A humanidade contemporânea vive em uma encruzilhada filosófica. De um lado, temos um progresso tecnológico impressionante, que a cada dia surpreende mais as pessoas com a invenção de complicadíssimas traquitanas cibernéticas, remédios mirabolantes, vacinas milagrosas e, para concluir em grande estilo, a clonagem de animais, anunciando que os próximos serão os homens. De outro lado, pouquíssimo deste progresso significou melhoria na qualidade de vida das pessoas. A vida cotidiana parece ser sempre mais apressada, o tempo é sempre mais escasso, e todas as engenhocas que a civilização (?) nos dá parecem não cumprir a promessa de que os homens e mulheres teriam mais tempo para si.
No entanto, o desconforto não vem de hoje. Desde o início da Revolução Industrial, quando os neoluditas ingleses destruíam todo e qualquer tear a vapor que encontrassem pelo caminho, há esta sensação de que a tecnologia nos afasta de uma via natural. Mas o primeiro momento em que o questionamento deste caminho aconteceu deu-se no final dos anos 60, início dos 70, com os hippies. Com alguns anos de rebeldia acumulada, maturada com os beatniks nos anos 50, eles mudaram a cara do mundo em sua época. E pregaram, entre tantos refrões que depois a publicidade apropriou, o amor livre, a vida comunitária, a simplicidade como regra de vida, o abandono das coisas materiais, o retorno, enfim, aos valores naturais.
Claro, eles eram jovens, isto passou, mas as perguntas continuam, em sua maioria, sem resposta. Um dos filhos diretos daquela época, no entanto, deixou um livro que, para muitos, é considerado talvez a melhor fórmula para explicar o que era (e, lido atentamente, o que é) o descasamento entre a tecnologia — a máquina, nas palavras do autor — e a mente — entendida como o conjunto de filosofia e religião, e como elas podem viver juntas, harmonicamente. O nome do autor é Robert M. Pirsig, e o livro, Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas (1974, Paz e Terra, 388 págs.).
A história do livro é auto-biográfica. Pirsig e seu filho Chris, junto com um casal de amigos, John e sua esposa, fazem com suas motocicletas uma viagem pelo interior dos Estados Unidos, saindo da Costa Leste americana em direção às Montanhas Rochosas. Na bagagem, o equipamento essencial de camping, e um mapa indicando a direção a seguir, não o objetivo da viagem. Para Pirsig, há uma diferença nestes termos. Há quem viaje para chegar a algum lugar, e quem viaje pelo simples prazer de viajar. No caso dele, a escolha é pela segunda opção. O pensamento se repetirá quando Pirsig e Chris vão escalar uma montanha.
Ao mesmo tempo, Pirsig conta a história de Fedro (Phaedrus, no original em inglês), um brilhante estudante de filosofia que, em uma tentativa de definir o que é qualidade, acaba enlouquecendo, e sendo submetido a um tratamento de eletrochoque, que o mudaria para sempre. Fedro, vale lembrar, é o discípulo de Sócrates citado nos Diálogos de Platão.
Fedro buscava, com sua argumentação em busca da definição da qualidade, unir os conhecimentos milenares do Oriente (Zen, budismo, hinduísmo, taoísmo) à filosofia do Ocidente (Platão, Aristóteles, Hegel, Thoureau), e conseguir uma síntese do funcionamento do mundo. É importante lembrar que, desde o início, Pirsig alerta que a busca é desnecessária, a definição da qualidade. Escreve ele no prefácio, citando Sócrates: “O que é bom, Fedro, e o que não é. Será que precisamos de alguém que nos diga isso?”. Mesmo assim, Fedro e Pirsig tentarão dizer o que é.
Apesar do título, talvez fosse mais interessante lembrar do subtítulo, Uma investigação sobre valores. Esta é a parte que mais toca a Pirsig, saber por que a humanidade está desconfortável com a tecnologia que a cerca. E preste atenção que ele está falando dos anos 70! No caso, o contraponto é o casal de amigos.
