Quem não se lembra da polêmica que o Jabuti criou ao premiar como livro do ano, em 2010, Leite derramado, de Chico Buarque, e não o próprio vencedor na categoria romance: Se eu fechar os olhos, de Edney Silvestre? Eram dois romances, duas visões diferentes do Brasil e muita ideologia marcando a premiação — pela eleição iminente de Dilma Rousseff dias depois. As editoras de ambos consideraram gravíssimo o episódio e se indispuseram uma contra a outra e ambas contra o Jabuti.
Mas foi bom para Silvestre, que levou seu primeiro romance a best-seller. Muito lida até hoje, a obra fala de homofobia, racismo, crimes e política brasileira num período histórico determinado — o que harmoniza tematicamente com Amores improváveis (2021). Desde então, o estilo se aperfeiçoou — com frases entrecortadas, virguladas e longas, que causam inquietação positiva no leitor. E neste romance, com capítulos muito curtos, o ritmo sintático peculiar faz ampliar cenas e narração. Foi um bom ganho na obra de Silvestre:
Ao embarcarem em Cagliari para uma temporada de trabalho de três anos na América do Sul, com a roupa do corpo e mais os poucos pertences num único baú de couro, ao lado de outros sardos, em seguida juntando-se a genoveses e sicilianos no porto de Nápoles rumo ao outro lado do mundo, Vincenzo e Concetta, agora Vivacqua, não poderiam imaginar suas vidas entrelaçadas à do rapazinho nomeado oito anos antes como Felício Theodoro, já então devida e definitivamente transferido para o Sitio Santa Zita.
Como em obra anterior, Edney fixa-se no Brasil interiorano (aqui mineiro) e analisa a vida adolescente com seus primeiros amores para mostrar a transformação de uma sociedade semirrural, de fim de século, que, marcada por duros valores, se vê modernizada pela proximidade do século 20.
Amores
O breve romance está concentrado em temáticas que, embora já conheçamos bem — do século 19, escravista, ao 20, republicano, com imigração europeia como força de trabalho, mistura de línguas, valores, culinária e moralismos, sobretudo italianos —, são tratadas aqui com concisão e firmeza narrativa. Diz o autor que fez muitas pesquisas.
Muitas obras entre nós falam da imigração italiana, árabe, japonesa, judia, húngara, alemã — algumas delas inesquecíveis. A qualidade deste texto, porém, é tentar valorizar algo novo a partir dos amores femininos (não feministas) de sotaque italiano porém já tão brasileiros, numa cultura miscigenada que se ampliou a passos largos.
A narrativa é dividida em capítulos, em geral de uma página, introduzidos por fotos e imagens escolhidas pela designer do livro, cujo trabalho o autor agradece.
Silvestre traz um casal de italianos sardos que imigra no fim do século 19 para o interior de Minas, onde, como tantos outros, foi tratado sob os vícios da escravidão. E como outros tantos, o casal encontraria o caminho de subsistência em outro local, num armazém de secos e molhados, na fictícia cidade de Ourinho. Ali criarão as quatro filhas (duas gêmeas ao meio da prole), protagonistas da obra: são elas que vivem seus amores improváveis — que o autor define, ao fim da obra, quando afirma que “a primeira pessoa a quem associei as palavras improvável e amor”
era uma voluptuosa mulher italiana, que esperava o amante, cidadão casado e pai de família, com a porta aberta altas horas da noite. Quando saí de lá, já adolescente, ela e o senhor O. provavelmente continuavam a se ver pelas madrugadas, num improvável amor estável e satisfatório (…).
Amores improváveis são ilícitos, ocultos, desprovidos de senso moral ou limites. Mesmo assim, seriam intensos ou longos. A epígrafe de Gabriele d’Annunzio reforça ao leitor essa definição:
Nossa vida é uma obra mágica, que escapa ao reflexo da razão e mais rica se torna quanto mais dela se afasta, abraça o oculto e vai contra a ordem aparente das leis.
Sob moral e ordem (só) aparentes, o interior do Brasil vai se modernizando. Porém, num trecho marcante da obra, subsistem aleivosias e a devassidão sexual dos padres no interior do país, com seus escravos, e sob a vista grossa dos moradores, protegidos pela submissão absurda dos atingidos nesse cenário.
