Se existe mérito em Aves de arribação, do cearense Antônio Sales, é o de concentrar, em quase duas centenas de páginas, os defeitos da literatura brasileira, mostrar que eles conseguiram vencer, incólumes, o século 19 e ressurgir nesse romance anacrônico, repleto da ornamentação piegas que polui os livros de José de Alencar, do naturalismo exacerbado de Aluísio de Azevedo e da retórica afetada de Raul Pompeia. Obra que Lúcia Miguel-Pereira não leu ou leu mal, a ponto de não explicar o que tentou dizer, em Prosa de ficção, ao chamá-lo de “livro de qualidades”. Elogio impreciso, de certa forma repetido por Alfredo Bosi, para quem Aves de arribação “se lê ainda hoje com agrado”. Ninguém, contudo, foi tão enfático quanto Massaud Moisés:
Tudo bem ponderado, parecendo acima ou à margem das ortodoxias estéticas, colhendo na realidade o assunto galante e transfundindo-o em arte com “sensação e força”, fundando-se na observação do cotidiano, mas sem apelo aos maniqueísmos patológicos ou sentimentais, Aves de arribação pode bem situar-se na ficção que prenuncia o romance nordestino dos anos 30.
Não é, decididamente, o que encontrei nesse romance verboso, no qual o talento escasseia.
Extravagâncias
Os perfis e rascunhos de trama apresentados no Capítulo 1 morrem ali mesmo, pouco restando das diferenças políticas tão salientadas, que acabam servindo apenas como tênue pano de fundo para uma história de mexericos, sentimentalismo provinciano e dramas mesquinhos. Subtraídas as incongruências, resta o parágrafo que fecha o capítulo, síntese dos problemas repetidos até o final:
Por todas as abertas do templo se escapavam morcegos para a razia noturna, tomando rumos diversos, num vôo trôpego, a que faltava a flutuação serena da plumagem. Nos tamarindeiros do quintal as graúnas faziam as despedidas ao sol, desferindo as notas agudas e limpas do seu canto, a estalarem cristalinamente na calma religiosa do ar.
A plumagem que falta aos morcegos sobrará, logo a seguir, nos galos cujos cantos “se repetiam de quintal em quintal num concertante wagneriano”. Não bastasse o despropósito da imagem, o narrador a esmiúça, por masoquismo ou sadismo, salientando as “notas grossas e arrastadas de galos velhos, outras limpas e retinidas de galos novos, tudo entremeado dos falsetes dos franguinhos pretensiosos e dominado pelas fanfarras intermitentes das galinhas-d’angola”. Trata-se de verdadeira banda marcial, reveladora da fixação ornitológica desse antipatizante de Wagner. Apenas anunciada no Capítulo 2, alcançará o clímax no Capítulo 7, quando uma epidemia de pássaros ataca o leitor, precedida deste parágrafo, outro resumo do estrago causado pela eloqüência:
Já saturado d’água, o solo não emitia esse calor de cio que lhe irradia das entranhas ao contato das primeiras chuvas. Os rios corriam túrgidos, na majestade soberana das grandes forças, atingindo a orla das altas ribanceiras, de onde se debruçavam os mofumbos folhudos e os canoés alongavam as raízes longas e retilíneas como os tubos de um órgão. O marulho surdo das águas, rolando sobre as lajes do leito, acompanhava o grande coro das aves, cujas vozes, diferentes de som e expressão, se harmonizavam no mesmo hosana festivo em honra da estação bendita.
Na seqüência, insistindo na metáfora sinfônica, o autor nos oferece aborrecida “confusão maviosa de uma Babel musical”, com nada menos que 11 parágrafos dedicados, cada um, a um pássaro diferente, exercício artificial de estilo, perfeito talvez num livro de zoologia, mas que, no romance, além de descontextualizado, serve apenas para comprovar o demérito do escritor, cuja incansável atração pelo tema ainda produz, no final do capítulo, terrível paralelo: “E, tomando o pé da rapariga na mão direita e segurando-lhe a cinta com a esquerda, guindou-a até a altura da sela, onde ela se sentou com um donaire de ave que pousa num ramo”.
Outra excentricidade do narrador é composta pelas paisagens evocativas — nas quais é necessário sempre inserir um elemento dourado. As nuvens, no final da tarde, podem ser — não obstante a cacofonia — “pardas oureladas de ouro”. Mais à frente, também o sol matinal “redourava magnificamente” as “ruas mesquinhas”; e o próprio capim mostra-se “salpicado aqui e ali de pequeninas flores de ouro”. A cor retorna neste trecho de tom horrivelmente hiperbólico:
De volta, encontraram toda a família, que saíra ao encontro deles, a passear pelo pátio, todo fulgurante de uma póstuma claridade solar, que projetava em todas as superfícies fronteiras uma ardente coloração de incêndio. Os morcegos surpreendidos doidejavam no espaço e mergulhavam no estendal das frondes em busca da escuridão foragida. Florzinha, de branco, rutilava naquele fundo incandescente como uma estátua de ouro; e naquele instante Alípio sentiu que, com o seu vestido de cambraia e ao clarão daquele pôr do sol fantástico, ela era mais formosa que se estivesse coberta de seda num salão flamejante de luz.
