Abguar Bastos participou da Revolução de 1930, rebelando-se com o 26º Batalhão de Caçadores de Belém, no Pará. A vitória dos revolucionários levou o escritor ao centro do poder estadual, transformando-o em chefe de gabinete do interventor, Magalhães Barata. Em 1935, vamos encontrá-lo na alta direção da Aliança Libertadora Nacional (ANL), composta de socialistas, comunistas e tenentistas de esquerda, todos sob o comando de Luís Carlos Prestes. Depois dos assassinatos traiçoeiros da Intentona Comunista, Bastos, que teve participação direta no movimento, é preso, apontado como homem de confiança de Prestes. Dois anos mais tarde, está livre para testemunhar o início da ditadura getulista, o Estado Novo, e publicar o romance Safra.
O ideal revolucionário do escritor anunciava-se desde 1926, no Manifesto Flaminaçu (ou, como escreve Bastos, “FLAMI-N’-ASSÚ”), em que conclama os intelectuais do Norte a abandonarem seu tradicionalismo, voltando-se aos temas da realidade e do folclore amazônicos. Trata-se de arroubo nacionalista que, na sequência de 1922, recusa o pau-brasil como símbolo e pretende “excluir qualquer vestígio transoceânico” da literatura, “textualizar a índole nacional”, “prever suas transformações étnicas”, “exaltar a flora e a fauna exclusivas ou adaptáveis do país” e, finalmente, “combater os termos que não externem os sintomas brasílicos, substituindo o cristal pela água, o aço pelo acapu, o tapete pela esteira, o escarlate pelo açaí, a taça pela cuia, o dardo pela flecha, o leopardo pela onça, a neve pelo algodão, o veludo pela pluma de garças e sumaúma”. Tudo para, ao final, “dar de tacape na testa do romantismo” — esta, convenhamos, a única ideia que não é risível.
Tal projeto, Bastos buscou concretizá-lo desde o primeiro romance, Amazônia que ninguém sabe, lançado em 1930. Segundo o que afirma no prefácio de Safra, seu objetivo era revelar aspectos desconhecidos da região, concentrando-se, a partir do segundo romance, Terra de Icamiaba, na socioeconomia da castanha:
A era do fastígio dos castanhais me oferecia contribuição digna de ser imediatamente revelada e mesmo necessária, a demonstrar que, além do seringueiro, já decadente, um outro tipo se movimentava no cenário duma idade, positivamente mais notável: o castanheiro.
É a necessidade de expor o problema social que obriga Bastos, portanto, à ficção. Mau começo para a literatura — e, no caso específico de Safra, transpira, desde as primeiras páginas, nítida insatisfação, como se o exercício de criar uma história não fosse suficiente para o intelectual acostumado à luta política.
Curvatura de ginástica sueca
O romance inicia com o grito “embriagado de solidão” do protagonista, Valentim, preso por ter assassinado Bento, a quem aceitou como empregado na coleta da castanha, mas que se revela desonesto, ludibriador. A narrativa se desenvolve em torno desse crime, recuperando, numa entrecortada analepse, os acontecimentos que levaram Valentim ao crime. Pari passu, conhecemos as histórias do rábula Teotônio; do policial — e carcereiro de Valentim — Chico Polia; dos chefes políticos, Leocádio e Dalvino, cuja rivalidade polariza a região; das crianças do lugarejo, incluindo Manduca, filho do protagonista, que crescem alimentando-se de barro e roendo tijolos; de China, prostituta que se entrega, sem nenhuma cobrança, a todos os presos — estes, aliás, vivendo soltos pela cidadezinha, graças à desorganização administrativa, ao descaso das autoridades.
Há passagens interessantes, que revelam boa expressividade, algumas com agradável humor. Nos dois capítulos iniciais, veja-se a descrição da cadeia, antiga escola, em que podridão e decadência dominam: insetos e animais peçonhentos invadem a narrativa, infestando não só a latrina, mas cada frincha das paredes, cada fissura do passado que o narrador recria, de maneira que a deterioração tudo contamina, até chegarmos à história de Paulino Surdo e seus salvadores, os morcegos que, abrindo-lhe um furo na barriga hidrópica, permitiram que o líquido jorrasse:
Os bichos têm cara de canibal. As suas orelhas, em concha, empinam como duas folhas crespas. O seu focinho de rato, os seus pelos de cão novo, os seus peitos de homem, as suas barbas de gato, as suas unhas de pássaro, os seus esporões de galo, a sua boca de peixe e, como pés de pato, as suas mãos, que ao mesmo tempo são asas, tudo lhes dá esse contorno de animais interplanetários, que não vieram do dilúvio, mas virão no apocalipse.
