Mau hálito, sangue, porra, menstruação e flatulência

(este texto não é aconselhável a quem tem medo de bichos-papões literários ou de palavrões que comecem com a segunda letra do alfabeto)
Rubem Fonseca, autor de “Diário de um fescenino”
01/06/2001

Quando vi a foto de Rubem Fonseca na revista Veja, quando do lançamento de seu Secreções, Excreções & Desatinos (Companhia das Letras, 144 págs.), tive ganas de matá-lo, como um protagonista assim meio bobo de seus contos. Afinal, ele era — é? — um bastião da literatura que não se rendia à grande mídia cultural, apesar de toda a pressão. Eu o olhava assim como um menino que acabou de ler Marx olha para um busto imperfeito de Lênin, ou seja, com uma mistura nada homogênea de admiração, inveja e medo. Rubem Fonseca, entretanto, foto na revista e tudo o mais, transformou-se em só mais um escritor em ser analisado por este resenhista. Ele perde, assim, ares de mito (resta-me um!) — ainda bem.

Não que eu ache que precisemos de qualquer tipo de bastião em nossa literatura, que considero virtualmente perdida. Olho para os lados e vejo o Valêncio Xavier fazendo sucesso; vejo Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles, os mesmos nomes de sempre sendo homenageados (não sem as devidas honras, vale dizer), mas não vejo nada no horizonte que não a areia estéril do deserto. Em conversa com outro admirador de nossas letras, concordamos que Portugal, aquela minúscula porção de terra no pé-de-serra da Europa é hoje muito mais dinâmica que a nossa. A literatura brasileira envelheceu e Rubem Fonseca é um retrato (sem trocadilho) disso.

Junto com nossos ficcionistas envelheceram também aqueles que lêem. Muito rápido ganharam pêlos na cara, os homens, e as mulheres tiveram os corpos moldados por felizes gravidezes que lhes trouxeram crianças saudáveis, muitas delas alimentadas com papinha Nestlè. Esqueceram-se, tais casais, da voracidade da contracultura — isto para quem a viveu, lógico — e trataram de arranjar um financiamento de 20 anos pela Caixa, que agora estão terminando de pagar. O apartamento apresenta aqui e ali uma infiltração; a filha transa com o namorado em casa e o filho pede ao pai dinheiro para comprar um baseado legal na Holanda. Quando se sentam em frente à TV (ou à Internet), não dão a mínima para a violência que vêem. Tudo é muito mais divertido num filme do Tarantino, pensam, não sem certa razão. Tudo é ao mesmo tempo próximo e afastado demais para eles, que vivem num condomínio com câmeras instaladas nos elevadores.

Serão estes, porém, os leitores de Rubem Fonseca em Secreções… Eles recebem a revista Veja todas as semanas e acompanham com algum interesse a seção de cinema e literatura. Dão uma olhadela na lista dos mais vendidos e o pai, não sem um sentimento de culpa, pelo menos uma vez por mês compra um livro para a família. Se ele vai realmente ser lido — quem se importa? Na faculdade dizem à filha do nosso casal que ela tem de ler e ela lê o que lhe cai às mãos. Por acaso, um livro de capa preta combina com a roupa que usará para ir à boate à noite, encontrar o namorado, tomar ice, a droga da moda, e, claro, transar. Enquanto espera ele ligar, ela começa a ler o conto de Rubem Fonseca que abre o volume, intitulado Copromancia. A boate, achamos, começa a ficar distante da noite do casalzinho.

Afinal, Rubem Fonseca, com foto na revista ou não, de bobo só tem a cara de velhinho inocente. Ele sabe que a violência não mais interessa ao leitor de seus livros. Ele sabe que muitos outros autores, entre eles sua seguidora fiel Patrícia Melo, abordam o assunto, e de maneira eficiente. Se lançado hoje, Feliz Ano Novo, com seu magistral conto inicial homônimo, que mistura ação, muita violência, premonição de caos social, algum humor e pornografia, jamais teria razão para ser censurado por um Armando Falcão da vida. Ele sabe que ninguém mais se choca com os palavrões na boca de madames. Sim, aquela senhora de nariz empinado e cinco sobrenomes pode muito bem dizer buceta ou foda-me sem que fiquemos ruborizados. Assim como o jornalista pode escrever caralho, buceta ou punheta sem que os leitores abandonem o texto neste exato momento.

(pausa para a reflexão…)

Assim sendo, Rubem Fonseca ataca logo de início com aquele que talvez seja o único tabu restante na nossa caótica sociedade; aquilo que produzimos no cantinho falsamente perfumado de nossos lares; aquilo que expelimos com um misto de prazer e resignação: a merda. É disso que fala o primeiro conto de Rubem Fonseca em Secreções, Excreções & Desatinos: merda, fezes, bosta, borra. O último estágio do quase demolido totem freudiano. Com inteligência e sarcasmo, o bom velhinho dá um tom Nova Era ao produto detestável de nossas privadas. E adiciona-lhe o ingrediente final: a morte. Merda e morte: as novas bases de uma sociedade.

