Manifesto iconoclasta

Em "Fooquedeu (um diário)", Nuno Ramos escancara as portas abertas de um inferno chamado Brasil
Ilustração: Nuno Ramos por Fabio Abreu
02/08/2022

A pedra de Drummond ocupa uma dupla função na poesia brasileira: como pedra angular e fundamental. Na obra de Nuno Ramos, o poeta mineiro é o mestre de obras, um dos empreiteiros da sua produção artística e literária — cargo que divide com Cabral e Guimarães Rosa. A sua obra visual — telas, instalações, vídeos e performances — e sua produção literária estão fortemente calcadas nesse caminho de ruptura de forma e conteúdo, de desvio da norma.

Seja na Bienal de 2010, quando criou a instalação Bandeira branca, que ocupava a entrada do Masp e causou alvoroço por ter dois urubus vivos — que, vale lembrar, eram alimentados e recebiam água — ou em 111, instalação de 1992 em homenagem às vítimas do massacre do Carandiru, ou ainda, na performance Marcha à ré, de 2020, encampada na avenida Paulista e que tocava o Hino nacional de trás para frente, como protesto contra o descaso do governo brasileiro no combate à covid-19, Nuno Ramos é um desconstrutor, alguém mais interessado em desfazer o servilismo burguês ou se afastar do confortável ambiente insípido das galerias e museus, levando o caos e a desordem.

Esse é também espírito de sua literatura. Fooquedeu (um diário), volume que reúne fragmentos de pensamentos sobre a arte, política, democracia, literatura e tantos outros assuntos, parece incrustado no caminho aberto com seu primeiro livro, Cujo (1993), porém, avança ao estabelecer como eixo condutor a aleatoriedade e a impossibilidade de o autor fechar-se em si mesmo em uma narrativa linear. Da mesma forma que Verifique se o mesmo (2019), também uma obra aberta sobre o agora a partir de inúmeras perspectivas, Fooquedeu é uma resposta ao que Hal Foster chama, em What comes after farce? (2020), de pós-vergonha. Nuno e Foster concordam em dizer que é impossível apequenar líderes políticos como Bolsonaro e Trump diante do real, justamente, porque, na era da pós-verdade, nada os embaraça. Essa linhagem, uma extrema direita superinformacional, cria o purgatório democrático, uma instituição falsa e capenga, que deixou de ser um lugar dantesco para se tornar kafkiano. Fragmentos como JN, 16.3.2016, Canalhas, PIB negativo e o apêndice O baile da ilha fiscal não escondem o mar de lama surgido desde as Jornadas de Junho, o “movimento popular” que acabou por revelar o MBL e escancarar o neofascismo, personificado pelo bolsonarismo.

Desde o título, uma brincadeira com o sotaque da artista suíço-brasileira Mira Schendel em dizer “foi o que deu”, criando um jogo de palavras entre o fuck e o fodeu, Nuno Ramos estabelece uma relação em que os limites são esgarçados. Refletindo sobre a aceleração da modernidade — em Descanse em paz, Preferiria não fazê-lo, por exemplo — e a solidão das cidades — Pasteur, Direito à preguiça e o Mais sozinho –, a obra é uma conversa machadiana, Caro leitor, cara leitora, com o leitor. No show de horrores que apresenta, tem seu ápice no mendigo eletrocutado em Belo Horizonte e na apatia de todos frente a tragédia de um “merduncho” (para resgatar João Antônio), coloca-se na tradição da sua geração, mesmo que a negue. E essa negação, explica Geoff Dyer em seu também fragmentário Working the room (2010), é o que reforça essa ideologia rebelde que imperou no Brasil nos anos 1980, o limbo entre a ditadura e a reabertura à democracia, e permitiu não só o surgimento do rock nacional — Nuno, por sinal, era da turma dos Titãs —, mas também uma arte capaz de dialogar com as novas demandas sociais. Aqui, Tunga, Leonilson, Beatriz Milhazes, Alex Vallauri e Daniel Senise fazem parte dessa mesma trupe, trupe que queria olhar adiante. Lá fora, Basquiat, Keith Haring, Jeff Koons e Damien Hirst, ainda que guardada as devidas proporções, também.

Fascismo à brasileira
Em tempos como os nossos, em que lidamos com o negacionismo generalizado em tantas esferas, é difícil enxergar a diferença entre o show dos horrores e a sociedade do espetáculo. Nesse sentido, Fooquedeu (um diário) parece um manifesto iconoclasta. Como Gordon Matta-Clark, o artista que fatiava casas e prédios, Nuno Ramos implode a memória, atingindo seu ápice, em 2012, com a instalação Ai, pareciam eternas! (3 lamas), montada em galeria mineira — e inspirada no poema Morte das casas de Ouro Preto, de Drummond — e que soterrava de lama réplicas da casa em que o artista nasceu, da casa da avó ou onde cresceram seus filhos. Em uma das proposições de Tractatus logico-philosophicus, Wittgenstein afirma que tudo o que existe no pensamento pode existir no mundo real. Poucos foram os artistas que conseguiram expressar a relação entre mente e realidade, ou seja, mente e corpo/mundo físico.