Pirsig tem uma visão que o Zen, o princípio oriental de equilíbrio e harmonia, habita em todos os lugares, inclusive no motor de uma motocicleta. Para ele, sair para o campo em busca de paz de espírito é uma maneira, não a única, para se conseguir alcançar os estados superiores da alma, o Zen. No seu caso, ele procura isto montando e desmontando o motor de sua motocicleta. Sem ser um técnico ou mecânico profissional, ele prega que a melhor maneira para aprender uma coisa é mexer nela. E faz isto usando um processo analítico para diagnosticar falhas e defeitos em sua máquina, e por extensão em todos os aparelhos domésticos da época (seria interessante ver se o mesmo se aplicaria a computadores, estes estranhos objetos mais enigmáticos que qualquer esfinge jamais imaginou ser). A esta relação com a máquina, Pirsig chama de pensamento clássico.
Seu contraponto, John, tem o pensamento romântico. A escolha da moto de John é o primeiro indício de que ele, em vez de aceitar a tecnologia e procurar um bom convívio com ela, prefere ignorá-la. Para isso, John compra sempre os equipamentos que menor chance têm de apresentar defeitos. No caso da motocicleta, a escolha recai sobre uma BMW, que por tradição vai pouquíssimo ao mecânico. Mas, na casa de John, uma torneira pingando mostra que a distância de todo e qualquer problema, e a incorporação dos defeitos como fatos corriqueiros, acaba sendo o usual para a maioria das pessoas.
Para Pirsig, há uma necessidade de se colocar juntos o pensamento oriental, a filosofia que muitos associam a jardins com lagos e carpas nadando, aos avanços tecnológicos que a humanidade experimentou. Sem esse casamento, o ser humano continuaria sendo uma entidade dividida, eternamente insatisfeita, e incapaz de alcançar uma paz de espírito e uma serenidade necessárias para a existência.
Fedro, do seu lado, procura uma ruptura no caminho do pensamento ocidental, ruptura que o levará à loucura, e ao eletrochoque. O caminho de Fedro é lógico, mas faltam peças para que ele complete o quebra-cabeça, peças estas que Pirsig, ao revisitar o pensamento de Fedro, por instantes quase ignora e arrisca passar ao largo. Será seu filho, Chris, que em um dos instantes finais do livro, consegue mostrar que o pensamento de Fedro e o de Pirsig era correto sim, mas que necessitava de uma segunda visão, uma aproximação de uma maneira alternativa àquela que vinha sendo tentada.
Há um grave defeito no pensamento de Pirsig, que no entanto não prejudica a beleza do livro. O autor, ao explorar os defeitos da herança filosófica de Sócrates/Sofistas, a Hume/Kant, inexplicavelmente restringe sua análise a somente até meados do século 19. Dessa forma, o narrador (ou a figura fantasmagórica de Fedro) clama pelo restabelecimento da originalidade abandonada e pelo entendimento da história do pensamento ocidental, procurando sintetizar o racional e o criativo, pela elevação do conceito de qualidade a um nível quase metafísico, simplesmente repetindo o erro já incorrido pelos filósofos pré-modernos. Com a exceção de Poincaré, ele ignora pensadores mais recentes como Heidegger, Whitehead, Dewey, Sartre, Kuhn, que tratam de forma mais profunda e crítica o cerne das questões urgentes do livro.
17 anos depois, Pirsig tentou repetir a fórmula, no entanto sem o mesmo sucesso ou talento. Não é possível recriar o único, o singular. Lila, uma investigação sobre a moral (1991, Ed. Rocco, 454 pg., R$ 34, Trad. Carmen Lucia Oliveira), em vez de motocicletas, traz um barco. A viagem, da Costa Leste para o interior, muda de rumo, e sai dos Grandes Lagos, descendo o Rio Hudson, passando por Nova Iorque e para o Sul, pelo mar. E em vez do filho na garupa, uma companheira para lá de inusitada.
