Os entendidos no assunto afirmam que o homem é o único animal que ri. Mas será que é o único capaz de chorar? Mãos à obra, estudiosos da matéria desumana. As comparações científicas têm lá sua dose de esquisitice e pretendo dar minha modesta contribuição. Então, prezados cientistas, respondam: o homem é o único animal que conta histórias? Agora eu quero ver! Pela quantidade de bobagens editadas, desconfio que os tais animais irracionais também escrevam livros. O território preferido dessa turma é sempre o conto. Repito: não adianta a boa idéia, se o pretenso escritor não sabe desenvolvê-la, afastá-la do lugar-comum, do clichê. Esses animais, os falsos escritores, levaram a poesia brasileira às vias da extinção — ainda é possível encontrar um Cassas, um Nejar, uma Mariana Ianelli, um Lucchesi, um Rodrigo Petrônio — e agora voltam suas baterias para o conto. Qualquer episódio que fuja ao robotizado dia-a-dia de nossa existência patética vale o espanto: “isso daria um conto!” Não daria não. O que faz um conto é um bom escritor. Uma tragédia! Vou fazer a minha parte, denunciando essa malta apontando-lhes o meu silêncio.
Mas não será tarefa fácil, a mediocridade aumenta a cada livro publicado e acaba sufocando os bons, aqueles que dignificam a literatura. Entre esses raros que valem a pena está Amilcar Neves e seu Relato de sonhos e de lutas — um livro que provoca, entre tantas reflexões, uma indagação: por que só ele e mais meia dúzia escrevem assim? Note, paciente leitor, escrever bem, ser um grande escritor, não implica em saber todas as regras gramaticais; no fim, um revisor ajeita; pelo menos é o que se espera, mas não é bem assim — o importante é ter histórias consistentes e saber contá-las. E Amilcar as tem e sabe contar.
Dividido em duas partes (O sonho e A luta), Relato de sonhos e de lutas não é isso ou aquilo, é tudo, é tudo que a vida permite, é a mistura, a imbricação, realidade e ficção sem limites, a realidade do dia-a-dia e a realidade fantasiada, o extraordinário passa a ser mais verdadeiro, mais plausível, que o real. Em todos os cantos um perfume de melancolia e solidão. Amilcar não conclui, não é definitivo em nenhum de seus cantos, como um aviso ao leitor para este se manter atento às repetições, para a rotina e suas disfarçadas frustrações. Os personagens de Amilcar não agem, se enquadram, não se revoltam, transferem a terceiros suas necessidades de extravasar, buscam alguém para seguir, mesmo que seja uma paisagem, afinal de contas, o horizonte pode ser o grande líder ou quem sabe a nossa maior ambição. Conformistas? Não. Muito pelo contrário. Mas com que armas lutar contra a rotina opressora, quer a da menina interiorana, quer a do manifestante impedido pela truculência policial ou da personagem que percebe o aumento da opressão perpetrada pela metrópole? A mistura do real com o irreal, recordam? Se o que rege a existência é o desgosto, o que nos cerca passa a ser irreal. De onde extrair o sentido da vida, se não passamos de meros coadjuvantes? Diagnóstico perfeito, profilaxia, impossível. Perceberam que a sublimação tem lá um papel preponderante em nossas vidas? Leiam Relatos de sonhos e de lutas e depois conversamos.
Mas nem tudo é tão trágico assim — durante grande parte de nosso dia, conseguimos nos afastar do mundo exterior, o momento do sono, do sonho, onde somos nós mesmos, onde só aparecem os nossos sentimentos. E nos sonhos acreditamos no que imaginamos. A fundamental trégua renovadora.
Essa contaminação onírica é uma das principais características dos contos de Amilcar, emprestando às suas histórias uma trágica beleza poética, uma competência sintática fora do comum e uma economia narrativa impressionante e objetiva.
A inquietante recorrência da solidão acentua a importância do espaço como personagem, seja na arquibancada de um estádio de futebol, seja o interior de um avião, ou o prédio em construção, a metrópole, a cidadezinha interiorana. A solidão não escolhe espaço, acelera o tempo e a sorte do tempo é a morte. Realidade? Quem sabe? Mas o que é a realidade se não um objeto do artista, algo que pode, e deve, ser transformado, subvertido.
