Memorialista do assobio

Alberto da Costa e Silva, um dos grandes autores da língua portuguesa, ainda desconhecido da maioria dos leitores, completa cinqüenta anos de poesia
A poesia de Alberto da Costa e Silva é evocativa, alucinada como um sonho
01/01/2004

A contar sua estréia com O Parque e outros poemas, a poesia de Alberto da Costa e Silva completou cinqüenta anos em 2003 sem muito alarde, buzinas e passagem de meteoros. Não foram as cinco décadas que qualificaram seu estilo. Antes da comemoração, ele já era indiscutivelmente um dos grandes poetas brasileiros.

Sua figura discreta e serena sempre favoreceu o volume do silêncio, nome restrito a um grupo de amigos e conhecidos que acompanharam muito de suas obras em tiragens limitadas e fora do comércio. Diplomata, exerceu a presidência da Academia Brasileira de Letras no ano passado. É mais valorizado como africanista, autor de clássicos das origens da escravidão como A enxada e a lança (1996) e a continuação A manilha e o libambo (2001). Nunca chamou atenção para si, como quem traz os segredos dobrados em cartas e não os exibe como vaidade. Ele conjuga a primeira pessoa na terceira, biografia feita para a leitura dos outros que o habitam. “Falo de mim porque bem sei que a vida/ lava o meu rosto com o suor dos outros.” Seus livros exalam o poder visual e imaginativo da memória se transformando em imaginação. A sutil transição poemática, o pedágio de converter — depois das uvas em vinho — o vinho em mãos. Em o Espelho do príncipe, ele assinala: “O tempo era curto para o sonho das mãos”. As mãos estão presentes em suas principais peças como uma metáfora predileta de aceno ou de um sinal de imponderável afeto.

A poesia de Alberto da Costa e Silva é evocativa, prismática, alucinada como um sonho, mas regrada como um terço, seja em sonetos ou verso livre. Uma espiral curativa que não termina de começar. O movimento se assemelha a uma descida de escada. Um retorno ao mesmo caminho que se andou. As imagens vão se abrindo individualmente nas pedras verbais em direção ao final que resume e assoma os passos. Versos com densidade metafísica e textura minimalista.

“só tive Deus em mim alguns momentos
que o tempo não corrói, nem o sol cobre.”

É um memorialista que se dilata ao ouvido. Um memorialista do assobio. “Quando fui assobio para não ser palavra.” Sua condição é de um ouvinte privilegiado, que rumina as palavras e as descasca pela melodia. Recolhe o rumor do gesto. A voz tem forma e fábula. Identifica o timbre pela sinuosidade. “Ouço a tua voz de avena clara e pão.”

Alberto da Costa e Silva tem uma obsessão, a de perdurar o que não conseguiu enxergar enquanto estava presente. Fixa-se naquilo que escapa. Todo poema é reconciliação, retorno, ajuste de dados. Sabe que o tempo perdido é também tempo capturado. Sua linha rítmica guarda a impaciência da terra, a genealogia do sobrado, onde o café torrado faz par com açúcar mascavo, as pandorgas com os brinquedos da feira, as aves com as crinas dos cavalos, o varal e os canaviais brancos, o velo dos carneiros com a letra do pai poeta Da Costa e Silva (1885-1950). Emana uma intempestiva entrega. O sol envelhece mais rápido seus familiares e ele tece o testamento da residência, levantando o poço do centro de seu quarto. Tanto que um dos grandes poemas sobre a infância na literatura brasileira, ao lado de Paulo Mendes Campos (Infância), é Menino a cavalo. Simplicidade e singeleza. Frescor de claridade depois da chuva. Nele, a sala é alinhada como “um estômago”, “centro de um abacate sem semente”. A partida de pai e filho no lombo do animal arrebata pouco a pouco, em um crescendo, do campo para a página, das rédeas para a mão, do silêncio dos joelhos às palavras que podem doer e desmoronar a esperança. Perdura a necessidade filial de ser visto, de ser fixado pela paternidade, de insistir em permanecer, mesmo depois do adeus. Trata-se de um relato ao pai enfermo. O adulto revê a si mesmo quando pequeno com uma compreensão (ou seria compaixão?) que não formulava na época.

“A mão de meu pai sobre o papel desenha,
quase num só traço, o menino a cavalo.

Sai de sua mão a mão com que lhe aceno,
e vai sobre o papel o menino a cavalo.”

Na literatura brasileira, raros são os escritores com esse dom ao autoconhecimento, a uma lírica epistolar, de escrever como quem vai comentando o que vive. O tosco e o rude da paisagem rural de sua infância no Ceará perpassam a trajetória e produzem estremecimentos por todas as idades. As alterações climáticas e as mudanças atmosféricas do reduto infantil agem como fenômenos físicos e psicológicos na maturidade do autor.

