Nas palavras de seu biógrafo, Luciano Trigo, o terceiro volume de Espelho partido, A guerra está em nós, é um “painel urbano multifacetado, (…) uma obra que desafia classificações e ignora convenções narrativas, ao misturar ficção e memória, diário e crônica de costumes, sempre pela lente da crítica social”. O próprio autor reflete sobre a forma de sua obra, na primeira anotação feita em 1944: “(…) vou prosseguindo neste romance (…) manancial que desce do eternal e escondido Trapicheiro (…) É o meu rio! (…) se tiver sede, beba da sua água, as mãos em concha. É água pura, não duvide — a Arte é um filtro”.
Romance–rio, confessadamente, mas também romance–Rio e romance-mundo. A cidade se revela em pequenos instantâneos nobres ou escusos. Uma ida à zona ombreando com uma reflexão sobre a notícia do extermínio de judeus. A morte de um acadêmico entre as páginas dos planos para o Carnaval no High Life, com a amante do momento. As incríveis dificuldades para se conseguir uma linha telefônica e as intrigas e ciumeiras do mundo literário. Romance à clef, o leitor se distrai no jogo de identificação de personagens reais da vida intelectual da cidade. Escritores, críticos literários, pintores e jornalistas, quase todos podem ser identificados graças ao trabalho de pesquisa de Luciano Trigo, em seu perfil de Marques Rebelo. Seu biógrafo revela que, numa carta a Paulo Mendes de Almeida, crítico de arte e um dos fundadores da Sociedade Pró-Arte Moderna, o próprio acadêmico identificou figuras como Jorge Amado (Antenor Palmeiro), José Lins do Rego (Júlio Melo) e o editor José Olympio (Vasco Araújo), entre muitos outros. Manuel Bandeira e Gilberto Freyre aparecem no livro como “o poeta” e “o famoso sociólogo”, enquanto que Drummond e Mário de Andrade aparecem com seus próprios nomes, sempre elogiados por algum personagem tal como Joaquim Borba, pseudônimo do escritor Cyro dos Anjos.
Neste registro muitas vezes ácido e, em outras, de um lirismo algo fora de moda, aparece um mundo em transformação, uma cidade pré-industrial que rapidamente se moderniza, e adota coisas percebidas como estrangeiras na época, tal como as churrascarias, trazidas pela moda gauchesca da presidência de Getúlio Vargas. O crescimento desordenado da cidade, a modernização nem sempre eficiente e muitas vezes danosa, tudo isso se revela nos lamentos autobiográficos, ajustados pelas reflexões de caráter político e social que não perdem o sabor da subjetividade.
Retratando uma sociedade semelhante à pintada por Nelson Rodrigues (afinal, são contemporâneos), Marques Rebelo se reúne a outros grandes escritores que mantêm o espírito carioca registrado para nosso conhecimento e observação. Desde Machado de Assis, passando por Lima Barreto e João do Rio, alguns escritores conseguiram retratar os tipos e a sociedade carioca em suas obras, as quais hoje nos permitem entender as modificações de pensamento e de atitudes provocadas por mudanças sociais e econômicas. Talvez por isso, em A guerra está em nós o aspecto ficcional se coloca em segundo plano, e se atrofia frente à riqueza do material memorialístico. Mesmo escrito já na década de 60, o livro não se afasta inteiramente do modelo dos romances da geração de 30, marcados pela crítica social. Outra característica preservada é a do coloquialismo, que tempera o texto com expressões retiradas da “língua gostosa do povo”, como diria Manuel Bandeira.
Mais resistente
Já no romance A estrela sobe, o fio condutor da ficção se revela mais resistente. Contando a história de uma jovem suburbana, Leniza Máier, Marques Rebelo, na verdade, revela a importância do rádio na sociedade carioca dos anos 30. Mas, mesmo sem perceber, ele cria um romance cuja importância para o conhecimento da condição da mulher carioca no início do século 20 se torna uma marca inquestionável.
Vivendo num mundo em que a “revolução sexual” já é coisa do passado, em que as conquistas feministas abriram portas para a igualdade no trabalho e no estudo, as jovens de hoje não têm idéia da agonia que a “perda da virgindade” representou um dia. Mulheres valiam pela preservação ou não de seus hímens. O assédio sexual era o comportamento padrão, e as mulheres que se submetiam a ele viravam alvo do desprezo de suas famílias e conhecidos. As “perversões sexuais” também provocavam o julgamento hipócrita de quem observava os esforços de sobrevivência e os sonhos de sucesso de pessoas que, pelo sexo, estavam fadadas a serem “rainhas do lar”, “santas mãezinhas” e “anjos domésticos”.
O romance de Marques Rebelo, que serviu de inspiração ao filme do mesmo nome, de Bruno Barreto (1974), aborda um outro pesadelo feminino presente ainda nos dias atuais: o aborto. Fora da lei brasileira, continua tendo que ser praticado às escondidas, muitas vezes por “curiosos” que não se preocupam com a higiene nem oferecem recursos caso o procedimento tenha complicações. O drama está todo retratado no romance e toma destaque dentro da narrativa já que, a partir do episódio, a forma narrativa sossobra e surje a narrativa em forma de diário, como se para corroborar uma realidade que se sobrepuja à ficção.
Os amores e desventuras de Leniza se desenvolvem a par e passo com verdadeiras radiografias urbanas. A decadência da família com a morte do pai é adiada, mas torna-se inevitável. Os flashes de memória que revelam a extorsão praticada por agiotas junto aos profissionais que procuram sobreviver com seus ofícios honestos, mas de pouco rendimento, apiedam não apenas a empreendedora Leniza como os próprios leitores. Até no desenvolvimento das relações amorosas da moça, cujo primeiro amor possui um nome emblemático, Astério, ou seja o nome do Minotauro aprisionado no labirinto, podemos perceber um modelo que a sociedade cria para validar as diferenças entre os sexos. Aquele namoro onde o sexo — irrealizável por causa dos ditames morais — é substituído pela agressão já nos revela que, para Leniza, a entrega de seu corpo só pode ser problemática. Ciente de que sua beleza é um tipo de mercadoria, ela procura se beneficiar mesclando malícia, cálculo e ingenuidade. Ao fim e ao cabo, ao invés de admiração, ela só consegue o desprezo e o isolamento. Leniza termina a história solitária, embora não perca sua persistência e petulância.
Essa denúncia da miséria e da falta de perspectiva da incipiente sociedade urbana carioca é o que caracteriza Marques Rebelo como um dos autores do que se conhece como Romance de 30. Leniza, com sua ânsia de liberdade, sua ambição e sua fé num futuro melhor, se vê enredada pelo lado obscuro do rádio, o local das intrigas e da glória, dos pesadelos e dos sonhos. A realidade, sempre um tantinho sórdida, avaliada em sexo e dinheiro, vai esgarçando os sonhos da moça que se vê usada por uns e outros, e que também tenta usar uns e outros como degraus para a fama. As amizades que encontra, a sociedade em que se movimenta, reparte com ela suas fraquezas e estimula seus “deslizes”, desde que os mesmos se mantenham, hipocritamente, escondidos.
Ao terminar a leitura de A estrela sobe, fiquei surpresa com o pouco tempo cronológico que separa Leniza Máier de Leila Diniz. A personagem de ficção, se tivesse “vivido” uma geração após, teria como modelo não as hipócritas divas do rádio, mas a libertária atriz. Desprezada nos anos 30, a mulher que se desejava dona de sua sexualidade foi capaz de transformar o pensamento de um grupo social, que hoje vê em Leila Diniz um ícone. Os problemas de Leniza parecem ter desaparecido, e com eles periga desaparecer a compreensão da importância da militância feminista. A leitura do romance de Marques Rebelo, então, revela um aspecto do mundo estreito do qual as mulheres estão conseguindo se libertar, conseguindo vitórias como o direito a voto, oportunidades de emprego e de estudo, e, obviamente, libertando-se do fantasma da gravidez indesejada.