Uma sociedade ideal é rica e próspera e não necessariamente inteligente. Assim é que roda o mundo: com dinheiro; jamais com livros ou com o que eles possam representar. Escrever sobre um livro que por sua vez fala de outros livros é analisar não só a inteligência em si, como a inteligência sobre a inteligência ¾ algo mais difícil que se possa imaginar. Ainda mais quando o livro em questão é de Harold Bloom, o homem que é hoje possivelmente o maior bastião desta arte que aos poucos vai ficando escondida num canto empoeirado do sótão, chamada literatura.
Como e Por Que Ler (Objetiva, 276 págs.) é o mais recente livro de Bloom, professor em Yale e Nova York para uns poucos afortunados. Lê-lo é, antes de mais nada, vislumbrar a quantas anda, cá em terras verde-e-amarelas, nosso pensamento crítico literário. Porque Bloom não nos atenta apenas para as questões universais que a boa literatura evoca; trata também dos pequenos gestos que, aos poucos, estão fazendo com que a literatura tenha um papel cada vez mais secundário na vida das pessoas. Na Era da Informação, vulgo Era do Pragmatismo, haverá papel para a imaginação? Em terras tupiniquins, imaginação é artigo de luxo.
Aqui no Brasil, um livro como o de Bloom é inviável. Porque o crítico norte-americano centra todo pensamento num foco tido como irrelevante para nosso exegetas: o leitor médio. É para ele que o livro é escrito ¾ e não para ratos de biblioteca. Bloom escreve para quem segura Hamlet e pergunta: “mas para que diabos tenho de ler uma peça escrita há 500 anos?”. Não há nada de errado nisso; Bloom quer é criar um público que novamente veja no hábito extremamente solitário da leitura algo prazeroso e útil em sua vida.
No seu prólogo, este crítico de 70 anos divaga sobre o futuro da literatura numa visão bastante cética, mas que não recai em momento algum no pessimismo. Questiona ele o valor da informação visual como fornecedora de um material perene de pensamento para o homem. Na verdade Bloom refuta esta idéia, dando-nos, assim, a impressão não de estarmos subvertendo um estigma da nossa época ¾ o de que uma imagem vale mais do que mil palavras ¾, e sim o de o estarmos moldando em proveito próprio, isto é, criando nossas próprias imagens, multiplicando as palavras que lemos.
Para tanto, o conselho a ser seguido é o de não perder tempo lendo bobagens, i.e., Stephen King, Paulo Coelho e coisas do gênero. O leitor tem de beber direto das melhores fontes e a maioria destas fontes são aquelas que fazem parte do cânone defendido pelo autor em O Cânone Ocidental (Objetiva, 556 págs.). A peça-chave do pensamento bloomiano é, como não poderia deixar de ser, William Shakespeare.
Crente, por certo, de que o leitor de Como e Por Que Ler não é muito afeito à leitura, Bloom inicia o livro com um passeio pelo que há de melhor no conto. Turgenev, Tchekhov, Maupassant, Hemingway, Flannery O’Connor, Nabokov, Borges, Landolfi e Calvino são os autores usados para dar uma visão geral deste gênero e para propor ao leitor um pacto de vida selado com tinta e papel. A partir da leitura destes nomes, garante Bloom, o universo imensamente rico da boa leitura pode já começar a fazer mudanças na vida do leitor. Que não se enganem, contudo; nada há de mágico nesta mudança e tampouco a vida vira de forma pragmática (dinheiro, ascensão social etc.). A mudança que o leitor sofrerá será de outra natureza: a do bem.
E aqui iniciamos um parágrafo para discutir o que o Bem significa em Bloom. Nada que se assemelhe ao pensamento maniqueísta a que estamos acostumados. O Bem está ligado ao senso de justiça ¾ nada mais subjetivo. Lê-se para saber julgar o certo e o errado com uma gama maior de vivência do que a própria vida é capaz de nos dar. O Bem não quer dizer ajudar a velhinha a atravessar a rua; mas saber se é necessário dar-lhe o braço ou deixá-la desamparada numa esquina qualquer.
Dos contos à poesia. Terreno árido, de difícil acesso ao leitor médio, a poesia é um caminho cheio de espinhos, aterrorizante mesmo, para quem pela primeira vez quer ter contato com as letras. É bom, a esta hora, recorrer novamente ao prólogo de Bloom e nos atermos à importância da solidão para uma boa leitura. E solidão significa não somente estar cercado por quatro paredes, como um fugitivo do mundo real. Pelo contrário, significa estar imerso na imaginação, em comunhão com os personagens que povoam a terra mítica da literatura. Nada de fazer como certas pessoas, para as quais a solidão é algo tão impossível que, quando lêem, resolvem colocar música para não se sentirem “tão sozinhas”.
