Manual sofisticado de leitura

Em "A arte de ler", Émile Faguet elabora uma peça que faz um apelo à leitura racional, crítica e consciente
01/09/2009

Não basta ler, é preciso saber ler. Este parece ser o mote de A arte de ler, um pequeno grande livro assinado pelo pensador francês Émile Faguet. Aluno da prestigiosa École Normale Superiéure, centro de excelência na terra de Napoleão e de Sartre, o autor disserta em pouco mais de 140 páginas sobre o exercício da leitura. Não qualquer leitura, que fique claro. Aliás, os leitores horizontais, ou mesmo os adeptos da leitura dinâmica — seja lá o que isso quer dizer — devem evitar essa obra. Ou devem lê-la com atenção e cuidado.

Em verdade, o texto se propõe a ensinar como o leitor pode desfrutar melhor desse hábito que, como todas as demais atividades da sociedade contemporânea, foi tremendamente afetada pela urgência e pelas novas tecnologias. De um lado, não faltam lançamentos e títulos e compêndios que “devem ser lidos” a qualquer custo. Por outro lado, não faltam sites, blogs, microblogs e comunidades na internet que absorvem enormemente o tempo de concentração do outrora leitor comum. No caso particular do Brasil, em que os índices de leitura estão abaixo da média, é forçoso observar que, mesmo quando as pesquisas apresentam dados animadores em relação à quantidade, a qualidade é, muitas vezes, deixada de lado. Assim, encontra-se um cenário em que ler torna-se um ato não só impopular nesses tempos das chamadas redes sociais, como também é uma tarefa cada vez menos compreendida mesmo pelos considerados bons leitores.

Engana-se, no entanto, que esse estado de coisas seja um problema decisivo do nosso tempo. Antes, trata-se de uma constatação feita mesmo por Voltaire no auge do Iluminismo. Em outras palavras, não é de hoje que os índices de leitura estejam necessariamente baixos para as expectativas. Pode-se até arriscar, com alguma razão, que hoje se lê mais, uma vez que a quantidade de material disponível para leitura nas inúmeras plataformas tenha sido levado à enésima potência. De volta ao ponto inicial, portanto, não basta ler, mas é preciso saber ler. Émile Faguet elabora uma peça que faz um apelo à leitura racional, crítica e consciente. Para tanto, o autor enumera uma série de pontos que devem ser seguidos para que essa atividade seja cumprida com êxito. A começar pela necessidade de ler devagar. E aqui mesmo alguém pode dizer: “Ora, mas num cenário em que as ediotras distribuem tantos livros, ler devagar pode ser mesmo um desperdício”. Parece evidente que a leitura mais morosa implica no consumo de menos volumes. Todavia, e esse é o argumento do autor, quem lê devagar consegue divisar com de forma racional o livro que merece atenção daquele que merece ser desprezado.

Adiante, Faguet apresenta uma defesa dos livros de idéias. É, de fato, um livro de outros tempos. Num cenário que se comemora no mercado editorial a existência dos megasellers e dos campeões de vendas, esse tipo de apologia nada contra a corrente. Pois, de modo geral, as obras que constam das listas dos mais vendidos das revistas semanais não primam pela reflexão que propõem aos seus inúmeros leitores. Sim, é verdade que existem as exceções de sempre, mas estas tão somente confirmam a regra geral. De volta ao livro, o pensador ressalta não só a importância da leitura dos clássicos, à maneira de um Italo Calvino, mas defende a leitura de filosofia, sobretudo de autores como Pascal, Platão e Montesquieu. Faguet atesta: ler um filósofo é compará-lo inúmeras vezes a si mesmo. Significa, em outras palavras, observar o que é idéia sentimental, o que é idéia ideológica, e quais são as chamadas idéias puras. A certa altura, o autor diagnostica: “começamos por não saber identificar captar as contradições ao ler os pensadores; depois, as observamos demais”. E a construção de um leitor, tal qual o conhecimento do indivíduo, se dá de forma cumulativa, jamais de maneira imediata.

