Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, tem história de luta pelos valores nacionais. Ali, publicam-se inúmeras histórias dos que resistiram à ditadura militar do século passado – as novas gerações devem saber da coragem daqueles que acreditavam (e muitos estão vivos para continuar acreditando) no sonho de liberdade e de justiça social. Infelizmente, não há eficiente divulgação e distribuição desses testemunhos da província, e, nem sempre, as edições são bem cuidadas, guardando mesmo falhas de revisão.
Entre os autores ribeirãopretanos, está Vanderley Caixe, com o seu 19 poemas da prisão e Um canto da terra (Ribeirão Preto: Villimpress; Rotary Clube de Ribeirão Preto; OAB-Rib. Preto; Associação dos Advogados de Rib. Preto; ACRIMESP, s. d.), relançado, em setembro, durante a 2ª Feira Nacional do Livro. Há depoimentos que devem ser repetidos, para que seja lembrada a coragem de enfrentar o arbítrio e a violência.
A primeira parte do livro traz 19 textos do tempo em que Vanderley esteve preso em Presidente Wenceslau (1972-1974). A segunda parte, “Um canto da terra. Dionila camponesa” tematiza a questão agrária no Brasil. As duas partes guardam profunda intimidade, apesar dos anos que separam a gênese de cada uma. A unidade está na coerência ideológica, no compromisso político, no exercício da militância, que perpassam todos os textos, e se confirma em poema(s) e em canto.
Para Vanderley, revisitar as contingências do indivíduo, vítima da violência e do arbítrio, ou interiorizar a dor de uma coletividade são atos revolucionários. Admitir a dor, cantar a dor, é pronunciar “um sim, numa sala negativa”. Nada mais subversivo do que falar da dor, seja individual ou coletiva. Principalmente, com a contundência de Vanderley. O sem reservas de seu discurso traduz a dimensão da dor, que, em exercício de catarse e de proposta de comunhão, ganha a universalidade do canto, tornando radical a denúncia, não mais nos permitindo a doce comodidade do esquecimento ou da indiferença. Mantém viva a memória. Veementemente, recusa a barbárie.
Os textos traduzem dignidade, decisão de luta. A dor ganha significados novos, ao adotar a expressão literária ou a opção da militância. Combinando essas alternativas, faz-se depoimento, exemplo de opção de vida; vira poema(s) e canto da terra, canção de luta e de vida.
Vanderley faz nossas as dores da juventude utópica e da realista vida adulta e profissional. Os poemas nos convocam à participação.
Nos 19 poemas, há privação da liberdade e sujeição à violência: “Encerrado nessas grades/ censurado vou fazendo”; “nas prisões, nós, os bandidos”. A noite, metáfora do cárcere, possível de ganhar tradução na solidão, é presença desde o primeiro poema: “Que sozinho nesta noite”. Mas, no paradigma da ansiedade ou do desejo de evasão, vê-se a construção isotópica da noite, enquanto tempo de engendramento do sonho e do espaço da liberdade: “E os guardas vigiam/ o sono fugitivo do preso./ A fuga no sono.”
Da realidade grosseira, a amada está distante. O eu cultiva sua sensibilidade e sua afetividade no resgate do encontro amoroso, mesmo acontecendo no palco da prisão: “… em dias como esse,/ eu a tive em meus braços, em meus beijos,”. Na dor, experimenta a ternura: impõe-se humano, revivendo seus sentimentos – vejam-se “Lembrança de você” e “Lembrança de você II”
Em alguns momentos, o sujeito da enunciação prefere a posição de observador do absurdo, como em “Hoje, dia X” e em “Hora do almoço”. Fala do sofrimento do outro, como se guardasse uma posição de fora. Pudor, para se dizer vítima da mesma estupidez? Impossível não verificar que o sujeito da enunciação é o do enunciado: o eu encontra-se no padecimento do outro, cabendo-lhe a denúncia. Confirmando essa leitura, está o título “Hoje, dia X”: sem data precisa; qualquer dia; todos os dias. Ou seja: o tempo cronológico não importa. Fala-se de um tempo vivido como dor. Em sua intensidade, pode ser qualquer dia, o “dia X”, o dia da violência. E mais: a datação “X” sublinha a perda dos referentes, o processo de alienação a que estão submetidos tanto a vítima como o observador, isto é, o sujeito do enunciado e da enunciação: o eu.
O discurso de denúncia anula a aparente neutralidade da enunciação que se quer descritiva em “Na hora do almoço”. O eu articula o discurso do outro, para nos dar “A ânsia de reação./ A sensação de impotência. A angústia doida.”, enquanto o prato de arroz queda no cimento. Ou seja: os 19 poemas da prisão são palavra do eu, impregnado na comunhão com a alteridade. E isso só pode ser alcançado pela solidariedade revolucionária, pela identidade de vivências e de angústias – o que dilui a alteridade.
Os poemas são datados, mas o autor preferiu quebrar a ordem temporal ao organizá-los, pois o tempo do eu não pertence ao calendário. Este é um tempo interiorizado; tempo que se faz memória e testemunho de situações extremas.
Discurso de denúncia? Tais versos extrapolam a denúncia. Ninguém se desnuda tanto ao falar do sofrimento, só como atitude revolucionária. O sujeito precisa manter sua integridade, sob pena do risco da fragmentação ou do abismo da despersonalização. Melhor é ler a catarse: são poemas de reencontro, na necessidade de vomitar as angústias, que afloram traduzidas no discurso poético – única forma possível de exorcizá-las, para realizar a passagem. Sabendo-se que os poemas foram compostos no período de confinamento, é inequívoca a catarse, então, como forma de sobrevivência diante da brutalidade e do arbítrio: fuga da fragmentação.
Publicados e relançados tantos anos depois (a 1ª ed. é de 1999), conjugam catarse e denúncia, e confirmam a coerência do eu. Falar das dores do cárcere impõe-se como atitude revolucionária: dividir, para a comunhão com o leitor, a memória de um tempo. Se há participação na alteridade, quando o poeta configura o torturado, temos, agora, um convite a nossa participação, na medida que recebemos um discurso da exemplaridade, e, com o eu, continuamos a travessia em demanda da liberdade.
A segunda parte do livro, Um canto da terra, pinta, com cores fortes, a situação dos trabalhadores rurais no Brasil. O tom é inflamado pela revolta e pelo objetivo da denúncia.
Centrado na camponesa Dionila, encontra, nessa mulher, a síntese do desespero e da desesperança de todas as vítimas da política fundiária. Como resultado, Dionila desindividualiza-se, adquirindo linhas emblemáticas, que remetem a uma proposta política.
Liberta das circunstâncias imediatas, Dionila aproxima-se da Virgem Maria, enquanto protetora dos que padecem “neste vale de lágrimas”, e, como figura central na liturgia da luta, é invocada pelo autor como “ nossa mãe camponesa,”.
Do livro de Vanderley recebemos lições de certezas. Uma é amarga: refere-se à permanência do arbítrio, que, camaleonicamente, muda sua atuação, para atingir novas vítimas, em qualquer tempo, não importa o palco. A segunda é inquietante: livramo-nos do esquecimento e perdemos a indiferença. O discurso poético sugere que todos contribuam para o fim do arbítrio como rotina da História, que, renovada, um dia permitirá às Dionilas de todas as latitudes plantar e colher o feijão nosso de cada dia, sem o medo universal da violência devastadora: “Nenhum inferno abaixo de nós/ E acima apenas o espaço/(…) Nada para matar ou morrer/ E nenhuma religião”. (Lennon)