No final do primeiro capítulo, Valentim e Chico Polia estão irmanados pela desgraça — voltam-se à infância, mas agora só existe, entre a prisão em que se encontram e a mata povoada de criaturas estranhas, o cemitério. A morte domina a lembrança de ambos — e cada um experimenta peculiar solidão.
No capítulo Teotônio, o casaco monarquista do advogado, “fraque soturno” que inspira “desconfiança”, é “capaz de ficar em pé e marchar sem as pernas do dono”. Brilhando “como uma folha de flandres”, esticado, semana após semana, pelo ferro de engomar, o fraque ganha vida própria: “É mesmo possível que o fraque existisse e Teotônio não”. O acerto das escolhas descritivas e o humor compõem personagem inesquecível, figura que também se dedica à astrologia, às línguas e às “inquietudes atmosféricas”:
Os seus óculos montavam guarda a um nariz arquissemita, que lhe viera do tempo do bisavô, por parte de mãe. (…) O queixo, petulante e irreverente, avançava em curva excessiva além dos limites dum queixo relativamente educado. Era um queixo que perdia a sua gravidade. Espichado e revirado, vivia a espiar os buracos do nariz do Teotônio.
Ainda que sem humor, encontramos habilidade também no capítulo Capitão de praia, com a dramática caça às tartarugas que buscam praias fluviais no período da desova.
O episódio A rainha do café possui trechos de insuperável ironia. Ali se concentra a crítica aos paulistas “modernos”, que visitam regiões selvagens do país em busca de elementos excêntricos — e a personagem Mário d’Almeida, “insolitamente grandiosa”, a quem todos cumprimentam com uma “curvatura de ginástica sueca”, é o próprio Mário de Andrade e sua caça ao verdadeiro Brasil. Em certo trecho, as jovens sobrinhas da Rainha do Café, “amuadas”, dizem ao poeta:
— Você nos prometeu mostrar o mapinguari, a mãe d’água, o curupira, a cobra-grande e outros fenômenos. Até agora não vimos nada. Você nos blefou, Mário.
O poeta ficou triste. Desculpou-se:
— Eu pensava encontrar curupira em Manaus. Como gente, sabe? Chapéu de palhinha, paletó saco, calças largas, camisa americana e horríveis botas de curupira, isto é, com o salto na frente. Mas, infelizmente, o Brasil ainda está muito atrasado.
As meninas não sabiam se o poeta estava falando sério ou zombando.
Também não perguntaram. Limitaram-se a rir.
Porém, repararam que ele estava com raiva. E foi nesse instante que Mário d’Almeida inventou Macopapáco — um herói de romance, tremendamente nacional.
Falha estrutural e marxismo
O romance, contudo, decepciona, primeiro por sua falha estrutural: as cenas são justapostas; raramente se interligam ou provocam a interação dos personagens. Trata-se de conjunto esquemático, no qual os melhores trechos estão, quase sempre, desligados do conjunto. Alguns, inclusive, obedecem, claramente, a intuito informativo, documental.
Safra nos faz recordar a lúcida crônica de Manuel Bandeira, publicada em 9 de setembro de 1933: citando o filólogo e crítico literário João Ribeiro, para quem a “pura imaginação” é “aptidão a reproduzir no espírito as sensações”, enquanto define “fantasia” como a “capacidade de organizar as imagens na unidade de uma obra”, Bandeira afirma sobrar imaginação aos nossos romancistas. No que se refere à fantasia, entretanto, ela é suficiente para “representar uma vida, algumas vidas”, mas quando, num romance, “elas são numerosas e as relações se multiplicam e complicam, falta-nos a força do contraponto para compô-las”. Não temos, completa Bandeira, “a aptidão de combinar tanta abundância de imagens e, sobretudo, de as exteriorizar artisticamente num entrecho que nos dê a ilusão da vida em toda a sua rica versatilidade”. Defeito que nossa literatura contemporânea só confirma.
No Prefácio, Bastos afirma que, em Safra, “a intenção social e sua experiência artística se misturam sem que um perceba o outro. Não será como água e azeite. Será, antes, como a luz e a cor”. Não cumprir o prometido é, dessa forma, a segunda decepção, pois o narrador gasta longos trechos num iterativo discurso sociológico — e, temeroso de que a catequese não convença o leitor, encarrega Chico Polia de repetir a mesma arenga. O último capítulo é sintomático: contrariando seus personagens, desprezando, do alto de sua ilustração marxista, os dramas que experimentam, o narrador quer condenar todos a um determinismo atroz — transforma, assim, em maquinismo ideológico o que, nas mãos certas, poderia ser um bom romance.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Otávio de Faria e Mundos mortos.