Livros de sentimento
Faguet discorre, também, dos chamados livros de sentimento, aqueles com os quais, entre outras coisas, os leitores identificam nos romances o que se viu na vida. Nesse caso, o autor ensaia uma reflexão acerca de como determinadas obras calam fundo acerca da representação de um grupo ou de um comportamento social. Novamente aos clássicos. Madame Bovary, de Gustave Flaubert, espécie de narrativa exemplar acerca de como a sociedade pode ter seus principais dilemas e conflitos dissecados em uma narrativa ficcional. Há que se notar, com efeito, a importância da consideração de Faguet, já que ainda hoje a obra funciona como referência para retratar certo estado de apatia e lassidão da burguesia. Um dos grandes romances desse início de século 21, Sábado, de Ian McEwan, faz alusão ao romance de Flaubert para tratar da aparente felicidade do homem contemporâneo. Ele tem tudo para ser feliz, mas nada o completa, de fato. Nesse capítulo, o autor passa a considerar o perfil de cada leitor a partir do gênero literário que cada um aprecia.

Sobre as peças de teatro, Faguet ressalta a importância da leitura dos textos para um julgamento de segunda instância. Nesse sentido, o pensador assinala que a interpretação a partir do que está escrito é tão relevante quanto a encenação em si. Há, nesse caso em particular, a apologia de uma maneira de entendimento em relação ao outro: “É através da leitura de uma peça que se foge ao fascínio da representação. É lendo que não se é mais iludido pelas manobras dos atores”. É como se Faguet dissesse que a prova final no que tange à qualidade literária de uma obra teatral fosse, sim, a leitura e não apenas a montagem de um espetáculo. Como base nessas premissas, o autor vaticina para a leitura de clássicos como Édipo rei e Antigona. De forma semelhante, Faguet aconselha em prol de uma leitura criteriosa no que se refere aos poetas. Segundo o autor, é necessário que se leia poesia, num primeiro momento, em voz baixa e, em seguida, em voz alta, para melhor apreciação não só da sonoridade dos versos, mas, principalmente, para que se possa compreender o sentido atribuído às palavras pelos poetas. Nesse capítulo, o autor adota o método de comentar versos de alguns poetas a fim de fazer valer seus argumentos acerca desta observação criteriosa. Em termos de legibilidade, trata-se de um texto árido para o leitor comum, uma vez que é bastante esquemático.

Autores difíceis
Nos dois capítulos seguintes, Faguet escreve acerca de escritores obscuros e dos maus autores. Atualmente, o senso comum afirma que os leitores devem apenas ler aquilo que lhes dê prazer imediato, deixando de lado todos os textos que, de alguma forma, estabeleçam uma condição de mal-estar. Os danos causados por tal pensata não podem ser medidos. E, com isso, grandes leitores em potencial tão somente conseguem seguir histórias simplórias, fugindo da complexidade. Além disso, autores que não pertencem ao cânone, por exemplo, são sumariamente descartados porque não foram, assim, “experimentados”, tornando-se declaradamente obscuros, porque difíceis de serem compreendidos à primeira vista. Sobre isso, Faguet declara que: há algo de justo nos apreciadores dos autores difíceis. O que não significa, ressalta o pensador, que os escritores dedicados ao chamado pensamento complexo devam ser endeusados. Não precisaria ir longe: Gracilano Ramos é mestre da palavra sem ser complexo ou pedante, ao contrário de um beletrista à moda de um Coelho Neto, para ficar em dois exemplos da literatura brasileira. Em seguida, Faguet defende que, com discrição, às vezes é bom ler os autores, uma vez que estes podem trazer, com efeito, conversas divertidas e, ao mesmo tempo, reafirmar o gosto pelos bons livros necessários.

No capítulo seguinte, Faguet, à primeira vista, escorrega em seus próprios argumentos e afirma que a leitura crítica pode ser, sim, considerada um inimigo da leitura. Para o autor, tal hábito pode fazer com que o exercício de ler torne-se tétrico a ponto de impedir o prazer descompromissado com a leitura. Agora, se o leitor associar esse ponto de vista com o do capítulo anterior, há de notar certa coerência estrutural em suas idéias. Eis uma virtude de Emile Faguet: ele sabe mostrar de forma clara seus argumentos. Dessa maneira, embora seja autor de um ensaio bastante subjetivo, é correto afirmar que seus princípios estão de acordo com as suas idéias originais. É possível, portanto, acusá-lo de ser elitista, mas este pensador em A arte de ler não é um demagogo.

A arte de ler
Émile Faguet
Trad.: Adriana Lisboa
Casa da Palavra
143 págs.
Émile Faguet (1847-1916)
Titular da cadeira de Poesia Francesa na Sorbonne e tornou-se membro da Academia Francesa em 1900, tendo colaborado com o Journal de Débats. Em sua trajetória intelectual, ficou conhecido como crítico literário e teatral.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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