No primeiro livro, Pirsig discutia a Metafísica da Qualidade, o que é bom e o que não é, ou melhor, o que tem qualidade e o que não tem. Mas ele virá descobrir neste segundo livro que saber se algo tem ou não qualidade é muito mais complicado do que parece, quando se trata de pessoas. Descendo pelo Hudson, Pirsig irá encontrar Lila Blewitt, uma mulher que os americanos definem como “loser”, ou perdedora, alguém que na sociedade americana é menos que um pária.
O encontro se dá em um bar, quando ambos ficam bêbados e acabam parando no barco de Pirsig, quando então Lila decide ir junto com ele em sua viagem, e a conveniência da companhia (do sexo?) faz o autor aceitar a carona meio esquisita. À medida que os dias passam, Pirsig descobre que Lila tem um passado sem muita qualidade: ex-prostituta, ex-interna de um manicômio, como ele vítima de eletrochoques e tratamentos ortodoxos para cura de distúrbios mentais, e com uma noção bastante tênue da realidade.
Se ela é tudo isto, tem ela qualidade? Esta é a pergunta que Pirsig faz, já que sua viagem de barco tinha como objetivo aprofundar-se nesta questão, e tentar descobrir que conseqüências teve para a cultura americana o distanciamento, ou mesmo a anulação, da cultura indígena, na moral do povo dos Estados Unidos. Novamente, esquecendo da lição aprendida no livro anterior, Pirsig faz a análise do mundo de uma maneira clássica, sistemática, sem fugir das regras, conceitos e métodos já consagrados, que não levam em consideração a visão holística pregada pelos orientais.
Mais uma vez, tem-se a sensação de que Pirsig nada faz além de caminhar sozinho pelas estradas e rios da América – mesmo estando acompanhado fisicamente – para procurar respostas aos dilemas da sociedade moderna. No entanto, enquanto no primeiro livro as respostas são encontradas quando ele sai de seu isolamento, no segundo elas são deixadas para trás, como se não houvesse a necessidade de responder a pergunta alguma. Lila termina com Pirsig sozinho, revisitando os altos estados da mente, como ele define, sem chegar a lugar algum. Por isso tanto se fala de Zen, e tão pouco de Lila. A diferença entre ambos é abissal, e certamente, Pirsig faria melhor ficando quieto, e colhendo os frutos de seu primeiro livro.
Zen é um marco na literatura americana por ser um dos primeiros livros que conseguiu tratar de uma forma simples para o grande público questões filosóficas, e um dos pioneiros na tentativa de aproximar estas grandes questões para a vida cotidiana. O grande mérito de Pirsig foi juntar tudo isso a um clima de rebeldia e inconformismo, e dar um instantâneo de uma geração incomodada pelos avanços tecnológicos ao redor, e que necessitava de uma conexão entre os avanços materiais e o conforto espiritual.
O autor – Robert M. Pirsig é uma figura diferente, basta ver seu currículo. Ele estudou química e filosofia na Universidade de Minnesota, tendo concluído o curso no ano de 1950. Da pretensão inicial de ser um biólogo molecular, foi estudar filosofia oriental na Universidade Hindu de Benares, na Índia. Voltou para os Estados Unidos para ensinar Redação e Retórica nas Universidade Estadual de Montana. O trabalho de pós-graduação não concluído foi feito na Universidade de Chicago. Quando escreveu Zen, a profissão de Pirsig era escrever manuais de instrução de máquinas.
P.S.: Seria interessante que os leitores que não sabem ler em inglês escrevessem à Editora Paz e Terra, e incluísse o posfácio escrito por Pirsig 11 anos após a conclusão do livro, que traz um complemento triste para a viagem relatada em Zen. Apesar de estar em sua 14ª edição no Brasil, o posfácio não foi incluído ainda, e sua ausência prejudica a compreensão da evolução do pensamento de Pirsig.