Memória, invólucro do tempo

Poética de Maria Lúcia Alvim é marcada por certo preciosismo vocabular, com o uso recorrente de outros idiomas e do registro oral
Maria Lúcia Alvim, autora de “Poesia reunida”
01/01/2025

É com assombro e entusiasmo que me deparo com o volume Poesia reunida, de Maria Lúcia Alvim. Com mais de quinhentas páginas, o livro coloca novamente em circulação o trabalho de uma poeta vigorosa, que foi capaz de forjar um singular “estilo mesclado”, no qual se conflagram certo preciosismo vocabular, incluindo a mobilização recorrente de outros idiomas, e um uso desembaraçado do registro oral, com uma especial atenção à dicção popular do interior de Minas Gerais.

A edição, organizada por Guilherme Gontijo Flores e Ricardo Domeneck, traz todos os livros da poeta publicados em vida, de XX sonetos (1959) até Batendo pasto (2020), além de dois inéditos, Rabo de olho, datado de 1992, e Sala de branco — vinte variações, datado de 2002, e alguns dispersos. Vale destacar, de imediato, o apuro editorial do volume, com pequenos comentários na introdução de cada livro e enxutas notas de rodapé, que esclarecem citações, traduzem trechos em francês ou inglês e sinalizam variantes de versos. Bastante úteis para os leitores que não dominam outros idiomas e para futuros pesquisadores da obra, essas notas estão diagramadas numa tipografia discreta, o que garante a autonomia visual da mancha gráfica dos poemas.

Também vale assinalar a qualidade do prefácio de Juliana Veloso, que faz uma sintética apresentação da trajetória artística de Maria Lúcia Alvim, e do posfácio de Guilherme Gontijo Flores, que traça um breve perfil biográfico da poeta. Balizada entre esses dois paratextos, Poesia reunida revela assim um empenho de consagração, ainda que tardia, de Alvim, movimento iniciado com a publicação recente de Batendo pasto (2020) pela mesma editora, com os mesmos organizadores.

Não se trata de um fenômeno isolado: nos últimos anos, inúmeras poetas têm passado por um processo semelhante, com a celebrada publicação de suas obras reunidas. Cito, de cabeça, nomes como Gilka Machado, Adalgisa Nery, Hilda Hilst, Orides Fontela, Adélia Prado, Lu Menezes e, recentemente, Maria do Carmo Ferreira e Angela Melim. Tais reedições, em conjunto, parecem propor uma ampliação do panorama da poesia produzida no Brasil no século 20, reinserindo na vida cultural contemporânea obras de mulheres que, em maior ou menor grau, haviam sido lateralizadas (ou mesmo esquecidas).

Entretanto, para que tal proposta de fato se consolide, será preciso ultrapassar a mera constatação objetiva (a bem-vinda publicação desses livros), fazendo um esforço crítico de comparação entre diferentes poéticas que se constituíram de modo mais ou menos concomitante, sem perder de vista o chão histórico e o horizonte de expectativas nos quais essas autoras desenvolveram seus respectivos trabalhos. No caso de Maria Lúcia Alvim, a existência relativamente regular de períodos de publicação a cada virada de década parece facilitar o rastreio das modulações estéticas com as quais (ou contra as quais) escrevia a poeta, num movimento cíclico no qual se enovelam todos os motivos de sua obra.

Domínio técnico
A estreia de Alvim é marcada pela premiação no V Concurso de Poesia de A Gazeta, com a decorrente publicação de XX sonetos (1959) pela Seção de Obras da Fundação Cásper Líbero. Ora, a própria premiação já coloca em questão a suposta falta de lugar da poeta naquele final de década marcado, grosso modo, pelo experimentalismo neovanguardista. Em 1958, enquanto concretos e neoconcretos ainda estavam em sua fase polêmica, sem o prestígio literário que alcançariam posteriormente, a sensibilidade do júri do concurso reconhecia o domínio técnico nos sonetos de Maria Lúcia Alvim, nos quais, em alguns momentos, já se esboça o anseio subjetivo de amálgama com a natureza, motivo recorrente de sua obra madura:

Verbena (mas coisa vã)
imponderável alfaquim
numa imatura manhã
em breve azul de calim
talvez precária e malsã
quase prenúncio de mim
(…)

A epígrafe da primeira seção de XX sonetos traz uma citação de Paul Valéry, poeta francês valorizado pela geração de 45 e, curiosamente, também citado como epígrafe em outro livro do mesmo ano, Dez sonetos sem matéria (1959), de Sebastião Uchoa Leite. Valeria mencionar, pensando ainda na fatura formal, os sonetos de Hilda Hilst publicados em Roteiro do silêncio (1959). Tais aspectos permitem vislumbrar o repertório partilhado da jovem autora, o que não significa reduzir — ao contrário, parece-me realçar — suas qualidades particulares.

