Eu perguntei pro velho se ele queria morrer (e outras estórias de amor), de José Rezende Jr., mereceu o Jabuti 2010, na Categoria Contos e Crônicas. Considerado o mais prestigioso prêmio literário nacional, o Jabuti costuma, como se sabe, representar uma distinção, sugerindo, na pior das hipóteses, um olhar mais atento aos contemplados. O jornalista José Rezende Jr. estreou na ficção em 2005, com o livro A mulher-gorila e outros demônios, também publicado pela editora 7Letras. Em sua página na internet (wwww.joserezendejr.jor.br), o autor traça um perfil de si mesmo, que se fecha com a informação:
Devoto de Guimarães Rosa, José Rezende Jr. foi buscar num dos versículos de Grande sertão: veredas o estímulo que faltava para mudar de vida depois de tanto tempo de relacionamento passional com o jornalismo impresso: “O mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior”.
O livro premiado em 2010, organizado em torno da temática amorosa enunciada no subtítulo (temática, aliás, aqui dotada de conotações peculiares), traz uma epígrafe extraída das estórias do mesmo Guimarães Rosa: “O amor? Pássaro que põe ovos de ferro”. No livro de estréia, duas epígrafes, ainda de Rosa: (1) “O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais”; e (2) “Ouvi minhas veias”.
Se o leitor desta resenha vislumbrasse por aí algum excesso de Guimarães, meu primeiro gesto seria o de contestá-lo. Não, meu caro, eu diria, escrever literatura não é uma atividade solitária. Como sugerem, aliás, as incursões borgianas por bibliotecas constituídas como labirintos. Escrever é sempre perambular em uma biblioteca, povoada por fantasmas evocativos de outros fantasmas, por sua vez alusivos a outros e outros e outros, enfim. Que um livro module sua voz caminhando por sobre ombros os mais diversos não é fato, portanto, que surpreenda ou emocione.
A devoção a Rosa, de resto, não obstrui ou contamina o forte impacto recebido já na leitura da primeira estória do livro, Eu morrendo e você pintando as unhas de vermelho. Como anuncia a orelha: “É forte, profundamente triste, mas impecável”. Iniciando-se em letra minúscula e organizado em um parágrafo que se fecha com o único ponto do texto, o conto pode fazer pensar em um suspiro que se prolonga à busca de uma permanência já inexeqüível, desdobrando uma certa voluptuosidade mórbida disseminada pelas palavras que o constituem. O amor cuja trajetória o texto estrangula, restringindo-a a um momento agônico devolve-nos à epígrafe: “O amor? Pássaro que põe ovos de ferro”.
Erotismo
O sentido de amor distende-se ainda mais no conto que empresta o título ao livro e que flagra com intensidade ímpar as perturbações que a alteridade impõe ao que pudesse ser tomado como identidade. Enfim, algo que remete ao campo semântico mais usual da palavra amor, em que o olhar do outro corrige, ou reveste de sublime o olhar que o sujeito se permite depositar sobre si próprio. Como no lirismo bem dosado da estória de encontro súbito, de Desastres marítimos, em que Amor é, ainda, possibilidade de existência e via de acesso a algum tipo de “salvação”. Como na difícil senilidade do amor e de seus atores, em Senhor capitão. Como nas ousadas agressões incestuosamente sexualizadas de Conto de horror. Como nas ambíguas relações comerciais do amor venal, ainda amor, em Origami. Em todos os casos, o mesmo pássaro e seus ovos de ferro.
O erotismo que perpassa boa parte desses contos também merece alguma consideração. Notadamente masculino (para lançar mão de uma tipificação redutora, mas que talvez elucide a que me refiro), parece referido a um universo com traços definidores que sugerem o rústico, em alguns casos o rural ou um submundo urbano ou, ainda, uma urbanidade interiorana. A pronunciada genitalidade se faz acompanhar pela reincidência de um tipo de excitação erótica de intenso apelo visual. A nudez feminina é oferecida com impacto e apelo, com alguma crueza e, em alguns casos, uma urgência aguda que, não obstante, permite o contato com outras urgências, de cunho nada físico:
Esgueiraram-se juntos, por tempo indeterminado, pelo corredor comprido e escuro, até que ela abriu uma das portas e o puxou para dentro e fechou a porta com o pé já descalço e o empurrou para a cama, sem uma palavra. Despiu-se com a mesma pressa juvenil e na ordem inversa de sempre: antes de tudo a calcinha, depois o vestido, por último o sutiã, quase arrancando os colchetes. E nua, com a mesma urgência juvenil, desafivelou, dele, o cinto, e baixou-lhe até o meio das pernas a calça cor-de-viagem. E não houve beijos, nem abraços, nem tempo a ser desperdiçado, como no tempo da construção da estrada. Glaura sentou-se sobre ele e ele reconheceu cada um dos movimentos de Glaura, os quadris ondulando à deriva, o ritmo dos cheiros e das respirações, a mesma seqüência antiga dos gozos, o primeiro como se fosse calmaria desesperada, o segundo e o terceiro emendados, quase um só e no entanto dois, feito gozos siameses, e o último dolorosamente silencioso, agônico, emoldurado por tremores febris. Seguiu os passos de Glaura nesse último gozo, tímido e imóvel o quanto pôde, feito um espectador reverente que contém os aplausos temendo interferir na atuação da estrela até não ser mais suportável prosseguir assim, imóvel e reverente, até o aplauso final em forma de jorro morno, até sentir-se murcho como as flores velhas, pegajoso como o asfalto novo.
