Memória fotográfica

De formas distintas, autores ficcionalizam lembranças a partir de imagens inventadas
Ilustração: Tereza Yamashita
01/07/2023

É curioso o termo “memória fotográfica” se referir à precisão com que alguém pode recordar momentos específicos. Na nossa vida cotidiana, parece ser muito mais um mecanismo retórico do que, de fato, mnemônico. Faz sentido, então, que écfrase — termo que hoje se refere principalmente à verbalização de obras de arte, representação verbal de representação visual, como sintetizou James Heffernan — tenha nascido nos manuais de retórica da Antiguidade. Penso que o convencimento da memória fotográfica seja, então, o de convencer que aquela cena se deu como aquele que a descreve. Conseguir a enargeia (vivacidade) da descrição rica, muitas vezes meticulosa e de forte coerência interna para que o interlocutor não tenha dúvidas: aquilo aconteceu.

Na ficção, a situação fica mais densa. Em O corpo interminável, de Claudia Lage, uma fotografia fictícia se amarra a uma situação igualmente inventada. O filho de uma vítima da ditadura militar se debruça sobre o registro do corpo de sua mãe, buscando na foto, o além-foto. Quem forjou aquela cena, quem apertou o obturador, que pistas os cantos, as frestas do corpo fotografado deixam, e que pontas podem se amarrar — e de fato se amarram — quando a fotografia conduz à escrita, empreitada de Daniel, o protagonista do romance.

Daniel é uma “lasca da pós-memória”, termo proposto por Marianne Hirsch. Lasca porque ela fala da transmissão de experiências rememoradas, e reproduzidas artisticamente por filhos de sobreviventes da Shoá e de outros massacres, e Daniel não tem sua mãe consigo. Acima de tudo, Daniel é criação de uma autora, que por meio desse personagem fala não da memória fotográfica, mas da memória que persegue a fotografia, tenta acompanhar seu ritmo. Hirsch destaca o papel das fotografias na transmissão da memória, na noção de testemunho. Como nas imagens de campos de concentração, o registro nunca é da vítima, podendo ser dos algozes ou dos “libertadores”. Daniel, diante da fotografia encomendada pelos torturadores, perfura o olhar criminoso para chegar à vítima e alcançar, portanto, o pedaço de memória que compõe sua mitologia.

Ficcionalização extrema
É difícil hoje falar de memória fotográfica na literatura sem falar de Karl Ove Knausgård. Ao falar da sua vida em seis longos volumes e em tantos outros textos que publicou desde que virou uma celebridade literária (agora talvez a febre já tenha passado?), nos deparamos com a ficcionalização extrema da memória. O exercício retórico da descrição dotada de enargeia levada ao paroxismo. O menino que esconde a cerveja na neve, caminha na estrada, busca a cerveja, vai para a festa de ano-novo, recuperado pelo adulto amargurado que consegue narrar as pegadas afundadas, o sabor da bebida e tudo o mais que envolveu aquela noite igualmente única e banal. A vivacidade meticulosa convence, no jargão das oficinas literárias, que Karl Ove é algum tipo de recordista da memória fotográfica, quando de fato é ali que reside a sua ficção. Não nos fatos da sua vida, mas no potencial ecfrástico dessas fotografias imaginadas.

Em um exercício mais radical sobre o mesmo tema, Jacques Fux proclama: As coisas de que não me lembro, sou, título de seu livro ilustrado por Raquel Matsushita. Numa longa lista de não-lembranças, a narrativa de uma vida tediosa como o ser. Algum momento que pode ter sido fotografado, como o nascimento, se misturam a tantos outros irregistráveis: a vida se formando dentro do útero, a descoberta dos cheiros por um bebê, rejeições amorosas e ausências de familiares que deveriam estar lá. Fatos que se tornam progressivamente lembranças mais etéreas e filosóficas, que caminham conforme esse narrador descobre em suas recordações ao avesso a literatura.