Nos livros seguintes Coração incólume (1968) e Pose (1968), Alvim começa a explorar outras formas, incluindo o verso livre, e amplia os motivos de sua poética, que se torna sensivelmente mais erótica. Pensando nessa ampliação, seria interessante comparar um poema como Cartão-postal, dedicado ao irmão Francisco Alvim, com Fogo fátuo, publicado no mesmo ano pelo próprio poeta em O sol dos cegos (1968). Na outra ponta, ainda nesses livros dos anos 1960, o domínio técnico do soneto reaparece, por assim dizer, somatizado, ganhando uma renovada força inventiva que se manteria por toda a trajetória de Maria Lúcia Alvim, como ocorre em Touro:

Negra é a sorte
meigo bisonte
Sequer a morte
tão informal

vem surpreender-te
na solidão.
(Saber morrer
plasticamente,

 dura lição).
Ajaezado
ornamental

 teu vivo sangue
o velo insonte
cobre. Final.

Estrutura de inventário
Mais de uma década depois, a inventividade de Maria Lúcia Alvim alcançaria seu ponto máximo em Romanceiro de Dona Beja (1979), o “mais brilhante de seus livros” nas palavras de Juliana Veloso. No caso específico desse livro, é mais difícil vinculá-lo diretamente ao debate literário de meados dos anos 1970, uma vez que seu empenho de revisitação história a partir de um gênero tradicional parece encontrar par somente no Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecilia Meireles, antecipando-se, em certa medida, à incursão do Auto do frade (1984), de João Cabral. Entretanto, ao contrário destas outras obras, o romanceiro de Alvim implode os limites do gênero, assumindo uma estrutura de inventário das formas poéticas mobilizadas, ao longo do século 20, diante da matéria histórica de Minas Gerais. Não é difícil perceber, por exemplo, o diálogo com Drummond de Lição de coisas (1962) em trechos como:

— Rio Grande

— Rio das Velhas

                              Quebra-Anzol

                                                           — Capivara

                                                           — Paranaíba

                               Tamanduapava

Por sua vez, A rosa malvada (1980) aproxima-se da linguagem distendida dos anos 1970, ainda que mantenha o vocabulário próprio da autora. Para Heloisa Teixeira, esse livro faria parte de uma onda, no jargão então em voga, “pós-feminista”, estando alinhado a obras como Luvas de pelica (1980), de Ana Cristina Cesar, e Papos de anjo (1980), de Lucia Villares. Diante disso, não soa estranha a inclusão de Maria Lúcia Alvim na antologia Poesia jovem — anos 70 (1982), organizada pela própria Heloisa Teixeira e por Carlos Alberto Messeder Pereira.

Nessa época, aliás, a produção de Maria Lúcia Alvim tinha uma boa recepção no ambiente cultural: pouco depois da publicação de Romanceiro de Dona Beja, com apoio do Instituto Nacional do Livro, a poeta realizou em 1981 uma mostra individual de seu trabalho como artista plástica em Retratos e colagens, na Petite Galerie, cujo catálogo trazia texto de apresentação de Darcy Ribeiro. No final da década, Alvim reuniria toda sua produção editada até então em Vivenda, publicada na fundamental coleção Claro Enigma, organizada por Augusto Massi.

Destaco essa circulação naquela década para relativizar a ideia de que a poeta teria sofrido passivamente um processo de apagamento de sua obra nos anos 1990 e 2000. Ao contrário, no início dos anos 1980, ao se mudar para a Fazenda do Pontal e decidir manter Batendo pasto inédito, Maria Lúcia Alvim demonstra ter uma postura ativa, de negação do ambiente cultural no qual estava bem inserida — o que, por outro lado, não impediu a continuação de sua pesquisa estética, em certo sentido radicalizada nas colagens de Rabo de olho e Sala de branco.

Seria difícil sondar os motivos que levaram a artista a abandonar aquele ambiente, embora isso não nos impeça de reconhecer a coragem de seu gesto. Mais importante do que esse mistério biográfico, no entanto, é assimilar a temporalidade estendida que a postura ativa de Maria Lúcia Alvim estabelece. Contra a voragem do consumo imediato, brotando quase três décadas depois de germinada, a floração tardia de Batendo pasto tem algo da sabedoria daqueles que se deixam apreender pelos ciclos naturais, como ensina Baixio:

Mil vezes

esgotar córrego

Poesia reunida
Maria Lúcia Alvim
Relicário
564 págs.
Maria Lúcia Alvim
Nasceu em Araxá (MG), em 1932. Autodidata, dedicou-se exclusivamente ao trabalho com a poesia e com as artes plásticas. Publicou XX sonetos (1959), Coração incólume (1968), Pose (1968), Romanceiro de Dona Beja (1979) e A rosa malvada (1980), posteriormente reunidos em Vivenda (1959-1989). Após um longo silêncio, publicou Batendo pasto (2020), livro elaborado em 1982 e entregue aos cuidados de Paulo Henriques Britto. Faleceu em 2021, em decorrência da pandemia de covid-19.
Renan Nuernberger

Nasceu em São Paulo (SP), em 1986. É poeta, crítico e professor de literatura. Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, organizou a antologia Armando Freitas Filho (EdUerj, 2011), e o volume de ensaios, Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970 (Humanitas / Fapesp, 2018), este último em parceria com Viviana Bosi. Como poeta, publicou Mesmo poemas (2010) e Luto (2017).

Rascunho