o leitor se encantar e acreditar completamente em suas histórias.

Ser editor não foi algo planejado em sua vida. Formado pela Universidade da Carolina do Norte, sua primeira profissão foi a de professor, lecionando matemática, inglês e latim em uma escola norte-americana. A vontade de conhecer outros lugares do mundo, inspirado por ídolos como Fitzgerald e Hemingway, se realizou com uma bolsa de estudos: Seaver arrumou as malas e foi para Paris, estudar na Sorbonne. Chegou em uma França que sofria com o pós-guerra, com racionamento de alimentos e empregos escassos. Ainda assim, o país ficou fortemente marcado na sua memória e acabou mudando sua vida.

Foi lá que Seaver teve seu primeiro contato com o mundo editorial. Seu amigo Patrick o indicou a um casal que começava a publicar uma revista de literatura em inglês chamada Merlin. Alex Trocchi e Jane Lougee procuravam novos colaboradores, e Seaver logo se envolveu com a publicação. Esse momento coincidiu com sua descoberta de Beckett: o futuro editor encontrou livros do irlandês radicado na França na vitrine da editora Minuit e se apaixonou completamente por Molloy e Malone morre, publicando um ensaio sobre as obras na Merlin. Ele e Beckett se conheceram e, no fim, este foi um incentivo para que o americano se tornasse editor: Seaver traduziu alguns de seus contos para a Merlin e mais tarde publicou seus livros nos EUA.

Sensibilidade e coragem
A obra narra situações que leitores conhecem muito bem — a descoberta de um novo autor, a paixão por sua escrita e o momento em que se busca tudo o que essa pessoa já publicou. Algumas histórias são tão improváveis quanto impressionantes: Seaver encontrou o filho de Hemingway a caminho para Paris, Orson Welles gravando um filme, o fotógrafo Brassaï no dia do seu casamento e assistiu à estreia de Esperando Godot. Ele teve uma vida intensa e cosmopolita em Paris, conhecendo diversas pessoas dos círculos intelectuais franceses. Foi também em Paris que conheceu Jeannette, sua mulher, uma grande concertista, na época estudante de música e violinista.

Como a bolsa de Seaver era de uma fundação militar, no entanto, ele acabou por ser chamado para servir no exército e os dois se casaram antes de irem para os Estados Unidos. Entre as suas missões, Seaver participou de uma expedição para o Oriente e editou um material sobre a viagem para o próprio exército em Tóquio. No fim desse período, encontrou emprego como representante comercial de uma empresa do ramo farmacêutico, morando inicialmente na Venezuela e depois novamente nos EUA.

Seu caminho parecia completamente separado da literatura até ser chamado para trabalhar na editora George Braziller, especializada em clubes de leitura por assinatura. A pressão para conseguir sucessos comerciais era grande, e depois de algum tempo Seaver foi para a Grove Press, onde publicou, ao longo de doze anos, autores tidos como polêmicos na época. Um dos primeiros processos que a editora enfrentou foi pela publicação de O amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence, cujas vendas foram proibidas devido ao “conteúdo impróprio” do livro. (O desenvolvimento do processo judicial ocupa um capítulo inteiro nas memórias de Seaver.)

A experiência do autor com a publicação de escritores considerados polêmicos ocupa também boa parte da segunda metade de A hora terna do crepúsculo. Autores como Henry Miller (Trópico de câncer e Trópico de capricórnio), Burroughs (Almoço nu), Malcolm X e sua autobiografia, Marguerite Duras (O amante) e até a tradução de livros do Marquês de Sade causaram, em diferentes graus, ações judiciais e problemas para a editora. Depois da Groove, Seaver teve um selo editoral na Viking Press, foi diretor da Penguin americana, passou pela Little, Brown and Company e abriu uma editora própria com sua esposa – experiências mais recentes que não são abordadas de maneira ampla no livro.

Ao longo da obra, os leitores podem conhecer o início editorial de vários autores hoje consagrados, retratados enquanto personagens de uma história literária. Além disso, o relato mostra a importância do editor, figura um tanto apagada do ponto de vista do leitor, no processo literário. Fica evidente que, acima de tudo, Seaver era um grande leitor, apaixonado e curioso, descobrindo novos autores e novas formas de literatura. Defensor da liberdade de expressão, apresentou um senso estético e uma sensibilidade com importantes textos, e soube reconhecer grandes autores independentemente de adversidades. Seu relato é uma importante obra de memória e celebração da literatura.

A hora terna do crepúsculo
Richard Seaver
Trad.: Cid Knipel
Biblioteca Azul
576 págs.
Richard Seaver
Nasceu em 1926, em Waterdown, EUA, e começou sua carreira como editor e tradutor na França durante a década de 1050. Trabalhou em diversas empresas e publicou autores como Burroughs e Beckett. Morreu em 2009.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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