No dia 17 de abril de 1984, um jovem de 18 anos recém-feitos saía de um prédio na Glória, carregando, pressuroso, um livro autografado. Era uma edição de Baú de ossos, o primeiro volume das memórias de Pedro Nava, e o jovem era eu. “Para Daniel Argolo Estill, lembrança de sua visita, e com meu estímulo para que prossiga nas letras”, escreveu Nava para mim. Havia me falado do ofício de escritor e do que era ser memorialista. Disse-me que trabalhava ainda num volume de suas memórias, o último, mas que pretendia organizar ainda um outro, para leitores jovens como eu, então. Aquele “pobre homem do Caminho Novo de Minas Gerais”, aos 80 anos, falou-me de projetos e de como a vida valia a pena. O rosto e o corpo lembraram-me o Major Agarra-e-Não-Larga-Mais, o sonolento guardião do Reino das Águas Claras de Monteiro Lobato, e isso só serviu para aumentar ainda mais a minha simpatia por ele.
Um mês depois, uma chamada do plantão do Jornal Nacional interrompia minha sessão da tarde. “O escritor Pedro Nava foi encontrado morto na Rua da Glória”, e os detalhes do suicídio. Fiquei chocado, surpreso e me senti traído. Como um ancião fala a um jovem sobre planos e projetos e no mês seguinte desmente tudo isso com um tiro na cabeça?
A vida passou, já lá se vão 22 anos. Os planos literários ficaram pelo caminho, mas a memória da visita a Nava nunca me deixou. “[…] o meu estímulo para que prossiga nas letras”, disse-me. Agora, sinto-me em dívida com ele. Tenho em mãos o incompletíssimo Cera das almas, em que ele trabalhava na época em que me recebeu em sua casa. O escritor deixou apenas o primeiro capítulo, recém-publicado pela Ateliê Editorial e Editora Giordano, na seqüência da publicação de suas obras completas, iniciada em 1999. Edições cuidadosas com texto composto e fac-símile das folhas datilografadas e anotadas pela mão pelo autor. Reconheço nas notas a mesma letra da dedicatória que tenho no rosto de minha sexta edição de Baú de ossos, de 1983, pela Nova Fronteira. Cinco outros volumes separam Baú de ossos de Cera das almas e constituem, confesso, parte do meu débito com Pedro Nava, a outra parte é a de não ter “prosseguido nas letras”. Li apenas o primeiro e, agora, o último livro de suas memórias. Repor essas leituras intermediárias, no entanto, não é grande sacrifício. Mais difícil é o prosseguir nas letras.
Se é possível começar a saldar essa dívida, que seja comentando essa publicação póstuma e lamentavelmente incompleta. Passados tantos anos, no entanto, é ainda difícil afastar o suicídio e as circunstâncias nebulosas que o envolveram na época de uma leitura objetiva e crítica, como deveria ser uma resenha. Principalmente por ser o livro interrompido por aquele tiro na têmpora. Talvez assim, Pedro Nava tentasse deixar de fora de suas memórias uma parte de sua vida que ele preferia não lembrar.
Mas, vamos a um pequeno resumo em busca de um contexto para o Cera das almas, afinal é dele que trata a resenha. De Baú de ossos ainda posso falar de memória, mesmo distante, já se passaram duas décadas desde que o li. É o livro da infância, dos primeiros registros de sabores e olfatos, mas principalmente, o registro dos ancestrais. Nele, Nava recupera a vida provinciana de Minas do final do século 19 e início do 20, e busca a biografia da família, anterior à sua própria. Foi concluído em 1970 e publicado dois anos depois.
Dos demais livros, falo de orelhada, ou de ler a orelha, pois, lacuna confessa, não os li. Depois de Baú de ossos, veio Balão cativo, relato da infância e do colégio interno, concluído em 1973. O volume três, Chão de ferro, são os anos de adolescência no Rio de Janeiro, início da faculdade de medicina e retorno a Belo Horizonte, publicado em 1976. O quarto volume, Beira-mar, de 1978, fala dos anos de graduação e início do convívio com os intelectuais do Modernismo mineiro, envolvidos com a publicação de vanguarda, A Revista. Galo das trevas, de 1981, trata do início da carreira de médico, em contraposição ao então presente, em que o autor completava 75 anos. Em seguida, o sexto volume, O círio perfeito, de 1983, abrange o período de 1930 a 1940, incluindo o testemunho da revolução de 30, a atuação como professor e a vida adulta no Rio de Janeiro. Cera das almas seria, então, o mais contemporâneo de seus livros, abrangendo os anos de direção da Policlínica Geral do Rio de Janeiro, que se estendem pela década de 1970.
