O belo é subjetivo. A verdade, também. Para Bruno, Angélica é bela e Ronaldo é um personagem. Para Angélica, a natureza é o que resume a perfeição e Ronaldo é um canalha. Para Ronaldo, bela deve ser a vista de sua mansão e Angélica e Bruno não têm a menor importância.
Em Moça com chapéu de palha, de Menalton Braff, Bruno é o protagonista, Angélica é a amada e Ronaldo é o pretexto. O jornalista Bruno descobre uma falcatrua do ricaço Ronaldo, amigo do dono da gazeta em que trabalha. Apesar de aconselhado ao contrário, leva a idéia do jornalismo investigativo às últimas conseqüências e acaba ficando sem emprego. A amada o consola incentivando a produção de um livro sobre a experiência. Bruno gosta, mas fica um pouco perdido: um livro-reportagem ou um romance? Na dúvida, faz um híbrido. A amada lê, mas como também é artista (pintora), aponta várias imperfeições e/ou diferenças estilísticas.
Saber o que o canalha do Ronaldo fez não é crucial. É um detalhe bem pequeno na discussão que Braff propõe sobre ética, verdade, impressões, jornalismo e pincéis. Não que a discussão seja muito calorosa ou importante. É, por exemplo, bem mais apagada do que as constantes declarações de amor do narrador pela artista plástica. Mas que ela existe — a discussão —, não se pode negar. No entanto, não vou entrar nesses assuntos.
Moça com chapéu de palha é um romance inspirado na série de pinturas da catedral de Rouen feitas pelo impressionista Claude Monet. O francês retratou a igreja em cerca de 50 telas. Cada uma com algo diferente, como a luz ou o ângulo. Os resultados, claro, são belezas e impressões (ou verdades, se quiser) diferentes. A história de Bruno, Angélica, Ronaldo e alguns outros personagens que aparecem aqui e ali pegou carona nessa técnica. A mesma hitória é contada, recontada, contada de novo, e novamente, à exaustão. Traz aspectos diferentes, com algumas nuances diversas mas o mesmo “objeto”. Em alguns momentos a repetição é usada para que o leitor perceba as mudanças que Bruno fez em sua obra, depois das sugestões de Angélica:
“Capítulo I
Este livro foi sugestão de Angélica.
Saí da sala de Armando sem qualquer idéia que me deixasse inteiro comigo e com os mapas da vida, meu destino, então telefonei a ela explicando o que tinha acontecido, acrescentando que estava de saída para o sítio (…) Desliguei o celular com a impressão de que a tinha deixado um pouco abalada porque fez um silêncio acima de seu hábito e encerrou a conversa dizendo apenas que sim, sim, que estava tudo bem.”
“Capítulo I
Saí da sala do Evandro desprovido de futuro, minha pele áspera exposta, sem qualquer idéia do que fazer comigo naquele túnel escuro. Telefonei à Ângela explicando o que tinha acontecido no emprego e acrescentei que estava de partida para o sítio. (…) Desliguei o celular com a impressão de que a tinha deixado um tanto abalada. Ela fez um silêncio tão amarelo que mais parecia uma hipérbole, para encerrar a conversa, por fim, dizendo apenas sim, sim, estava tudo bem.”
Em outros, Braff usa a repetição para tentar, como Monet, oferecer uma visão diferente sobre o mesmo assunto — ora como narrador de Moça com chapéu de palha, ora como o jornalista/escritor:
“Deixo a escova de dentes cair no corredor e não me abaixo para apanhá-la. Esta chamada em hora tão sem propósito me deixa apreensivo, meio descontrolado. (…) Eu não sei o que me espera porque não quero saber. Finjo que não sei? Me recuso a esta certeza morna, que desde ontem mantenho presa em fundo escuro. É com minha mão suada que ergo o telefone do pino.”
“Enquanto saía do banheiro limpando a boca, regozijava-me com a atitude da véspera. Mas então já sabia quem me esperava na outra ponta da linha e conhecia os próximos lances? Nunca fui dado a premonições, mas havia uma lógica a ligar os fatos uns aos outros que eu não podia ignorar.”
Braff podia carregar um pouco mais nos pincéis. A repetição, a mesma história sem fim, cansa quando as nuances são muito pequenas. Bruno poderia ser mais protagonista. Angélica poderia ter mais humanidade. E Ronaldo poderia ter importância.
Para mim, essa técnica impressionista funcionou muito melhor na pintura. Mas o belo é subjetivo. E a verdade, também.