Visão turva
Sem que exatamente discorde do autor da orelha do livro (“o livro se compõe de estórias de amor; mas não se engane: não é daquele amor com letras maiúsculas, romântico, repleto de clichês que José Rezende extrai sua literatura”), sublinharia que algumas imagens recorrem no conjunto dos contos, configurando, também, uma certa gramática amorosa: corpos (femininos) que permanecem rígidos e vigorosos a despeito da perda de viço de seus pares masculinos, sexo urgente e substitutivo, uma representação física do afeto, uma quase imanência do amor que submete deliciosamente o sujeito masculino. O que, aliás, colabora de modo bastante coerente com os traços constitutivos do conjunto do universo ficcional configurado em alguns destes contos.
No entanto, quando nos aproximamos do final do livro, mais especificamente do conto final intitulado Lá onde a noite é mais escura, algo que até então não se discriminava muito bem começa a nos turvar a visão. A narrativa é estruturada a partir de um narrador em primeira pessoa, aparentemente um homem rústico, um habitante dos sertões que dialoga, ao longo de todo o texto, com um interlocutor mais culto, uma espécie de testemunha por meio da qual a experiência do vivido é validada e/ou confirmada, possivelmente justificada. Esta terceira pessoa, o interlocutor ao qual o narrador se dirige, é um padre com o qual o narrador compartilha uma experiência algo sobrenatural, algo indizível, de algum modo incognoscível. Veja-se o trecho:
Presta atenção: se o senhor pegar uma enxada, uma boa enxada, e com braço forte, cavar num qualquer quintal, mas cavar bem fundo, e se cavar igualmente na alma e no fundo do coração do morador, ah, o senhor encontra coisas muito feias… Malvadezas, remorsos, desejos. Imundices. Pra mim, O Interior não é povoado nem vila, é o de dentro do homem. O que ele esconde de si próprio e até do padre. O senhor duvide que mesmo assim eu afirmo: interior tem mais maldade que cidade grande.
Se o conjunto do livro impressiona por uma prosa vigorosa, de algum modo surpreendente, sem dúvida autônoma e rica em sua capacidade de gerar sentidos e criar dificuldades, o conto final assusta pela flagrante (e frágil) emulação. O mestre de que o autor se diz devoto aí se remexe, cadáver violado, algo caricatural, piorado, em frangalhos. O conto parece arremedar um certo Guimarães. Assim formulado, o juízo será, sem dúvida injusto e parcial. Talvez fosse mais justo dizer que a narrativa que encerra o livro se equilibra perigosamente no fio tênue que separa a servilidade do arremedo e a fatura trabalhosa de uma dicção pessoal:
Lhe assusto com minha prosa? Sei que não, o senhor tem partes com Deus, corpo e alma fechados… e o que conto é tudo bobajada de capiau velho. Existe nada não. Só se o senhor acreditar. O senhor crê? Eu creio. Por isso não durmo de noite. O senhor, se fosse eu, dormia? Se soubesse, e visse, o que eu sei, e vi? Ah, se tivesse juízo não dormia. Sei que o senhor não me dá razão, o senhor não pode, mas eu afirmo e confirmo: nem tudo que há é obra de Deus. E o que não há, então?
De que o autor tenha fôlego e brio narrativo para ultrapassar o impasse em que este conto, em particular, o situa, ninguém duvide. No conto intitulado A triste orla do Aqueronte, de A mulher-gorila e outros demônios, o narrador, diante dos dizeres “Lasciate ogne speranza voi ch’intrate” vocifera “porra nenhuma”, diante de um inferno que é só a cidade, com seus pobres, nordestinos, putas, pretos, leprosos, pedintes e engravatados, sem nada em que se possa ancorar o narrador, sem um centro em que buscar sua essência, sem uma transcendência em que repousar do fluxo que o arrasta, do fluxo de vozes, de divergências, de exaustão. O conto final deste último livro, em contraponto, parece comodamente situado à sombra de uma árvore frondosa que esteriliza a vegetação que com ela divide o solo. Se é possível passar do inferno dantesco à cidade, a uma multiplicidade produtiva e vital, talvez seja possível derivar de Guimarães, desistir de seus encantos, de sua sedução paralisante.
Como anuncia a premiação de que foi objeto, o livro de José Rezende Jr. merece, sem dúvida, um segundo olhar. Pelo que realiza, pelo que promete, por aquilo de que possivelmente teria podido abdicar. Por aquilo que, nele, não parece terminado. Pelo pai que, espera-se, tenha a hombridade de assassinar.