As ilustrações de Matsushita em páginas sangradas, preto no branco, fazem a ponte entre o ser amnésico ficcional de Fux e a hipertrofia ficcionalizada de Knausgård (a ilustradora também fez o projeto gráfico do livro): pois as imagens que penetram no texto do autor mineiro são recriações de obras de arte calcadas no surrealismo. “Também não lembro do dia em que compreendi que eu e meus pais éramos mortais”, por exemplo, é um trecho destacado ao lado da ilustração de Eternidade, do paraense Ismael Nery, pintura em que uma figura antropomórfica se mistura a uma planta em um vaso, que ao mesmo tempo parece estar atravessando esse corpo. Imagem e texto, juntos, explodem em vivacidade, mas não como a enargeia ecfrástica, uma pulsão que vem da ausência da imagem palpável que se agarra ao surrealismo plástico de uma pintura como a de Nery ou, quando autor e ilustradora aliam um trecho sobre a necessidade e a angústia de vivermos com as nossas próprias dores e invenções ao “impossível” emblemático de Maria Martins.

Lembranças de outra natureza
De um lado, então, a memória fotográfica que define o ser, não deixando um espaço em branco em fatos banais que se conservam congelados no frio escandinavo. De outro, aquilo de que não se pode lembrar, que se finge que não lembra, pois ao elencar esses fatos eles se mostram como lembranças de outra natureza, justamente a incorporação de que “aquilo de que não lembramos, somos”. Quando não lembramos, somos aquilo que contamos sobre nós. Depois, somos um pouco o que tentamos esquecer. Por último, somos o que escrevemos. Resolução do enigma-mor da esfinge, aquele do número de patas ao longo de um dia, que é o número de apoios ao longo da vida. Se, para o narrador de Knausgård o amparo da memória é a perseguição obstinada da imagem como registro fotográfico, o de Fux abandona tanto a ideia de amparo quanto a de registro, e mergulha no surrealismo do ilógico, para no fim chegar a algum tipo de resolução possível: mostrando como sou, sendo como posso.

Se Knausgård forja fotografias, Fux as renega com violência, Annie Ernaux tem nelas o fôlego que uma nadadora pega a cada virada de cabeça fora d’água. Em Os anos, Ernaux transpõe para o texto uma espécie de álbum de fotografias que, conforme exibido — por meio de descrições das fotos, sem imagens — se desdobra em outros registros da memória. As lembranças perpassam mais de seis décadas e reconstroem a memória por meio de imagens e, aprofundando-se nelas, descrições também de sons, cheiros, texturas.

A narradora deliberadamente utiliza a terceira pessoa do singular: um problema do universo da escrita, agravado pelas fotografias: “Como fazer coincidir um panorama de 45 anos e a busca de um eu fora da História, constituído de momentos suspensos, um eu que estava presente nos poemas que ela tentava escrever aos vinte anos”. Aquela que vemos nas fotos, que indicam que somos nós — em um momento do qual não nos lembramos —, sou eu ou outra pessoa que se perdeu no tempo? A preocupação principal é escolher entre “eu” e “ela”, diz a narradora, preocupada com o registro, mas uma angústia que também pode ser existencial (a dubiedade também vale para a obra de Fux).

Quando se narra sobre sua vida, é inevitável avaliar quem se é face esse personagem, desejando escolher a vida narrada ou a vida vivida, ansiando por uma personalidade cambiável e construída. Se Ernaux quer nos convencer de algo em Os anos, pode ser que seja da relação íntima entre indivíduo e acontecimentos históricos, da permeabilidade e da nossa fragilidade diante da política e da economia, principalmente quando sua origem não garante ficar irredutível e independer da luta social. Mas o que ela quer nos convencer a respeito da fotografia? Que não há memória fotográfica, há memória além da fotografia.

Thais Kuperman Lancman

É doutora em Letras e escritora. Publicou o livro de contos Pessoas promíscuas de águas e pedras (Patuá, 2021).

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