O seu mais recente livro, Poesia reunida (Nova Fronteira, 2000), prêmio Jabuti, está estruturado justamente em faixas etárias: poemas dos vinte, dos trinta, dos quarenta, dos cinqüenta e sessenta anos. A espacialização da antologia demonstra a circularidade do tempo, a linha de convivência simultânea e harmoniosa (ainda que difícil e dolorida) do menino-pai-avô. Eles conversam ao mesmo tempo em todos os quadrantes, em diferentes perspectivas. “Haver sido um sonho e alguns versos.” O tempo pára a se recapitular. O metabolismo entre os três se firma em um mundo simbólico, ancestral, tomado de associações familiares e íntimas. Os dias são antigamente novos. O autor não diz o que pensa, mas o que escuta. Sua linhagem é de histórias herdadas e comprovadas com a chegada dos anos. O pessimismo aguça o pensamento, ao invés de afundar. “Esse risco no escuro, incompreensível e inútil, como levar um boi para pastar na praia.” Os cortes abruptos de humor e verdade condicionam um estado extremado de emoção. Os epigramas pisam (novamente a escada) como um choque elétrico no coração. Pouco se encontra a impostura de convencer alguém. O narrador experimenta a espontaneidade do escasso, o detalhe natural. É capaz de definir, por exemplo, o jeito de um homem pelo passar os dedos nas sobrancelhas. Em contidas pinceladas, sintetiza o tremor de histórias, como a do amor dos avós: “e tudo o que canta nesta forma de abraço que é um roçar de dedos”. Quem revelaria melhor a ternura da velhice?

A verdade apenas se manifesta, longe de ser construída. O contexto descreve o poeta (não o contrário), o impele a participar da criação. Assim como Proust, o recurso é interlocutório, solipsista, de quem fala dos vizinhos para si. “O feio é o belo”, avisa, acentuando o caráter fiel e puro de sua absorção.

Alberto é um músico da luz, como definia Jean Renoir sobre o cinema, ligado à Renascença Italiana por Boticceli e à pintura holandesa de do século 17 de Vermeer. Justamente os dois pintores com o maior talento em captar o espírito pensativo da mulher, as sutilezas e meandros do mistério feminino. Neste sentido, o retrato da avó é perfeito, à semelhança de um quadro.

“De luto, a minha avó costura à máquina,
e gira um catavento em plena sala.
Vejo seu rosto, sombra que a janela
corrompe contra um pátio amarelado

de sol e de mosaicos. Sobre a mesa,
a tesoura, um esquadro, alguns retalhos
e a imóvel solidão. A minha avó,
com seus olhos azuis, o tempo acalma.

A minha avó é jovem, mansa e apenas
a limpidez de tudo. Sonho vê-la
no seu vestido negro, a gola branca,
contra o corpo de cão, negro, da máquina:

a roda, de perfil, parece imóvel
e a vida não se exila na beleza.”
(Soneto a Vermeer)

O escritor demonstra sua aptidão contemplativa. Observa passivo. Como uma criança na surdina, atrás da porta. Um espectador de sua própria vida. Igual fulgor pictórico pode ser encontrado em Imitação de Boticceli, em que a umidade da manhã se concentra nas frutas espalhadas. A atmosfera específica é preservada com o envolvimento de pormenores e de uma mobilidade cromática.

“Como a luz numa caixa de laranjas
ou a chuva sobre a mesa de verduras no
mercado,
desce a manhã neste jardim, descalça.

e as flores que traz, na involuntária beleza,
aparecem, contra seu corpo de verão
enfunado,
musgo, limo, ferrugem, as feridas que os
pássaros

abrem na casca lisa e perfeita de um fruto”

Entre o poema dedicado à avó e esse, há uma afinidade eletiva de termos. No primeiro, o corpo do cão da máquina e uma beleza incompleta. No segundo, o corpo de verão e a beleza involuntária. Parecem dípticos, poemas gêmeos. Um é protagonizado pela sombra, o seguinte é personificado pela luz.

A experiência e a articulação emocional das cenas orientam a recordação. Ele vê o que sente. Guarda o que esqueceu intensamente. Elimina qualquer artifício retórico e nódoas de sentimentalismo. Não há piedade quando se ressuscita. Só o que perece é eterno. “Contra os deuses, há o eterno”. A bipolaridade divino-transitório reforça a inquietação de sua escrita. A corrosão faz a permanência. Ser corroído pelos objetos significa habitá-los. Somente o que passou é posse.

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho