Parcela dos escritores brasileiros contemporâneos sofre de uma estranha patologia: escrevem não para satisfazer seus impulsos criativos, mas, principalmente, para cumprir determinados preceitos. Dito de outra forma, alguns escritores submetem a criatividade às regras difundidas por supostos expertos, ou, pior, ao gosto das panelinhas. A escrita se afasta, assim, do seu verdadeiro caráter — o de exercício de comunicação —, transformando-se num fetiche. A literatura produzida segundo tais critérios não é só exclusivista, mas pedante e artificial, além de subserviente: nasce para agradar a uns poucos, para corresponder àquelas teorias que certos literatos diluíram e transformaram em receitas aparentemente infalíveis.
Mas serei didático. Vamos a um exemplo que tornará mais compreensível o parágrafo acima.
A vida, muitas vezes, parece um indistinguível conjunto de ausências. Ao rememorarmos, no final do dia, tudo que fizemos, percebemos como a reconstituição fidedigna dos nossos atos é impossível. Algo nos escapa; às vezes, um detalhe importante. E, ao tentarmos realizar o balanço do que restou em nossa memória, descobrimos que a fatia de realidade à qual procuramos acrescentar nossa marca — a ínfima seqüência do real que, revisitada, gostaríamos de vislumbrar para poder concluir, com absoluta certeza: “Passei por aqui, toquei este objeto, comuniquei-me com este ser” —, essa parcela de verdade, praticamente inexiste, como se a vida não fosse mais que um vôo rasteiro, capaz apenas de tatear superficialmente o existir.
Uma citação dos diários de Liev Tolstói, de 28 de fevereiro de 1897, utilizada por Victor Borisovitch Chklovski em seu ensaio A arte como procedimento, pode elucidar a sensação de desconforto que é inseparável do nosso cotidiano:
Eu secava no quarto e, fazendo uma volta, aproximei-me do divã e não podia me lembrar se o havia secado ou não. Como estes movimentos são habituais e inconscientes, não me lembrava e sentia que já era impossível fazê-lo. Então, se sequei e me esqueci, isto é, se agi inconscientemente, era exatamente como se não o tivesse feito. Se alguém conscientemente me tivesse visto, poder-se-ia reconstituir o gesto. Mas se ninguém o viu ou se o viu inconscientemente, se toda a vida complexa de muita gente se desenrola inconscientemente, então é como se esta vida não tivesse sido.
Entre os inúmeros comentários de Chklovski a este trecho, especialmente um chama a atenção, pelo teor de verdade que o estudioso russo concentra em uma única frase: “A automatização engole os objetos”.
O desejo daqueles que possuem um mínimo de autoconsciência é, sem dúvida, o de que todos os atos só se concretizassem depois de uma reflexão prévia, cuja intensidade fosse suficiente para revelar as mais secretas intenções: a gama de condicionamentos ocultos, sorrateiramente, sob a aparência de naturalidade que forra o viver. E, acrescento, não bastaria que conhecêssemos as razões que nos impulsionam, mas seria imprescindível concentrar a atenção em cada uma de nossas decisões, no exato momento em que agimos, além de prever as possíveis conseqüências de nossos atos. Se tal irrestrita consciência fosse possível, cada insignificante gesto nasceria apartado de toda banalidade.
Sabemos, contudo, que não é assim. E estamos cientes de que o estranhamento de Tolstói é um sintoma que experimentamos com relativa freqüência.
A arte, no entanto, pode nos ajudar no sentido de superarmos esse distanciamento em relação à vida. Ela detém o poder de lacerar a banalidade ou, no que se refere à literatura, criar uma realidade paralela de tal maneira envolvente que, ao despertar em nós o que costuma ser condenado à letargia (por nossa limitada capacidade de percepção), romper o automatismo do cotidiano e conceder significação, muitas vezes inusitada, ao real.
Victor Chklovski fala exatamente sobre isso, ao comentar o trecho de Tolstói:
E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama de arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo, e deve ser prolongado (…).
As afirmações de Chklovski são conhecidas. Suas idéias foram disseminadas no bojo das correntes estéticas que, de um modo ou de outro, se inspiraram no formalismo russo ou se filiaram a seus princípios. No entanto, foi graças a tal disseminação que essa teoria — utilizada, no caso acima, para explicitar as qualidades de Tolstói — tornou-se uma regra absoluta. E, como todas as regras, reduziu a riqueza das propostas de Chklovski a um só ponto: “O procedimento da arte é o procedimento de aumentar a dificuldade e a duração da percepção”.
Simplificação
Não bastasse tal reducionismo, os reprodutores do pensamento de Chklovski desprezaram o fato de que os exemplos citados no ensaio, extraídos da ficção de Tolstói, não apresentavam uma leitura penosa, árdua ou cheia de obstáculos. Esses repetidores cegos preferiram entender “dificuldade” como “dificultar a leitura a qualquer custo” — e esmeraram-se no sentido de esquecer, por exemplo, a ponderação que Chklovski faz: “(…) a liberação do objeto do automatismo perceptivo se estabeleceu por diferentes meios; neste artigo, quero indicar um destes meios do qual quase que constantemente se serviu Tolstói (…)”.