Paixão dolorida
Relatos de sonhos e de lutas só não é um livro perfeito porque um aspecto foge ao equilíbrio, tão raro, entre os oito contos, a excepcional capacidade criativa, imaginativa de seu autor. Uma obra de arte, verdadeira, daquelas que se pode traduzir em paixão. Mesmo que numa paixão dolorida. Você não precisa percebê-la com amor, tampouco com ternura, mas com paixão, até com medo. O amor depois do olhar se transforma em compaixão ou algo do gênero, morno, ameno. A paixão exige uma nova forma, intensa, capaz de fertilizar a criatividade. Tudo isso em contos concisos, precisos como o olhar, plenos de ironia e ternura ácida. Palavras quase mudas acusando a fragmentação existencial, fragmentação que exclui o eu das personagens do mundo e gera um mosaico de discursos, um quebra-cabeças sem sentido. É nesse momento que o autor se abandona e se transfere à imaginação do leitor. Imaginação esta que ajudou a despertar. Não, paciente leitor, não é para principiantes.
Está duvidando, acha que o cara é meu amigo e o estou a incensar gratuitamente, é? Acompanhe, pois. Você conhece um conto, um belo conto, ausente de verbos, conhece? E você sabe da importância dos verbos, sabe que o verbo é o veículo de expressão do tempo na linguagem? Claro que sabe! E sabedor disso, entende como fácil a tarefa de escrever um conto sem utilizar verbos? Impossível?
Então leia Dez encantos, leia, releia, examine e depois quando algum desavisado falar em experimentalismo, use esse conto como emblema. Convém lembrar a idade do conto, 21 anos.Cada dia mais novo.
São dez parágrafos em que elementos espaço-temporais colaboram para o estabelecimento do panorama de uma metrópole, São Paulo. A cidade, ao mesmo tempo cenário e personagem, motivo específico para a reflexão acerca da solidão, do materialismo, do exílio, do capitalismo, isso tudo sem o menor indício de recados apocalípticos da modernidade, recheados com as já modorrentas e exacerbadas pulsões sexuais. Simplesmente o retrato/lamento de uma metrópole atualizando uma cosmogonia existente.
Galera apresenta doze histórias envolvendo torcedores de futebol, ora ambientadas na arquibancada, ora em mesas de bar, sem esquecer o casal na cama, a mulher enganada pelo marido que gastou os noventa minutos do jogo no motel com a amante e agora não consegue dar conta do recado.
Em Ester o autor coloca a menina que empresta seu nome ao conto, no centro do mundo, ambientado numa cidadezinha do interior. Lembra do que foi dito anteriormente? Para a vida ter sentido é preciso que nos sintamos protagonistas. Pois é, Ester pensa assim, na tentativa vã de deter o tempo, o mesmo tempo de todos os dias, capaz de transformá-la numa anciã dentro de sua adolescência.
Aqui nesses rápidos exemplos mais uma amostra da relevância de Relatos de sonhos e de lutas, as personagens, ou melhor, a importância das personagens. Amilcar sabe que cabe exatamente às personagens a tarefa de iluminar a imaginação do leitor e as coloca logo em cena, personagem e paisagem se animam provocando uma valorização estética sem descuidar das exigências da língua.
Aqui um pequeno parêntese para expor minha mais recente irritação. Desconfio que certas editoras, entre elas a Record e a Leituras, não utilizam mais os serviços de revisão e copidesque ou então estejam pagando merrecas aos coitados. Exemplos de barbaridades no quesito: o livro Olympia, de Fausto Wolff (Leituras), onde você encontrará todo tipo de barbaridades do gênero, e para não fugir à regra o belo livro do Amilcar Neves tinha de ser contaminado. Está lá, página 141, “onde já aterriza a primeira mosca”. Não satisfeitos, conseguiram errar o nome do livro “Da importância de crias mancuspias”, na orelha de apresentação do autor. Detalhe? Sim detalhe e só os idiotas não entendem a importância dos detalhes.
Para concluir, é importante ressaltar os aspectos do fantástico encontrados principalmente no conto Vôo 254 onde “Orelhas distraídas fumam e Olheiras anunciam aos Olhos atentos que elas, Olheiras, haviam acertado uma vantajosa linha de financiamento com um banco de Toronto”. Não mais do que os vidros permitem é mais uma jóia desse tesouro. Nele tudo é enigma, doce mistério, indispensável lição. Arte, felizardo leitor, a mais genuína arte.
Arte que engana o tempo, mesmo que olhares ansiosos não a alimentem.