“A idéia de matar é de tal modo inerente ao homem, que, à falta de atentados sanguinolentos a cometer, ele mata calmamente o tempo. Sua linguagem o trai. Por que não diz, nas horas de ócio e recreação ingênua, que está vivendo o tempo? Prefere matá-lo”, é o que afirma, com toda a sapiência Carlos Drummond de Andrade na crônica Verbo matar. Ah!, Drummond.
Disso se depreende que matar o tempo se relaciona à prática de atividades de entretenimento, desprovidas de qualquer presunção, como ver televisão, conversar com a vizinha no elevador, fazer uma leitura descompromissada. Não é o caso, no entanto, quando se trata da leitura do novo livro do jornalista gaúcho Luís Antônio Giron. A premissa básica para se matar o tempo é que atividade em questão seja agradável, minimamente prazerosa — situação que se dá em raríssimos momentos em Até nunca mais por enquanto; existe ainda a possibilidade da diversão trash, pela qual algo muito ruim pode se tornar agradável, pelo divertimento capaz de proporcionar. Nem aí Giron acerta a mão. Não que a obra seja ruim, longe disso, nem ruim é. Se ainda fosse o pior dos piores, valeria pelo jocoso, pela piada. Mas o tédio é geral. Assistindo à cena de algum leitor, que perde seu tempo com o Até nunca mais… se espantaria o espectador pela falta de reação do leitor. Nem um esboço de sorriso, nem um susto, uma expectativa. Estaria qual Monalisa desde as primeiras linhas, até a derradeira página. Se agüentasse tanto.
O livro, composto por 20 contos, alterna momentos de vazio absoluto com repetição de fórmulas gastas. Apela para a excrescência, a deformação, o escatológico, de uma maneira tão primária que nem uma criança de 7 anos acharia graça. Quando toca então em questões sobre a sexualidade, erotizando, por exemplo, a personagem Betty Boop, cansa o leitor com a tentativa novamente frustrada de chocar. Mal sabe o autor que o choque maior sofrido pelo leitor é aquele contundente pelo silêncio, que desperta os sentidos e causa estranhamento, aquele que de alguma maneira transcende a fronteira do bom/ruim. Mas o despropósito é tamanho, que não há sequer elementos que o façam ser um livro ruim. Apenas não merecia ser um livro.
Embora os textos sejam curtos, parece mesmo é que o autor tinha em mãos um longo texto, e por estar fora de moda essa modalidade, risca algumas palavras, aleatoriamente do texto, buscando uma concisão fraudulenta. Ah! Dalton Trevisan….
O autor dedica o livro “para as leitoras mais vorazes, as gavetas”, o que parece bastante curioso, porque é justamente o lugar donde jamais deveria ter saído tal obra. Na epígrafe, cita Sausândrade, chamado pelo autor carinhosamente de Sousandra, dizendo “Deus, dá-me uma essência, muda meu ser, substitui minh’alma”. A conjugação da dedicatória com a epígrafe sugere ao leitor que o autor não parecia feliz com o resultado de seu trabalho. Em primeiro lugar porque não acredita que alguém lerá sua obra — dedica-a, então, para as gavetas, para que ao menos elas o aceitem, e não expulsem o corpo estranho de suas entranhas. Depois, pede a Deus uma essência, e, se pede uma é porque ainda não a possui — simples silogismo. Ao pedir que Deus mude seu ser, dá pista de estar descontente com o que tem; e ao clamar pela substituição de sua alma, reforça o sentido de sua decepção em ser o que é.
Num minuto de sensatez, já no primeiro conto, há uma pérola que deveria ter sido levada em conta pelo autor. A personagem afirma que a virtude vem daquilo que a gente não faz. Decorre, portanto, de uma abstinência. De fato, se houvesse por parte do autor uma omissão, a publicação de Até nunca mais…, por certo ainda seria um sujeito mais virtuoso.
Até nunca mais por enquanto (título que mais parece uma paráfrase às avessas de “que seja infinito enquanto dure”. Ah! Vinicius) vai passar, e esse é o grande consolo de quem perdeu o tempo em lê-lo. Mais feliz ficaria o leitor se pudesse matar seu tempo, voluntariamente, fazendo qualquer coisa que lhe significasse mais. Para aqueles que dispõem de tempo e uma incrível vontade de exterminá-lo, sugiro autores que são garantia de satisfação ou seu dinheiro de volta. O risco ao encarar o novo livro de Giron é a sensação quase palpável de ter perdido um tempo precioso da vida. Ah! Tempo.
Como um sopro de esperança para aqueles que chegaram até aqui: “Olho meus retratos nas paredes. O tempo rói e destrói a face das pessoas. Para gastar minha face, houve o tempo e esse homem. O tempo enrugou-me a fronte, ele escavou-me as olheiras; o tempo arrancou-me os dentes, ele entortou-me a boca; o tempo aguçou meu perfil, ele gravou-me este ar de quem recua; os dois juntos instilaram em minhas ocas profundezas a ferrugem e o bolor”, Osman Lins, no conto Noivado.