Maternidade hostil

"A filha primitiva" leva o leitor a desconstruir a maternidade como um fenômeno instintivo, natural e inerentemente positivo
Vanessa Passos, autora de “A filha primitiva” Foto: Rogério Fernandes
01/12/2022

A filha primitiva, de Vanessa Passos, tem a coragem de expressar o ódio e a revolta diante da precariedade material da vida, do acaso sabotando sonhos, da fragilidade e do aprisionamento dos laços de família. A avó, que não queria ter sido mãe, e a filha, que não queria ter repetido a mesma sina, se vêm diante de um bebê e de um passado silenciado até então.

Cenas cotidianas delicadas e brandas entre mães e filhas, tão reiteradas no imaginário social quanto na literatura, são colocadas em xeque neste livro que induz o leitor a desconstruir a maternidade como um fenômeno instintivo, natural e inerentemente positivo. Passagens marcantes destacam a rudeza no lugar da ternura do aleitamento, a hostilidade no lugar da paz que uma mãe encontraria ao ver o filho adormecido.

A história se passa no Ceará e abarca três gerações de mulheres negras: avó, filha e neta (não nomeadas), que correspondem às três partes do livro. Mas é a filha quem está no centro da trama, puxando o fio condutor do enredo para descobrir quem é seu pai. O livro aborda um tema atualmente caro às feministas que contestam a existência de um instinto maternal e que inserem a maternidade em meio à batalha cotidiana dos afetos, do poder e da moralidade.

A destino e o acaso
A avó tem a convicção religiosa de que ter uma filha mãe solteira é culpa dela, que abriu este caminho. A filha, por sua vez, não expressa convicção alguma, sua postura diante da vida é de descrença, um tanto faz movido pelo acaso, como, por exemplo, sua gravidez. Ela engravidou de uma pessoa a quem sequer desejou de verdade. Mas até conhecê-lo a raiva tinha sido o único sentimento que ela nutria pelos homens. Por ele, ela sentia dó, o que nada tem a ver com compaixão ou empatia, mas com desprezo, um sentimento de superioridade: “o cara não parecia nada inteligente e tinha um olho de peixe morto que causava pena”. Resolveu, então, experimentar. Estavam na sala e a mãe tinha saído. Foi só uma vez, menos de três minutos dentro dela.

No mundo duro, fechado e hostil vivenciado pela protagonista, algumas fendas se abrem: dó e desprezo, não apenas pelo pai da sua filha mas também pela própria mãe. O desapreço pela mãe é justificado pelo fato de esta se negar a revelar quem é o pai. Mas a filha chegou à pós-graduação, é professora e convive com a classe média branca, enquanto a mãe é uma mulher pobre, empregada doméstica e analfabeta. Esta assimetria pode levar o leitor a supor que o desprezo seja também decorrente da posição social “inferior” que a mãe ocupa, e que a filha racionaliza mas não ignora.

A violência
A história de vida da avó, empregada doméstica, é um testemunho de racismo, escárnio dos patrões e vários tipos de assédio. A filha, com a ajuda da mãe, consegue entrar na faculdade e depois na pós-graduação. Na vida dessas mulheres quase não há espaço para homens sensíveis ou amorosos e nem patrões com algum senso de justiça. São vidas marcadas pela violência, às vezes aberta, outras vezes sutil até nos detalhes, violência que a protagonista replicou na sua relação com a filha, já antes do nascimento:

A menina chutou de novo, uma pontada fina no pé da barriga. Soquei a barriga de volta. Os chutes pararam. Tudo calmo. A menina quietinha, queria sobreviver.

Indo e vindo no tempo, o enredo vai tomando forma nas lembranças da infância, da faculdade, do trabalho, do parto, dos abusos sofridos por ela e pela mãe. As ações que se sucedem são intermeadas com diálogos, reais e imaginários da protagonista com a mãe, o bebê, e o professor, um homem bem mais velho, decadente e alcoólatra, com quem mantém um relacionamento. Fragmentos de memória são registrados no papel, na tentativa de construir sua própria história. Escrever é também um modo de agarrar a vida que escapa por entre os dedos.

Ambivalência e ambiguidade marcam ações e afetos. Mas ela não se dá conta de que o desprezo pela mãe e a maneira como concebe o bebê na sua vida ajudam a reproduzir a estrutura social injusta que ela mesma critica. Para ela, seu bebê tem uma função meramente instrumental. Ora a impede de atingir seus objetivos, ora é útil para alcançar suas aspirações, como por exemplo, a vontade de escrever:

A menina brincava na cama desprotegida, sem travesseiros. Eu não estava preocupada se ela ia cair, se ia se ferir, ou até perder a vida. Pensei no nascimento das palavras…

A raiva por ter tido uma filha indesejada marca a assertividade da voz do narrador, mas deixa uma pequena fresta para que a protagonista procure, quem sabe, algum tipo possível de amor: “Não sei se quero que ela pare de mamar. Dar o peito é o único carinho que sei”. Contudo, o leitor que não se engane, ainda que do peito saia o leite que alimenta a filha, dele também escapa o sangue depois da mordida pelo bebê. A filha primitiva é também uma filha desterrada que vai dar aula em outra cidade para tentar fugir da família, reinventar sua vida e ter alguma liberdade de escolha. Uma história de interditos e abandonos, mas também de buscas e tentativas.

A filha primitiva
Vanessa Passos
José Olympio
174 págs.
Vanessa Passos
Nasceu em Fortaleza (CE), em 1993. É doutora em Literatura pela Universidade Federal do Ceará (UFC), fez pós-doutorado em Escrita Criativa na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e é professora de escrita criativa. Com A filha primitiva, venceu a sexta edição do prêmio Kindle de Literatura. Publicou ainda o romance A mulher mais amada do mundo (Luazul, 2020).
Ana Cristina Braga Martes

É socióloga e escritora. Autora de A origem da água.

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