As nuvens “oureladas de ouro” voltarão no início do Capítulo 8, agora aguardando “o carro ígneo do estio”. E adivinhamos a mesma, repetida imagem, no último capítulo, no poente “todo em fogo”, que “corroía os contornos caprichosos dos formidáveis torrões de nuvens por cujas seteiras se derramava a luz como jorros de metal em fusão”.
Verborragia
A tediosa predileção de Sales pelo adjetivo produz aberrações diversas. Não há dificuldade em imaginar “pintinhos gritadores”, mas que eles sejam inclusive “flocosos”, bem, certamente há formas melhores de descrevê-los. A desmedida pode criar monstros: a personagem que apresenta “brilho úmido dos olhos a arderem inquietos sob o velário negro das pestanas palpitantes” ou esta, que, ao discursar, atinge “o delírio lúcido dos oradores da raça”. Após farto almoço, os personagens fumam e conversam, “enquanto passava a crise da digestão”, talvez pontuada de algumas cólicas. E muito pode ser subtraído destes pobres cavalos de feira, perdidos numa cidadezinha do interior do Ceará, mas transformados em seres mitológicos:
[…] nédios animais de sela, tratados com esmero, gordos de se “poder lavá-los com uma bochecha d’água”, aprendidos em todas as marchas, quer na estrada, quer na meia marcha, quer por cima, na alta esquipação, em que desfilam vertiginosamente, de pescoço encapotado, a tocar com o beiço inferior no largo peito branco de espuma, as fartas crinas agitadas ao vento e a cauda longa e crespa desfraldada e soberba como um pavilhão triunfante.
O mesmo hiperbolismo agiganta “uma sensação de deslumbramento produzida pela visão fulgurante de um vestido branco ao sol e de uns cabelos soltos que o vento repuxava num feixe luminoso, como a cauda de um cometa”. E Alencar, esteja onde estiver, com certeza alegra-se ao ver o conterrâneo passarinheiro aprimorar, até o paroxismo, suas lições:
A emoção só não atingira às graúnas, que, do alto dos tamarindeiros, garganteavam ao cair da tarde notas sublimes ressoando cristalinamente sob um céu purpureado que se arqueava sobre a cidade com uma majestade feita de serenidade e de mistério.
O rebuscamento não conhece limites, a lista de horrores é infindável, os lugares-comuns se repetem e o resultado cria, inúmeras vezes, efeito cômico, diverso do pretendido pelo autor: certa personagem tem as palavras “cortadas freqüentemente pelos ecos dos soluços extintos, como lufadas de um temporal que se afastava”; outra “praticara em seu eu a mutilação da consciência, e adquirira por isso a indiferença feroz de um eunuco moral” — descrição no mínimo grotesca.
Não bastam “sonhos epitalâmicos” — e é preciso repetir as lições de eloqüência forense aprendidas com Raul Pompeia, como neste trecho em que a humilde professorinha tem de enfrentar seu primeiro amanhecer sem hímen:
A certeza do desastre era nítida fisicamente; mas havia ainda uma porção de sombra do extinto e agitado sono a povoar-lhe o espírito, a envolver, como no aconchego protetor de um nimbo escuro, os pensamentos alucinados com que adormecera morbidamente ao tombar despojada de suas asas, numa queda rápida e brutal, com todo o peso inerte de sua carne maculada para sempre.
Asas que voltarão na ênfase desmesurada, cheia de lugares-comuns, por meio da qual o narrador descreve o resultado de um emotivo, mas fortuito, diálogo entre mãe e filha:
A conversação tinha girado indiferentemente à superfície da alma, cada uma das duas mulheres evitando descer ao âmago do sentimento, onde a dor latente latejava, pronta a sangrar ao primeiro contato da realidade. Foi refletindo mudamente, sem o derivativo nervoso da palavra, enquanto ambas aprofundavam com o pensamento os sítios dolorosos de seus corações, que se romperam os diques das lágrimas. Os braços se entrelaçaram com ímpeto, as faces se procuraram com frenesi, os peitos unidos bateram no descompasso da aflição. Elas eram como duas aves de asas feridas que se juntassem para voar ainda, ou como duas naves em perigo que se unissem para flutuar ou soçobrar juntas. Os seus soluços valiam por juramentos de um pacto de vida e morte, contra o qual nada pode uma vontade estranha.
É o que, linhas à frente, o autor chamará, acreditem, de “correlação magnética das duas almas”.
