Melancolia emoldurada

O pintassilgo, de Donna Tartt, é uma pintura fiel da angústia
Donna Tartt, autora de “O pintassilgo”
07/10/2015

Com quase um quilo e mais de setecentas páginas, O pintassilgo, de Donna Tartt, está longe de ser um livro leve. E não falo apenas do aspecto físico. Narrado em primeira pessoa por Theodore Decker, um rapaz que perde a mãe aos 13 anos de idade durante um ataque terrorista ao Metropolitan Museum of Art, em Nova York, o romance vencedor do Pulitzer de 2014 é carregado de dor.

Na infância, o protagonista mantinha uma intensa relação de cumplicidade, dependência e amor com a mãe. Após o incêndio, ele se vê desamparado e precisa lidar com a perda de sua principal referência. Entre sessões de terapia, olhares piedosos e uma chaga existencial irreparável, o garoto luta para caber no confuso futuro que o aguarda. De repente, é obrigado a abandonar o confortável apartamento em que vive para morar de favor com a família do amigo Andy. Depois, vai parar na casa do pai displicente, em Las Vegas, onde lhe faltam atenção e carinho e lhe sobra permissão para usar drogas, faltar à escola e fazer o que quiser — mediante duras penas que só a vida aplicaria.

Enquanto Theo encara o desafio de construir uma nova rotina a partir dos cacos deixados pela ausência, o mundo ao seu redor continua o mesmo, mostrando-se alheio ao seu doloroso descaminho. E Donna Tartt apresenta esse processo com muita sensibilidade: a imagem do menino solitário é contraposta ao fluxo constante das ruas que nada sabem (e jamais saberiam) sobre sua dor. Nesse contexto, o choque que separa Theo da progenitora o lança sem a menor piedade na contramão de tudo o que ele conhecia até aquele momento.

Theodore começa a contar sua história por volta dos 27 anos em uma situação tensa, cuja natureza não fica muito clara a princípio. Tudo indica que o personagem é foragido da justiça. Olhando para trás, pondera minuciosamente os altos e baixos que viveu após a tragédia no museu, montando um quebra-cabeça do destino que o fez adulto. Essa trajetória é contada de maneira honesta, como se escrever fosse uma forma de o narrador se redimir de escolhas erradas que fez e questionar até que ponto ter nadado contra a maré da moral foi realmente uma opção ou mera consequência da catástrofe que mudou sua vida para sempre.

No livro — comparado por alguns críticos ao Apanhador no campo de centeio, de J. D Salinger —, o narrador retorna com muita coragem ao seu passado, para, em seguida, reproduzi-lo — muitas vezes de forma visceral — com uma voz pesarosa e penitente. Nesse sentido, O pintassilgo é mais do que um romance de formação: é também um romance de redenção para Theo, que escreve para se conhecer e, quem sabe, se perdoar.

O título do livro é uma menção ao quadro de mesmo nome, pintado pelo holandês Carel Fabritius, em 1654. Ao escapar do incêndio que matou sua mãe, Theodore, aconselhado por uma das vítimas da tragédia, leva a obra consigo. A relíquia não o acompanha apenas até sua casa. Ela o segue pelo resto de sua adolescência e ganha cada vez mais importância ao longo dos capítulos. Além de o quadro ter uma relevância prática nos acontecimentos narrados (não vou contar melhor para evitar spoillers), a imagem do pássaro preso e sozinho estampada na tela tem um aspecto simbólico que nos ajuda a enxergar a posição de Theodore, perdido e enclausurado em uma vida da qual ele parece não se orgulhar.

A melancolia do rapaz expressada na entonação de sua narrativa pessimista e nebulosa se encaixa perfeitamente nas tragédias que ele relata. E tanto a voz amargurada quanto a descrição minuciosa de infortúnios são cruciais para que o leitor entenda de que lugar e em que estado de espírito o herói conta sua saga.

Voz masculina
Donna Tartt, que já afirmou ter certo gosto por construir narradores masculinos, não teve o menor pudor em conceber um protagonista moldado pelo conceito rígido de masculinidade da sociedade que o abarca. Durão, Theo muitas vezes se obriga a não demonstrar sentimentos em público, ainda que pareça querer explodir. Também faz considerações machistas quando está ao lado do rebelde amigo Bóris e mantém uma postura austera e defensiva, sufocando o caos sentimental que o amarra. Mesmo em meio a tantas tragédias, o locutor se esforça para não sair do modo homem-não-chora, como uma espécie de estratégia de defesa e autoafirmação. Isso torna a história mais convincente e expõe ironicamente esse questionável e contraditório posicionamento do personagem.

Críticas
A leitura tende a fluir com rapidez. O ritmo é acelerado, as frases são simples, e os desencadeamentos da tragédia que introduz o romance são arrebatadores. Ainda assim, não há muitos trechos com revelações ou citações muito impactantes. Isso não justifica o fato de muitos críticos terem atribuído o status de obra menor ao mais recente trabalho de Donna Tartt, que, na visão deles, não era boa o bastante para o Pulitzer. James Wood, da New Yorker, por exemplo, disse à revista Vanity Fair que “o arrebatamento com que O pintassilgo foi recebido é mais uma prova da infantilização da nossa cultura: um mundo no qual adultos circulam com Harry Potter sob axilas”. Convenhamos que essa ideia é um pouco injusta — com Tartt e com J. K. Rowling.

Com mais de 1,5 milhão de cópias vendidas só nos Estados Unidos, o romance, que já teve os direitos cedidos à Warner Bros e vai virar filme, não é realmente um festival de aforismos e reflexões das mais profundas e pode figurar tranquilamente na cabeceira de quem não tem muito contato com a literatura. Entretanto, é rico em relatos que fomentam uma definição impecável dos papéis. Acontecimentos que podem parecer desnecessários para a tônica central da história são extremamente importantes para quem quer alcançar toda a extensão do caráter de cada personagem. Essa construção bem feita nos faz escorregar pelas páginas com uma vontade cada vez maior de saber o que está por vir. Por isso, as 724 páginas são mais do que necessárias. Por isso, mesmo com tantos capítulos, o livro não é cansativo. Por isso, o romance é um bom trabalho. Não exatamente muito mais do que isso, mas, sim, é um bom trabalho.

Trabalho de uma década
Donna Tartt é discreta, não costuma comparecer a eventos literários e, desde que lançou seu primeiro livro, A história secreta, em 1992, aparece mais ou menos a cada dez anos com um livro novo balançando as estribeiras do mercado editorial e atraindo holofotes da imprensa. Portanto, seu silêncio e discrição não representam um hiato criativo, muito pelo contrário. Questionada sobre o tempo que leva para conceber seus romances, ela confessou ter até tentado escrever mais rápido, mas não conseguiu dedicar a um projeto menos respiro do que ele merecia.

Para os fãs, esperar é o que menos importa. Afinal, de contas, o que são dez anos se comparados à eternidade de um bom romance? E a trajetória literária de Tartt aponta um avanço constante da qualidade de seu texto — o próximo é sempre o melhor. Não por acaso, o último foi agraciado com o mais importante prêmio de ficção dos Estados Unidos e, se depender dessa lógica, estamos a uma década de um produto ainda mais denso.

O pintassilgo

Donna Tartt
Trad.: Sara Grünhagen
Companhia das Letras
721 págs.
Donna Tartt
É ensaísta, romancista e crítica literária estadunidense. Nasceu no Mississipi, em 1961, e publicou seu primeiro romance em 1992. A história secreta, que começou a ser escrito quando a autora ainda estava no segundo ano de faculdade, tornou-se um best-seller e foi traduzido para 24 línguas. Sua segunda obra, O pequeno amigo, lançada dez anos depois, também foi bem recebida. Seu mais recente trabalho, O pintassilgo, de 2013, potencializou o prestígio da escritora, e levou o Prêmio Pulitzer de ficção no ano passado.
Lívia Inácio

É jornalista e já trabalhou em jornal, revista, TV e assessoria de imprensa. Publicou um livro de contos infantis e coordenou um projeto de incentivo à leitura para crianças durante três anos. Natural de Franca (SP). Mantém o blog Rodapé, na Gazeta do Povo, onde escreve sobre literatura.

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