À evidência de que Chklovski não tem a pretensão de expor uma receita sobre como escrever textos literários — ele não só enaltece o estilo claro, plenamente inteligível do autor de Anna Kariênina, como insiste em dizer que seu objetivo é apresentar apenas “um” dos meios utilizados por Tolstói —, devemos acrescentar a péssima leitura que alguns escritores, críticos e acadêmicos fizeram do ensaio: entenderam, repito, o termo “dificuldade” de forma extremamente simplista; submeteram o trabalho do teórico a um raciocínio esquemático; e a minuciosa análise do texto tolstoiano foi colocada de lado, certamente para que não maculasse a excelência do novo mandamento.
Essa simplificação é prática comum, não só em teoria literária. Dilui-se a complexidade para se adquirir uma certeza, a receita infalível sobre quais procedimentos devem ser seguidos — neste caso, para se criar obras realmente “modernas”. A maioria dos mestres mostra-se pródiga nesse sentido, e a repetição constante, é claro, gera resultados medíocres, desalentadores.
No caso específico da literatura, tal regra tem servido a uma perigosa mistificação: a de que a verdadeira obra de arte é difícil de ser compreendida. Essa mentira resultou — e continua a resultar — em escritores que, para cumprir o dogma, especializam-se em erigir a linguagem à condição de protagonista da obra. A obediência cega à suposta lei gerou — e continua a gerar — obras sem enredo e sem personagens, ou narrativas nas quais enredo, personagens, fluxo de tempo, configuração do espaço etc., amontoam-se num verdadeiro caos.
Dessa forma, parte da produção literária distanciou-se radicalmente do receptor da mensagem, do leitor, transformando-o em um ser incapacitado para decodificar o texto, condenando-o a ler sem entender, ou ler defrontando-se com dificuldades sobre dificuldades. A falsificação da teoria de Chklovski foi transformada em uma espécie de tormento, nova técnica de tortura, cujo objetivo é impedir que o leitor cumpra seu papel de co-autor. Sem dúvida, quando a linguagem serve apenas à reinvenção de si mesma, esquecendo-se do ato de narrar, a leitura — o exercício de recriar a obra — torna-se impossível.
Devaneio
No afã de corresponder à mentira disseminada em nome de Chklovski, inúmeros escritores se concentram em elaborar a linguagem de tal modo que, ao término de seus esforços, são compreendidos apenas por si próprios ou, quiçá, por um seleto grupo de iluminados.
Obedecendo a um atavismo desolador, esses escritores repetem o que Antonio Candido detectou inclusive nos primórdios da nossa literatura: a situação artificial em que os próprios escritores são “ao mesmo tempo grupo criador, transmissor e receptor; grupo multifuncional de ressonância limitada e dúbia caracterização, onde a literatura acabava por abafar a si mesma, esterilizando-se por falta de um ponto de apoio”.
Fechados em si mesmos, presos à falsa necessidade de criar uma nova vanguarda a cada amanhecer, bajulando-se em suas seitas particulares, tais escritores parecem buscar o que Gustave Flaubert expressou certa vez:
O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem amarra exterior, que se sustentaria pela força interna de seu estilo, como a Terra, sem estar sustentada, se mantém no ar, um livro que não teria quase tema, ou pelo menos em que o tema fosse quase invisível, se é que pode haver.
Inebriante devaneio, sem dúvida. Mas apenas devaneio.
Partindo do afã de dificultar, a qualquer custo, a recepção da obra literária, e passando por centenas de outras simplificações, semelhantes à quimera flaubertiana e repetidas ad nauseam, chegamos ao que diagnostico como narratofobia — a paúra de narrar —, reforçada, em inúmeros casos, por uma evidente insegurança no domínio da linguagem. (É risível, aliás, o caradurismo de alguns escritores, que justificam seu desconhecimento e sua negligência em relação à língua citando ambíguas opções estéticas. Seria bom lembrá-los de que esses argumentos caíram em desuso quando soaram as últimas patacoadas da Semana de 22…)
Os resultados de tal fobia são sempre nocivos para o leitor, abandonado diante da página impressa, condenado ao deserto no qual a imaginação, por mais que se esforce, não consegue dar conta de construir o que seria tarefa do escritor.
As conseqüências desse tipo de literatura, no entanto, não se esgotam na leitura obscura, forçosamente aflitiva. Nossos poucos leitores, ávidos por uma literatura que os conduza para longe da mesmice e da banalidade, encontram, nas livrarias, as seções de literatura brasileira abarrotadas de textos herméticos. É fatal, portanto, que sejam raptados para o mundo da subliteratura, tornando-se reféns dos romancinhos kardecistas e de outras tantas panacéias na forma de brochura.
Quando os escritores se submetem aos falsos mandamentos do “bem escrever”, quando se fecham na permanente recriação de um dialeto exclusivo, quando optam pelo purismo doentio, não apresentam apenas graves sintomas de narratofobia, mas certamente contribuem para manter os leitores presos ao cotidiano inconsciente, capturados pelo estranhamento e pelo automatismo que Liev Tolstói descreveu com perfeição.