Tal narrador verborrágico e de ferozes tendências ornitológicas perde páginas e páginas esmiuçando os sentimentos dos personagens ao invés de fazê-los interagir. Ele realmente acredita que pode sustentar frágeis personalidades utilizando apenas discursos melodramáticos. Prolixo, transforma um rapaz tímido e uma jovem que apenas se ressente de não ser amada em excrescências da imaginação:
Entre Matias e Luizinha, ao contrário, o namoro se delineava claramente, e a lembrança de seu antigo afeto a Florzinha começava a tomar na alma do rapaz o feitio apagado e disforme de um sonho distante e que já começava a parecer absurdo. E assim essa paixão, nunca traduzida por uma palavra, existindo embora latente nessas duas almas, ia morrer, agonizava já dentro do berço a que faltou o calor fecundo e ativo da coragem animal do homem; tivesse-a Matias e encontraria em Florzinha a força passiva que recebe, concentra e assimila essa coragem em prodígios de resistência contra os obstáculos opostos pelas vontades estranhas. Morria a larva no casulo; mas Florzinha pensava naquele momento que em toda a sua vida havia de sentir o corpo estranho daquele esquifezinho a pesar-lhe dolorosamente num ponto do coração.
Terminado o trecho, devemos agradecer ao autor por não ter oferecido mais detalhes sobre o pequeno caixão de defunto.
Naturalismo
Esse tal “calor fecundo e ativo da coragem animal do homem” faz parte das influências naturalistas de Antônio Sales, principalmente quando se trata de expor o drama de Bilinha, professora seduzida pelo promotor Alípio, a fim de cumprir o que sua própria mãe, velha prostituta, chama de “fado ruim”, marca de todas as mulheres de sua família, “funesto desenlace” que a velha espera com “indiferença budista” e chega até a comemorar. Conclusão à qual a própria Bilinha desperta, enquanto observa suas alunas, não sem antes — sim, o narrador abusa da nossa paciência — compará-las a pássaros:
Lá estavam as inocentes a grazinarem baixinho, descuidosas como um bando de aves pousadas sobre o lamaçal de um caminho. Nascer para ser mulher… Qual seria o destino de cada uma dessas criaturinhas? Umas casariam, estas bem, aquelas mal; outras morreriam sem ter conhecido os mistérios do amor com seus gozos e suplícios; outras… Não haveria entre elas algumas, ao menos uma, fadada para o infortúnio que a ferira de maneira tão desastrosa? Alguma devia ter vindo ao mundo eivada do vírus maléfico que mais cedo ou mais tarde destrói uma existência, como acontece aos herdeiros dos morbos implacáveis. […]
Bolorentas teses naturalistas, que permeiam todo o romance, como no encontro casual de Alípio com um estrangeiro:
Logo adiante deu de cara com um sujeito vermelho, cara raspada, vestido de brim branco, chapéu de chile, desabado, sem fita, perneiras de couro amarelo: era um moço americano, comprador de peles de cabra. E Alípio sentiu o forte contraste daquela atividade enérgica e vencedora com a moleza enervada de um rapaz da terra, que, em mangas de camisa, derreado de uma janela olhava basbaque o estrangeiro mover-se direito e rápido na faina do seu negócio.
Pedido de desculpas
Nada se sustenta nesse livro. Devemos, portanto, à conterraneidade ou a algum tipo especial de febre os elogios que Rachel de Queiroz fez ao romance. Quanto a Tristão de Athayde, ao festejar a reedição do romance, em 1929, soube escrever um desses textos, tão comuns ainda hoje, em que a falsa cordialidade brasileira sobrepuja a necessária independência da crítica. Resta a Wilson Martins o papel de única voz lúcida, por ter salientado o caráter menor livro — “quanto ao estilo romanesco e à técnica narrativa” — e o fato de Antônio Sales “não ter sabido escrever o romance que soubera imaginar”.
Na verdade, o próprio autor tinha consciência de sua imperícia. Publicado na forma de folhetim, no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 1902, Aves de arribação ganhou o formato de livro em 1913, com uma “Nota ao leitor” algo melancólica:
Escrevi há muitos anos esta novela […].
Desde então nunca mais a reli senão agora quando, animado por alguns amigos, resolvi editá-la em volume.
Desta leitura verifiquei que muita coisa teria nela a modificar; mas preferi deixar que apareça tal como saiu no jornal, salvo ligeiras correções.
A crítica encontrará, por certo, neste trabalho, muitas falhas e inexperiências, que já são sensíveis para mim agora […].
Podemos, é claro, acatar este pedido de desculpas, compreender o embaraço do autor, a difícil decisão de, consciente dos problemas, aceitar a publicação do romance. Mas nada justifica os elogios irrefletidos que Aves de arribação tem merecido, obra massacrante à qual podemos conceder, sem injustiça, o título de vade-mécum da literatagem nacional.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Hugo de Carvalho Ramos e Tropas e boiadas.