Casal improvável
O protagonista — por quem se apaixonará a primogênita das meninas, Emiliana — é Felício, órfão, cafuzo escuro, trazido para um sítio da paróquia onde cria porcos e que, mesmo tão jovem, assumirá perante a cidade a paternidade dos filhos que o padre vinha gerando com Dozinha, filha adolescente da zeladora silenciosa da paróquia. Um casamento aparente. Esse sórdido mundo que conhecemos desde Machado e Lima Barreto se torna forte na obra. Emiliana, destinada pela tradição a se manter solteira “para cuidar da casa e dos pais”, começa a compreender na adolescência o desejo sexual a partir de uma pungente analogia ao conhecer o jovem: “A pele desse moço tem cor de jabuticaba”. Ou, na bela imagem do narrador,
O fruto mordiscado de leve para a casca espessa se abrir e soltar entre os dentes e a língua o líquido grosso de um caroço rijo, envolto em macia polpa branca, de saber doce, mas não muito.
Será este um amor improvável. O negro Felício, criador de porcos, casado e pai, um dia não mais desviará o olhar da moça loira. Senti falta de mais foco neste amor erotizado, tão silencioso, tão intenso. Esses amantes, afinal, são o produto mais desventurado de suas prisões sociais. Ele, pai de filhos que nunca teve, e ela, apenas a tia, estão brutalmente resignados a seus papéis numa sociedade hipócrita. Só uma vez por ano nascem as jabuticabas, e Emiliana, que tanto trepara em árvores brasileiras para colher o fruto, deixará a adolescência para se esconder nesse amor.
Outros amores dividem a obra e a família. As gêmeas encontraram (como manda o figurino) em dois engenheiros italianos, aqui a trabalho, os noivos para os quais a tradição rigorosa sorria. Um dos casais iria a Manaus (pela construção da Madeira-Mamoré), outro a São Paulo (crescendo como metrópole). E as gêmeas, apaixonadas, e no papel de um casamento italiano, treinavam com a mãe a culinária das regiões italianas, que agregariam ao enxoval.
Entretanto, num amor improvável, um dos noivos foge com a irmã mais nova, Fortunata, deixando a irmã enlutada e destruída. A informação do casamento civil deste casal (fuga moralizada, portanto) e a consequente punição desta moça nos pesam pela certeza de que as convenções morais italo-brasileiras vigem muito mais que a libertação de uma mulher em busca do próprio destino — que nem as sofridas cartas à família caçula conseguiram minimizar. É uma boa narrativa, que teria fôlego para ser mais longa.
Composição gráfica
Quanto à composição gráfica da obra, em capa dura e em cores, elogiada por resenhistas e pelo autor, me parece gratuita. Para que este texto seja também um “objeto” estético? Ora, o texto enxuto, mas firme, não precisava de tais enfeites. Há quase uma inversão: um capítulo para cada imagem, fotos ou ilustrações (várias sobejamente conhecidas nos acervos do país — Rugendas, Marc Ferrez, Otto Hees —, alugadas em bancos de imagens).
Não, a iconografia não traz “harmonia e composição”; nada agrega à história nem tece a imaginação de um leitor exigente. As imagens são óbvias e ingênuas: quando se fala da pele cor de jabuticaba, a imagem é a própria fruta; quando se fala em noivado, o leitor vê duas alianças; quando se fala em estradas de ferro, lá está um trem; quando se fala dos belos cabelos das irmãs, mostra-se uma fivela antiga. Isso é ruim. É assim que se destroem as metáforas e se emperra um bom texto no plano denotativo.
Houve quem dissesse que se aplicou aqui a “écfrase” — recurso retórico no qual uma arte se relaciona com outra para definir forma e essência. Não. Estes trechos da história do Brasil, insisto, sobrevivem sem adereços e para isso serve a literatura. O livro sem elas é curto demais? Que o autor o faça crescer, como parte do interesse pelo Brasil e por brasileiros. E como o livro não é autoficção, me atrevo dizer: Edney Silvestre, analise menos sua obra dentro da própria obra. Fale menos sobre ela. Cabe a nós, leitores, fazer isso.