No que diz respeito aos poemas, tenho de chiar um pouquinho. Só um pouquinho. E não é com Bloom exatamente. Como e Por Que Ler foi escrito em inglês, por um crítico norte-americano cujo objeto de análise é essencialmente o que está disponível em língua inglesa. Não é à-toa, portanto, que não encontraremos ali nenhum poeta de língua espanhola. No que diz respeito a esta parte do espetáculo, tudo se enevoa e o leitor médio, supostamente iniciado na literatura pelos contos apresentados por Bloom, se sentirá meio órfão, já que a maior parte dos nomes citados neste capítulo não está disponível em português. E mesmo que estivesse, é provável que a transposição dos poemas para nosso idioma seja imperfeita ao transmitir a beleza melódica das obras apontadas por Bloom.
Entre os nomes citados, estão A.E. Housman, William Blake, Walter Savage Landor, Tennyson, Browning, Whitman, Emily Dickson, Emily Brontë, Shakespeare, John Milton, Wordsworth, Coleridge, Shelley e Keats. Nada hermético, Harold Bloom não se atém às obras dos autores, mas a certos poemas somente ou a trechos de poemas. Para o leitor brasileiro de Como e Por Que Ler, fica complicado imaginar a dimensão de tais poemas quando transpostos para nosso idioma.
A imensa maioria dos leitores, na verdade, quer é a indicação de bons romances. Tal gênero é o de maior aceitação e ao mesmo tempo repulsa populares. Por algum motivo esotérico, o romance é o espelho da literatura e também sua porta de entrada mais ampla. O que não significa que seja a mais fácil. O raciocínio da Era do Pragmatismo funciona de forma a avaliarmos a relação tempo/benefício dos livros de que dispomos. Quando se lê contos ¾ não coletâneas, mas contos isolados ¾ e deles não se gosta, a impressão é a de não se ter perdido o tempo precioso. Já o romance mal lido eqüivale a muitas horas jogadas fora. Portanto, é necessário cuidado e critério neste quesito, para não afugentar de vez o leitor arredio.
Os nomes escolhidos por Harold Bloom para iniciar o leitor são Cervantes, o pai de todos os romancistas, Stendhal, ídolo de Machado de Assis, Jane Austen, Charles Dickens, Dostoiévski, muito citado e muito pouco lido, Henry James, Proust e Thomas Mann, numa primeira parte, interrompida para uma longa divagação sobre a dramaturgia de língua inglesa.
Aqui entra a grande paixão de Bloom por Shakespeare ¾ e somos mais uma vez prejudicados seja pela falta de títulos do autor disponíveis, seja pelas traduções mal feitas. Ibsen e Oscar Wilde completam a tríade de ouro da dramaturgia de língua inglesa.
Dando mais uma guinada para os romances, na parte final do livro Harold Bloom cita Melville, Faulkner, Nathanael West, Thomas Pynchon, Cormac McCarthy, Palph Ellison e Toni Morrison.
A esta altura, se você me leu até aqui, deve ter-se perguntado: “ué, e os brasileiros?” ou “ué, e o Saramago?”. Pode residir nestas perguntas certa dose de ufanismo, mas é comum que nós, afeitos a nossa literatura desde cedo, aprendendo ano após ano na escola a odiar nossos escritores, é comum que sintamos falta de nomes como José de Alencar (como e por que ler José de Alencar?), Machado de Assis (como e por que ler Machado de Assis?), Guimarães Rosa, Mário e Oswald de Andrade, Clarice Lispector, Graciliano Ramos ou até mesmo os mais remotos e pouco explorados nas escolas: Gregório de Mattos, Tomás Antônio Gonzaga, Álvares de Azevedo e similares.
A resposta é, a um só tempo, simples e difícil. A resposta simples recai no axioma irreversível (pleonasmo, bem sei): lemos, escrevemos e falamos uma língua fadada ao fracasso. O português aparece como quinta língua mais falada no mundo, mas não tem influência alguma. Nosso maior poeta, o Dante português, Camões, é um desconhecido mundo afora. A resposta difícil diz respeito à inteligência brasileira, ainda apegada aos costumes coloniais e, portanto, de difícil difusão. Ler Harold Bloom, com suas frases às vezes presunçosas mas jamais insinceras, é se perguntar por que no Brasil nenhum dos nomes tão supervalorizados de nossa crítica se dedica a um trabalho semelhante, de ensinar ao leitor comum, ao protoleitor, os prazeres da leitura.
Aqui entraremos num verdadeiro circunlóquio no qual a preservação do conhecimento (tradição colonial) é a principal vilã. Se de um lado temos uma carência de leitores, que preferem ler romances açucarados a ler a amargura de Machado de Assis, de outro temos críticos e exegetas auto-centrados, alheios para estas pessoas que ano após ano aprendem a odiar a literatura por conta de um ensino deficiente. Toda a produção de conhecimento em literatura no Brasil está voltada para o leitor já formado, que não raro freqüenta a universidade. Este círculo-vicioso exclui, como sempre, o Zé, 19 anos, segundo grau completado a duras penas num supletivo, pintor de paredes e biscateiro nos fins de semana, que queria saber como é que as outras pessoas podem gostar tanto de ler. Ele também queria ler. Só que ninguém o ensina.
Em tempo: não se assuste (nem ria descaradamente), mas Como e Por Que Ler, em algumas livrarias, está exposto na seção de auto-ajuda.