Muitos dos textos que integram o metadiário de Ramos se parecem com as casas sob o barro — representação que ganharia outros significados após os desastres de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) —: é preciso chafurdar o passado, colocá-lo em xeque, para tentar entender o presente. Em 2015, no auge do soft porn nas livrarias, publicou Sermões, uma coleção de poemas eróticos cuja tessitura dialoga com a formação do país. Os sermões, textos religiosos e alegóricos, no livro de Nuno Ramos retornam à função primeira do sexo: o encontro cego entre os corpos. Aqui, a religiosidade volta ao caráter primitivo da vida, algo que já havia se debruçado sobre em O pão do corvo (2002) e O mau vidraceiro (2010), e Ó (2009), que lhe rendeu o Prêmio Portugal Telecom. Como se vê, seus textos são pontas de iceberg: ler, superficialmente, não é suficiente. É preciso mergulhar. Essa estratégia de narrativa fica ainda mais notável em Fooquedeu (um diário). Muitas de suas anotações são lembretes das pequenas e grandes tragédias brasileiras. É uma literatura que não aceita passividade.

Quando participou do programa Roda viva, anos atrás, o artista disse que a arte era a transformação da limitação em linguagem. No texto que abre o volume, Montagem, Ramos volta a esse mesmo tema, entretanto, de maneira diferente, explorando a sua necessidade de produzir e o seu desejo de não se repetir. Não é à toa que, em geral, Nuno não remonta as suas obras e não faz coletâneas de seus textos já publicados. O que está no mundo, simplesmente, está — não há por que voltar. Nuno Ramos representa o avesso do artista em greve de fome: é alguém sempre pronto a devorar, a consumir e devolver o que mundo oferece, como se fosse sempre necessário — em uma urgência que nada tem de banal — estar na contramão, estar no sentido contrário e dançar em campo minado.

Nessa encruzilhada de narrativas e de sentidos, em que o espaço urbano é algoz e exílio, Nuno traz à tona em sua obra versos de Poema sujo, de Ferreira Gullar, e que dizem: “O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade”. Quando escreveu essas linhas, em 1976, o poeta estava contra a parede. Havia deixado o Brasil para escapar ao regime militar, escolhendo o Chile. Pouco depois de sua chegada Pinochet matou Allende e estabeleceu a ditadura na terra de Neruda — que talvez também tenha sido assassinado pelo general. Chegando na Argentina, Gullar se deparada com outro generalato e volta ao Brasil, em regresso, assim como no caso de Chico Buarque, patrocinado por Vinicius de Morais. Fooquedeu (um diário) é isso também: o retrato de uma democracia fragilizada, que encurrala e asfixia, que imobiliza e mata por inanição e inação do Estado.

A extinção é para sempre
Em Fooquedeu (um diário), Nuno Ramos cria mesmo um itinerário entre as tensões que atravessam a sua obra e o seu pensar artístico. A metáfora que melhor explica essa relação é a fita de Moebius e a ideia de infinito. De alguma maneira, há uma conexão entre os textos e que dá ao livro uma ideia de unidade. E essa unidade dá corpo à tensão. Ensaio geral (2007), a primeira reunião de escritos e ensaios do artista, já buscava essa mesma tensão, voltando-se para dentro. Esse olhar, como uma força centrífuga, é, propositalmente, um evento de ruptura — como já dito antes. De qualquer forma, há nos textos de Fooquedeu uma fotografia em altíssima exposição.

Robert Capra, que registrou o Dia D em suas lentes, dizia que o mais importante está na força da cena — naquilo que ela tem a mostrar — e não na perfeição técnica. Nuno Ramos está nessa mesma linhagem. A coloquialidade dos seus textos — o tom de conversa de bar, de uma anotação inocente — é a grande força da sua narrativa. Essa pessoalidade, em um diálogo direto com seu interlocutor, transforma os temas mais complexos, como a montagem de uma obra, em uma experiência íntima, porém, coletiva. Diferentemente do que afirma no penúltimo texto, Introdução, o livro não está desatualizado e tampouco extemporâneo.

Quem espera de Fooquedeu (um diário) a logicidade de uma linha de produção literária irá se deparar com o completo oposto e, a fórceps, se dará conta de que este não é um livro fácil: é uma obra que releva o mais bárbaro do Brasil, que mostra as portas abertas de um inferno que existe enquanto projeto de país, que sucateia as instituições públicas — que viram balcão de favores e nomeações apadrinhadas — e que leva o homem médio ao nocaute pela burocracia e imprecisão de dimensões continentais. É a materialização da frase mais célebre de O coração das trevas, de Conrad — “O horror! O horror!” — ou de uma de suas obras mais recentes, A extinção é para sempre. Ao mesmo tempo, é um antídoto contra tudo isso, uma luz no final do túnel e uma ponta de esperança de que podemos ser, enfim, um povo em bons termos com seu presente.

Fooquedeu (um diário)
Nuno Ramos
Todavia
208 págs.
Nuno Ramos
Nasceu em São Paulo (SP), em 1960. Considerado um dos mais importantes artistas plásticos brasileiros, é escritor, cineasta, cenógrafo e compositor. Começou a pintar em 1984, quando passou a fazer parte do grupo de artistas do ateliê Casa 7, recebendo vários prêmios nacionais e internacionais. Estreou na literatura com Cujo (1993). Publicou também O pão do corvo (2001), Ensaio geral (2007), Ó (2009), O mau vidraceiro (2010), Verifique se o mesmo (2019), entre outros livros.
Jonatan Silva

É jornalista e escritor, autor de O estado das coisas e Histórias mínimas.

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