Haruki Murakami já falou e escreveu diversas vezes sobre corridas de longa distância. Praticante de maratona, ele acredita que essa competição, para atletas amadores, não é contra ninguém, mas um desafio ao próprio corpo. Não se compete para ganhar a prova, mas para bater o tempo da maratona anterior. Isso até uma certa idade. Depois dos 50, no caso de Murakami, o esforço passa a ser apenas para terminar a corrida e ter o menor impacto possível sobre o corpo.
A carreira literária de Murakami parece uma grande maratona, em que ele escreve, escreve, pelo simples prazer de terminar um livro. Não que isto seja ruim. Na verdade, talvez a principal qualidade de Murakami seja o fato de que ele parece ter compromisso somente com a própria escrita, com a voz literária que encontrou para si e não abre mão. “Escrever romances e correr maratonas são muito parecidos. Basicamente, um escritor tem uma silenciosa motivação interior e não procura aprovação externa”, escreveu Murakami em Do que eu falo quando eu falo de corrida.
Ele difere muito da maioria dos escritores contemporâneos nipônicos. Apesar de usar sempre o Japão como cenário, seus personagens são universais, caberiam em romances de qualquer lugar do mundo. São obras também bastante atemporais, onde a linha do tempo somente é sinalizada pelas referências culturais que o autor desfila, todas muito pessoais, que variam de música erudita a jazz, blues, rock e cinema americano. Os narradores de Murakami são contemporâneos do próprio autor, no tempo e na bagagem intelectual.
Para o maratonista Murakami, a parte mais impactante e decisiva de uma corrida de 42.195 metros é o quilômetro 32. Em Do que eu falo quando…, Murakami descreve esse quilômetro como um momento de pura alucinação dentro de uma prova. É um limite em que o corredor perde noção do que está realmente ocorrendo e os efeitos sobre seu corpo fogem de qualquer controle mental. Mas persistir é preciso. Passar essa barreira sem esmorecer é fundamental para se acabar uma maratona. Quem vencer esse quilômetro, em que corpo e mente se desprendem, vai terminar a prova.
Se fôssemos transformar a obra literária de Murakami em uma maratona, ele venceu o quilômetro 32 com 1Q84, sua obra de maior impacto desde que estreou com Ouça a canção do vento. Em 1Q84, corpo, cabeça e mãos do escritor parecem ter se desprendido para resultar numa obra de três volumes, mais de 1.200 páginas, duas luas e dois mundos.
Nova saga
Murakami completa essa maratona agora com O assassinato do comendador, cujo primeiro volume foi lançado em 2018 e o segundo, em 2020. Trata-se de outra narrativa extensa, com dois títulos que somam quase 800 páginas. Não que Murakami vá parar de escrever ou deva parar de escrever, mas O assassinato… é um marco em sua carreira. Muitas de suas obras beiram o fantástico, e muitos o acusam de fazer isso sem dar o mínimo de verossimilhança às narrativas. Mas como dar verossimilhança a duas luas e a dois mundos? Murakami nunca se preocupou com isso. Q, em inglês, é kiu. Kiu, em japonês, é 9. Então, 1Q84 é o mundo paralelo a 1984. É o máximo que a motivação silenciosa de Murakami explica ao mundo externo.
O assassinato do comendador é, na verdade, um quadro — obra do pintor Tomohiko Amada. Fosse uma pintura de verdade, por si só seria genial, como a explicação para 1Q84. O quadro mostra um duelo no Japão antigo. O comendador é retratado logo após levar um golpe certeiro de espada que pôs fim à disputa. Enquanto o comendador agoniza com sangue jorrando no peito, uma jovem que assiste ao duelo tem cara de pavor com a morte de seu pai.
O quadro criado por Murakami é uma cena da ópera Don Giovanni. O jovem que vence o duelo é o próprio Don Giovanni, que na pintura está acompanhado de seu assistente. A filha do comendador é Dona Anna na ópera.
Mas lá no canto esquerdo baixo do quadro, num buraco com tampa, há um quinto personagem, levantando o alçapão e observando a morte do comendador, um homem esquisito, rosto fino e enorme, o Cara Comprida. Ele não faz parte da cena na ópera de Mozart, mas terá papel importante no romance.
Desenvolvimento
Amada foi um pintor de sucesso que, aos 1990 anos, está num asilo de idosos com a saúde debilitada. Ele passou grande parte de sua vida isolado, numa casa no alto de uma montanha. Seu filho, Masahiko, empresta a casa para um amigo, um pintor de retratos de Tóquio que é deixado pela mulher após seis anos de casamento e não sabe para onde levar sua vida. Depois de sair de casa com o carro e rodar pelo norte do Japão por dois meses, o pintor aceita ir morar na casa desocupada de Amada.
Depois que o pintor encontra a obra O assassinato do comendador escondida no sótão, uma série de acontecimentos inusitados invadem sua rotina e passam a ser o centro do romance de Murakami. Os personagens do quadro ganharão vida e vão interagir com o pintor em algum momento. O principal deles é o comendador, que se apresenta como uma Ideia. Ele não é exatamente um comendador, mas prefere se vestir como o personagem do quadro para ser perceptível aos olhos do pintor.
Um vizinho, o milionário excêntrico Menshiki, paga uma fortuna ao pintor para ser retratado e para que ele também pinte o retrato de uma menina, Marie, aluna do pintor na aula de artes na comunidade próxima.
Menshiki ajuda o pintor a abrir um antigo poço fechado no fundo de um pequeno templo no terreno da casa. Lá encontram o sino que o pintor ouvia sempre às duas da manhã. A abertura do poço, no formato de uma câmera de pedra, parece libertar o comendador, que aparece apenas para o artista e tem a forma de uma miniatura de 60cm, cuja voz só é ouvida pelo pintor e, mais tarde, por Marie.
A adolescente lembra muito a irmã do pintor, que morreu aos 13 anos de idade. Ela é quieta e isolada, e só conversa mesmo com o pintor nas sessões em que é retratada.
O sumiço de Marie vai desencadear uma série de ações que se passam em outro mundo. Em 1Q84, a protagonista Aomame sai de 1984 e entra no mundo paralelo ao sair do táxi e descer numa escada do viaduto em que transitavam. Agora, para salvar Marie, o pintor desce pelo alçapão do Cara Comprida, o mesmo retratado no quadro. E aí Murakami sai do km 32 e entra nos dez quilômetros finais da maratona em que corpo e mente se desprendem. Ao leitor, só resta fazer o mesmo e entrar nessa corrida com Murakami. É inverossímil? Sim, bastante. É mágico? Sim, muito. Nunca disputei uma maratona e, mesmo que tivesse corrido, quem garante que as sensações seriam as mesmas que Murakami descreveu em Do que eu falo quando eu falo de corrida?: “Depois do quilômetro 32 o combustível acaba e começo a ficar puto com tudo. No final, me sinto como um carro sem gasolina. Mas depois que acabo, eu esqueço toda a dor e o mistério e já começo a planejar como fazer um tempo melhor na próxima corrida”.
O fato é que Murakami chega ao final de mais uma longa prova. E pelo jeito terminou essa maratona satisfeito, pois, diferentemente de tudo que escreveu até hoje, O assassinato do comendador é um livro de final surpreendentemente feliz.