Em Copromancia, a partir de experiências empíricas, um senhor começa a admirar, por assim dizer, as próprias fezes. E ele começa a ver certa razão para isso. Elas se dispõem de modo peculiar se algo está para lhe acontecer. Este personagem não nos é estranho, a nós que lemos Rubem Fonseca desde seu livro de estréia, Os Prisioneiros. Ele é o protagonista de uma das melhores histórias do autor, incluída em Histórias de Amor. Este homem descobre que as fezes indicam-lhe o destino. E o destino indica-lhe, claro, a morte.

A esta altura nossa leitora de ocasião ligou para o namorado e desmarcou o encontro. Hoje é sexta; amanhã é sábado e eles podem sair a qualquer dia da semana mesmo…

No terceiro conto do livro, Agora Você (ou José e Seus Irmãos), a excrescência é a própria palavra. Novamente neste conto Fonseca brinca com a auto-ajuda. A referência do título, aos iniciados, é obviamente, ao poema de Carlos Drummond de Andrade. Palavras, palavras, palavras: formas nojentas de violência; Lacan como falso Profeta, grupos como falsa cura.

A genialidade (odeio a palavra, mas deixo ela entrar aqui) só aparece em Secreções… no conto O Estuprador, em que o amor é nojento, transformado de ideal de romance de cavalaria ou poema provençal a doença psicossocial. Nele, Rubem Fonseca começa a despejar no leitor suas ironias nada sutis, seus aforismos risíveis, como “o homem apaixonado não tem nojos da mulher amada” (pág. 51), referindo-se a uma pústula (pegue o dicionário, corra!) que o protagonista beija.

A cena descrita acima o enoja? Que tal então o conto Belos Dentes e Bom Coração, marcado, logo no primeiro parágrafo, pela frase: “rir é bom, mas pode foder a vida de uma pessoa” (pág. 53)? Neste conto estranhíssimo, realmente assustador em sua forma degenerativa de violência, o ranho (ou meleca do nariz; não sei como o resto do Brasil chama esta coisa) é associado ao bom-mocismo do protagonista.

Claro que, num livro de Rubem Fonseca, haveria sexo. E dos bons. Só que em Secreções…, o sexo aparece como um momento em que o homem está vulnerável. Ali estão expostos seus pêlos mais recônditos; há muitos fluídos envolvidos e odores incontroláveis. O conto Beijinhos no Rosto traz o sexo como a própria secreção a ser analisada. É dele o melhor diálogo do livro.

Não se preocupe, querido, podemos ficar apenas conversando, adoro conversar com você.

Essa é uma das piores frases que um homem pode ouvir quando está nu com uma mulher nua na cama.

Há mais, muito mais: câncer, mau-hálito, menstruação e flatulência. Tudo, logicamente, envolto por certo lirismo, por muita violência (se o leitor ainda não percebeu, me desculpe mas tenho de alertá-lo de que a vida é violenta). A esta altura, nossa leitora virtual está engajada numa das obras-primas contidas neste livro. No conto Mecanismos de Defesa, Rubem Fonseca disserta sobre a ejaculação. Temos um momento brilhante, para dizer o mínimo. É o trecho que reproduzo abaixo, para quem tiver olhos de ler.

Ah, sim. Não posso deixar de citar e me contrapor, aqui, às críticas desfavoráveis que o livro recebeu de um que outro resenhista mais acanhado. Disseram se tratar de “mais um livro ao estilo Rubem Fonseca” ou que Rubem Fonseca torna a escrever sobre os mesmos assuntos, com o mesmo estilo. Onde o demérito disso? Até onde eu entenda — far away from here, como diria Blake —, um escritor ter desenvolvido um estilo é algo da mais alta reverência. Mesmo que ele exponha, depois de tanto tempo de suave e agradável anonimato físico, sua foto na revista semanal.

“Fertiliza ou morre, era o lema deles, dos quatrocentos milhões de espermatozóides contidos numa ejaculação. Apenas um costumava escapar. A mortandade destes seres não tinha igual na história das catástrofes. […] E no século 21, Godofredo acrescentava, com os graves problemas de comunicação agravados pela televisão e pela Internet, com os inevitáveis sofrimentos causados pelos nossos inevitáveis surtos de egocentrismo e narcisismo, com as frustrações resultantes da deterioração do meio ambiente, a masturbação era o mais puro dos prazeres que nos restavam.” (pág. 99)

Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho