A literatura contemporânea segue por diversas vias. Alguns autores trazem para as letras a experiência autobiográfica, insuflando ares literários à história da própria vida; outros seguem o percurso da História, apresentando personagens ora reais ora fictícios; e há aqueles que optam pela via expressa da ficção, mostrando que não há mal algum em continuar inventando histórias. Além disso, poderiam dizer que dessas histórias possivelmente serão tiradas as teorias mais tarde estudadas pela filosofia, psicologia e, quem sabe, psicanálise. O livro de Alexandre Vidal Porto pertence a esta última.
Sérgio Y. vai à América (vencedor do Prêmio Paraná 2012) é um romance intrigante por vários motivos. O primeiro deles é porque aborda o dia a dia de um psiquiatra, o tratamento e a vida de um de seus pacientes. Tarefa difícil do ponto de vista do escritor, já que Alexandre não exerce a profissão de médico. Seu narrador, no entanto, descreve a clínica psiquiátrica com requinte. O outro motivo é porque o romance fala de personagens em trânsito. Isso mesmo, e essa palavra precisa ser reiterada. Num primeiro sentido, trata-se do trânsito entre as distâncias a serem percorridas pelas pessoas, já que muitas delas escolheram o caminho da imigração, tema abordado durante boa parte da narrativa. O segundo sentido, dentro do constante deslocamento que é a própria literatura, enfoca uma questão até certo ponto tabu, e muito discutida nos dias de hoje. A possibilidade de escolha da própria sexualidade. Na narrativa, o tema aparece em duas oportunidades e em relação a dois personagens distintos.
O livro começa com o narrador contando a história de sua vida. “Como falarei da vida alheia, é justo que também fale da minha. Meu nome é Armando. […] Aparento mais idade do que tenho. Mas esta velhice precoce é comum entre os psiquiatras. Absorvemos os problemas dos pacientes. Envelhecemos por eles.” A partir deste segmento, o autor faz o personagem contar sobre sua vida pregressa, passando pelos pais, e o caminho que seguiu até se formar como médico. Armando é uma pessoa altamente preparada, tendo feito residência nos Estados Unidos, já tem setenta anos de idade e pode se dar ao luxo de atender em seu consultório apenas quem deseja. Como ele mesmo afirma: pacientes que lhe despertam interesse.
Mas a vida deste médico começa a mudar quando aparece no seu consultório o personagem que ele nomeia de Sérgio Y., um rapaz de dezessete anos. “Quero deixar claro que não gostaria, a esta altura da vida, de expor a intimidade de uma pessoa que confiou sua privacidade a mim. No entanto, se comento esse caso clínico e, de alguma maneira, falto com meu juramento profissional, é pela mais meritória das razões.” A partir deste trecho, Armando passa a relatar um interessante caso que clinicou.
Felicidade mínima
O jovem aparece por recomendação da diretora da escola onde estuda, uma antiga conhecida do psiquiatra. Não há nada demais com ele, apenas “queria garantir um futuro minimamente feliz”.
Sérgio frequenta algumas sessões. Num determinado dia, anuncia que vai passar uma temporada em Nova York. Cumpre o seu projeto. A viagem parece lhe fazer um bem imenso. Ao voltar, vai a mais uma ou duas sessões e anuncia que deixará o tratamento, pois o que procurava por meio da terapia já havia conseguido. Segundo ele, o psiquiatra lhe revelara algo que o fez tomar uma determinada decisão. Só que Sérgio não revela ao médico que palavras deste o ajudaram ver a vida com outros olhos. O rapaz, então, embarca em definitivo para a América e lá espera alcançar a sua felicidade. Somente alguns anos depois é que o Dr. Armando saberá o significado de tal felicidade.
Na vida do médico, a cidade de São Paulo aparece como pano de fundo, trazendo como lastro todos os seus problemas, como os de trânsito e os das enchentes. Armando observa esta paisagem do alto do edifício onde fica o seu consultório.
O livro se divide em duas dezenas de capítulos, todos com títulos que, de certa forma, insinuam o que será discutido em cada um deles. Um dos pontos essenciais do livro é a culpa que o psiquiatra passa a carregar a partir do momento em que descobre ter sido o responsável pelo que aconteceu ao seu paciente. Na verdade, uma das questões prementes no livro é a seguinte: qual a responsabilidade do terapeuta no destino de seu paciente? Pergunta incômoda em um mundo inundado cada vez mais por diversas formas de tratamentos, cujos profissionais lavam as mãos em relação ao futuro de quem atendem. Mas esse não é o caso do Dr. Armando. E essa é a deixa para entender talvez a única fragilidade do romance, o que é um médico nas mãos de um romancista.
Outro ponto interessante do livro é o estranhamento produzido pela transgressão à ideologia. A história narrada por Alexandre Vidal Porto, como aborda a questão da transexualidade, acaba por apontar o desconforto que o tema comporta. Mesmo numa sociedade em que o direito das minorias está assegurado (pelo menos no mundo desenvolvido), e que convivem pessoas esclarecidas, como o Dr. Armando, tal aceitação ainda é problemática.
O livro não deixa de observar que, no passado, a opção pela sexualidade desejada também era exercida, mas de forma disfarçada. E a sociedade, quando tinha conhecimento de algum caso, agia com hipocrisia se o envolvido era membro de sua família, e com escárnio caso se tratasse de família alheia.
Não faz muito tempo Lars Von Trier estreou o seu filme Melancolia. O cineasta dinamarquês nomeou simbolicamente de “Melancolia” um planeta que estava prestes a colidir com a Terra, levando, em consequência, a vida humana à extinção. Na verdade, segundo o autor, é a melancolia que pouco a pouco acaba com a vida das pessoas. Embora de outro modo, Vidal Porto aborda o tema, que é caro à psicanálise. Em Sérgio Y. vai à América uma forte dose de melancolia ronda todos os personagens, sobretudo o protagonista. Armando é oriundo de uma família respeitada, possuidor de recursos que a maioria dos cidadãos não usufrui, estudou nos Estados Unidos, possui uma filha que também trilha o caminho do sucesso; portanto, tem tudo para ser feliz. Não é isso, no entanto, o que acontece. Ele é um homem solitário, sem diálogo com a maioria das pessoas, e melancólico. Uma das poucas interlocuções que estabelece à sua volta é a prática da profissão. O personagem não tem a solução para o mal que o espreita e que, de certa forma, lhe corrói a alma.
A viagem de Sérgio Y. revela-se sem volta para o Dr. Armando, cuja vida afunila-se após o aparecimento e desaparecimento do paciente. É a literatura — sendo ela também um deslocamento — quase a perguntar: é possível a obra de arte salvar uma pessoa do enlouquecimento?