Respiro — livro póstumo de Armando Freitas Filho — tem esse título que nos sugere diversas chaves e veredas. A mais óbvia nos devolve àquela tarde de quinta-feira, 26 de setembro do ano passado, dia em que o livro chegou ao prelo da Companhia das Letras, enquanto canais de notícias anunciavam a morte do poeta. Estava com 84 anos, internado por complicações decorrentes da covid-19, e os prognósticos não eram nada animadores. Ainda assim, houve choque, vertigens de uma comunidade — “imensa minoria”, como diria Juan Ramón Jiménez — que sabia ter perdido muito da melhor literatura brasileira.
Sim, “perdido”. Porque, para além da obra realizada e documentada, são inestimáveis os versos que não mais serão escritos. Armando era caso raríssimo. As mais de duas dezenas de livros publicados jamais indicaram declínio de sua poesia. Muito pelo contrário, foi gigantesco até o último verso. Seus confessados medos, fixações e cansaços eram o próprio motor da espiral — que, de tão formidável, passou a ser naturalizada por seus leitores. Apegamo-nos não só à imagem do poeta incapaz de versos menores, mas também nos convencemos de que a sua figura frágil e delicada era capaz de ludibriar indefinidamente aquela que foi um dos seus temas fundamentais.
Não, a poesia de Armando — que estreou em livro com Palavra (1963) — jamais perdeu força. Acusou golpes. E os revisitou, inscreveu, fez deles material, lâminas, eito.
Contra-ataco-me, independente
do dia azul ou cinza, feliz
ou inconsolável, no lusco-fusco ou
ao sol esplêndido ou a pleno luar
fechado em casa ou solto na calçada.
Trajetória que teve os primeiros quarenta anos de publicações revisados e reunidos para o Máquina de escrever (2006) — volume no qual o poeta teve a “sensação de que trabalhava com duas facas: a de cirurgião e a de caçador”, não deixando de confundi-las.
Mas os novos leitores — que nada tenham lido daquelas quatro décadas — não passarão ilesos. Os seis títulos lançados desde então (todos pela Companhia das Letras) são mais que suficientes para ratificar lugar destacado que Armando Freitas Filho construiu na literatura de língua portuguesa. São eles Raro mar (2006), Lar (2009), Dever (2013), Rol (2016) e Arremate (2020), além deste derradeiro Respiro.
A consistência da luta vã
A quarta capa em De corpo presente (livro que completou cinquenta anos neste 2025) traz excerto de Mario Chamie, texto no qual encontramos tese que seria tantas e por tantos repetida: “É como se Armando Freitas Filho estivesse por dentro de uma práxis e de um fazer poético que já conhecesse por antecipação”. Poemas que são “registro e aviso prévio” de acontecimentos atuais “e dos que, por fatalidade dialética, se desencadearão amanhã”. Ainda que esse tão longo respiro tenha passado por diversos temas, formas e fases, foi sempre possível colher versos que anunciavam a busca, bem como o seu fracasso. O poeta firmava sina incontornável:
o que não consigo e persigo,
o que persiste, tateia e segue
seu curso — do ápice ao colapso —,
o vário fragmento, tudo o que penso
pousa em mim, e me vence.
Luta vã. Derrota de véspera. Porque a leviandade de prosseguir numa empresa fadada é uma das fundamentais razões do seu fazer.
Respiro frágil, mas insistente. Forja compulsiva, embora destinada ao inútil. Armando Freitas desbastou clássicas tensões poéticas com fervor e disciplina que dialogavam com vivências igualmente díspares: o artífice solitário, ocupado com “o mesmo ramerrão de sempre”, e o homem de afetos e caminhadas, capaz de demandas outras, de comovidas trocas, lições, doações. Muito disso tudo é mostrado ou sugerido no belo documentário Manter a linha da cordilheira sem o desmaio da planície, de Walter Carvalho.
Armando fez sua poesia com objetos, afetos e abismos. Dos dias, de dentro, de saltos. Matéria que acerava, sentimentos que o arranhavam, destinos que já tocavam o telefone ou batiam nas portas. Mas, como ressalvado por Antonio Cicero — no ensaio A poesia de Armando Freitas Filho e a apreensão trágica do mundo, em A poesia e a crítica —, o cotidiano que se busca não é aquele “em estado bruto e superficial” da poesia marginal, mas o resultado de “uma profunda apreensão trágica do mundo”. Ainda que pedras, mesmo quando mineral, tudo que resta inscrito no papel é frágil e delicado. “Sabe-se disso, pois exatamente o que é esplêndido e delicado lembra essa verdade”, conclui Cicero (que nos deixou um mês após a morte de Armando).
Heloísa Teixeira justificou a ausência de Armando na antologia 26 poetas hoje com a óbvia distância formal que o separava daqueles ali compilados. De fato, por mais interesse e diálogo que ele mantivesse com a geração, nada poderia ser menos característico da poesia marginal do que “um desejo de expressão desmesurado, mas meticuloso”, “uma ética de luta para a apreensão das coisas” — nas felizes sínteses de Viviana Bosi (do ensaio Objeto urgente, veiculado tanto no seu livro Poesia em risco: itinerários para aportar nos anos 1970 e além, quanto no supracitado Máquina de Escrever).
Frágil e denso Respiro
Também é Viviana Bosi que ressalta tensão fundamental: a busca de apreensão convive com “o medo de cristalizar-se”. Porque, se finalmente apreendida, domada, a vida “perderia o sal, a liberdade de seu devir”. Liberdade miúda, mirrada, vital. Esses tensos movimentos não fazem perder de vista as linhas do horizonte perseguido e desde sempre inalcançável. Ou, como o próprio poeta definiu — em entrevista concedida a Mário Alex Rosa e Anelito de Oliveira —, seu percurso poético é um “caminho de rato, um zigue-zague”: “É que escrevi, escrevo, o que posso, não o que devo, e o que posso está muito aquém do que devo” (depoimento compilado no livro Profissão: poeta: Perfil, poemas, entrevistas).
A capa do seu primeiro livro (Palavra, de 1963) já chamava atenção: elas estão lá, as palavras-orbes-projéteis, pedras de amolar e atirar; o lápis, o papel, risco, disparo, a casa e o corpo, morte, silêncio, mar. Elementos se repetem título após título, mas os núcleos que eles orbitam surgem inevitavelmente mais densos. Nessa poética de reiteradas tensões, a crescente densidade torna cada vez mais urgentes e delicados tudo que devora.
Tanta coisa já foi dita e publicada sobre a poética de Armando Freitas Filho. Tantas trilhas possíveis — não para o devassar, mas de cômodos que levam a outros cômodos. Parafuso, puzzle, zigue-zague, espiral… numa fita de Moebius? Tal fortuna crítica só confirma a coesa e sofisticada inquietude de sua poética, que se expande, modula, descasca, sem perder seus centros gravitacionais — os quais não conseguimos reunir em ponto visível, ainda que saibamos por onde procurar, pois seu horizonte de eventos aponta (e nos laça, desmonta, refaz).
Tudo isso está presente no Respiro, inclusive pelo não-dito, pelos silêncios. Inegável, contudo, que o tema da morte ali se destaca. O livro mira nesse fim inevitável, antecipa-o, ensaia-o em diversos poemas. Ossos que pelos nossos esperam, sem pressa, atentos ao sopro que os carrega, que sempre os carregou — repleto de desconfianças, esquecimentos, soluços, mas que não cessou de véspera. Sem saída, entre a impossibilidade do poço e o termo inevitável, o poeta seguiu sobre as cordas que lhe foram possíveis:
Não olho para trás
nem para frente.
Pelo menos é assim
que acredito, embora
desconfie da afirmação.
De todo modo, certo
mesmo o que tenho
é o espremido espaço
de agora, sentindo
o punhal nas costas
e a bala vindo no peito.
Cada enjambement faz com que também hesitemos, gaguejemos, refaçamos a leitura dos versos até que nossa própria respiração/voo chegue nas frequências lançadas pelo poema. Buscamos juntos, fracassamos juntos. Nessa jornada, quanto mais familiarizado com a obra de Armando, mais o leitor é convidado a montar suas próprias pontes e volumes. De cor (1988), por exemplo, traz o poema Ravel, onde “todo telefone é terrível — negro/ guerrilheiro à escuta na sala”, na “véspera da granada/ com o grampo nos dentes fora do ganho”. No livre seguinte (Cabeça de homem, de1991), há o Buraco negro com seu furo de telefone, “que só quer morder/ — que não come —/ mastiga, metálico/ e cospe”. E, no Respiro, ele Toca
Qualquer telefone é repentino
mesmo quando esperado.
Suicídio, moto, distração
a morte é uma só.
O que parece improvável acontece
no susto, no sono, na função do corpo.
O medo é o motor da vida
sempre indo em frente
sem freio, sem marcha a ré
pisando com força
o acelerador do destino
de qualquer forma, até parar
por acaso, desastre ou desejo.
Os tigres, que aparecem em outros momentos da sua obra, reaparecem não mais prontos para “atacar a carne das palavras” (Bosi), mas à véspera da extinção, de virar milagres, sonhos, embora não “esquecidos por completo/ porque estarão andando/ nos versos inesquecíveis/ de Blake, de Borges”. Em Numeral/Nominal (2003), Armando passou a numerar uma parte dos seus poemas. Se no 1 há um pensamento que não engrena, e o “Pulo de dois pés juntos/ para dentro de você, de mim”, agora temos o 247 (últimos versos, de 2017), que traz outro salto:
Não quero que a morte
me mate: antes, quero matar
a morte. Quero escolher
o modo de morrer: bala
faca, veneno, carro, assalto
quero o salto no vazio
não da janela muitas vezes
dado, mas o pulo que não
seguro dentro do meu corpo
e não tenha tempo de ter medo.
Decerto é grande a tentação nos leitores e críticos de ter Armando Freitas Filho como marco, baliza final de um longo e magnífico arco de poetas imensos. Aqueles cujos versos foram seus declarados faróis (para iluminar, ou serem fraternalmente contraditos): Drummond, Bandeira, Cabral e Gullar. Mas é cedo para isso. Ou demasiado tarde. Tais modos de pensar e lotear a literatura soam datados, murmuram dentro de caixas de vidro que não conseguiram acompanhar o ritmo de Armando — cujo respiro o antecedeu, persiste e vencerá a todos nós.
PRATELEIRA
Armando Freitas Filho
1963 | Palavra
1966 | Dual
1970 | Marca registrada
1975 | De corpo presente
1977 | Mademoiselle Furta-Cor
1979 | À mão livre
1982 | Longa vida
1982 | A meia voz e a meia luz
1986 | 3×4
1986 | Paysandu Hotel
1988 | De cor
1991 | Cabeça de homem
1994 | Números anônimos
1995 | Dois dias de verão (com Carlito Azevedo)
1997 | Duplo cego
1999 | Erótica
2000 | Fio terra
2001 | Três tigres (com Vladimir Freire)
2001 | Sol e carroceria
2003 |Máquina de escrever — poesia reunida e revista
2006 | Raro mar
2009 | Lar
2013 | Dever
2016 | Rol
2020 | Arremate
2024 | Respiro