Testemunho
Pela via do testemunho pessoal, Nava atravessa os principais eventos do século 20, interrompendo a narrativa abruptamente no último volume. No entanto, o registro dos fatos, mesmo os pessoais, não são suficientes para justificar a importância de Pedro Nava não só para o memorialismo brasileiro, mas para a nossa literatura. O testemunho de Drummond, Antonio Candido, Tristão de Athayde, Otto Lara Rezende, Fernando Sabino e quantos mais, que colocam Nava entre os maiores de nossa literatura, não é corporativismo literário, coleguismo ou simples amizade. Pedro Nava, a contrapelo das tendências literárias de uma época marcada por uma prosa dura, objetiva e engajada, desenvolveu um estilo de prosa digressiva e alongada, barroca. Não existe a preocupação com a frase seca e o período curto, com a informação objetiva e a descrição do fato. Não é literatura jornalística, mas algo anterior a isso, ou paralelo a isso.
Assim, para contar seus encontros e desencontros com o coadjuvante principal deste primeiro e único capítulo de Cera das almas, batizado por ele de Sacanagildo de Lima Goiaba, Nava estende-se longamente em suas impressões sobre os movimentos e humores do dia sobre a Baía da Guanabara e os morros de Niterói, ou ainda sobre as mazelas de um despertar gripado e todas as reações do corpo enfermo ao levantar-se forçado da cama. Não há o compromisso subserviente aos fatos. A ordem dos acontecimentos segue uma ordem maior, que é a vontade do narrador e o seu domínio da prosa, dobrando-a e manobrando-a de forma a obter a medida certa entre a objetividade, a impressão e a sensualidade do estilo que nos mantém presos pelo sabor e deleite.
Cera das almas provavelmente entraria pelos anos 1970 e 1980. Os anos da velhice de Nava, coincidindo com os anos da ditadura e com sua aposentadoria e afastamento da Policlínica, dão o tom depressivo que essas poucas páginas do que viria a ser Cera das almas carregam. Bem diferente da exuberância e riqueza de imagens e personagens do primeiro volume. O memorialista dedica sua verve a descrever a mediocridade e hipocrisia de personagens reais, infelizmente protegidos por alcunhas, que galgaram posições às custas de favores e elogios e não por mérito e realizações. Ainda assim, o olho clínico do médico é aplicado à descrição dos personagens, retratando a fraqueza de caráter como vício e doença, sem rancor, mas com mágoa, com mágoa profunda.
Atribuir a opção pelo suicídio do octogenário Pedro Nava à desilusão e à amargura, como diz a contracapa do livro, ou à chantagem de um garoto de programa que ameaçava revelar a homossexualidade do escritor é pura elucubração. Como se vê em muitos textos sobre ele, conversas sobre suicídio e morte eram recorrentes. Ele chegou a redigir uma carta de despedida, bem antes de concretizar a decisão. Não há, em suas memórias, sinais claros de tendências homoeróticas. Ocultar essa parte de si em suas memórias havia de ser tarefa difícil, assim como conviver com essa realidade e uma vida estável e tradicional, estruturada em um casamento duradouro e intensa dedicação a uma carreira médica. A família, compreensivelmente, fechou-se sobre o tema. De fato, o suicídio ou uma suposta homossexualidade não são nem de longe o assunto mais importante em se tratando de Pedro Nava. O que interessa é seu legado, que as editoras Ateliê e Giordano dedicam-se judiciosamente a recuperar em edições cuidadas e dignas do autor. Além disso, Nava deixou sua marca na história da medicina brasileira e na reumatologia, área em que se especializou e conquistou amplo e merecido reconhecimento.
Com o tiro em si mesmo, para o bem ou para o mal, Pedro Nava fixou, de forma ainda mais profunda, a sua marca naqueles que tiveram o privilégio de estar pessoalmente com ele, ainda que por poucas horas, ainda que apenas por uma breve manhã de abril guardada nas memórias de um então menino de 18 anos.