A pedra de Drummond ocupa uma dupla função na poesia brasileira: como pedra angular e fundamental. Na obra de Nuno Ramos, o poeta mineiro é o mestre de obras, um dos empreiteiros da sua produção artística e literária — cargo que divide com Cabral e Guimarães Rosa. A sua obra visual — telas, instalações, vídeos e performances — e sua produção literária estão fortemente calcadas nesse caminho de ruptura de forma e conteúdo, de desvio da norma.
Seja na Bienal de 2010, quando criou a instalação Bandeira branca, que ocupava a entrada do Masp e causou alvoroço por ter dois urubus vivos — que, vale lembrar, eram alimentados e recebiam água — ou em 111, instalação de 1992 em homenagem às vítimas do massacre do Carandiru, ou ainda, na performance Marcha à ré, de 2020, encampada na avenida Paulista e que tocava o Hino nacional de trás para frente, como protesto contra o descaso do governo brasileiro no combate à covid-19, Nuno Ramos é um desconstrutor, alguém mais interessado em desfazer o servilismo burguês ou se afastar do confortável ambiente insípido das galerias e museus, levando o caos e a desordem.
Esse é também espírito de sua literatura. Fooquedeu (um diário), volume que reúne fragmentos de pensamentos sobre a arte, política, democracia, literatura e tantos outros assuntos, parece incrustado no caminho aberto com seu primeiro livro, Cujo (1993), porém, avança ao estabelecer como eixo condutor a aleatoriedade e a impossibilidade de o autor fechar-se em si mesmo em uma narrativa linear. Da mesma forma que Verifique se o mesmo (2019), também uma obra aberta sobre o agora a partir de inúmeras perspectivas, Fooquedeu é uma resposta ao que Hal Foster chama, em What comes after farce? (2020), de pós-vergonha. Nuno e Foster concordam em dizer que é impossível apequenar líderes políticos como Bolsonaro e Trump diante do real, justamente, porque, na era da pós-verdade, nada os embaraça. Essa linhagem, uma extrema direita superinformacional, cria o purgatório democrático, uma instituição falsa e capenga, que deixou de ser um lugar dantesco para se tornar kafkiano. Fragmentos como JN, 16.3.2016, Canalhas, PIB negativo e o apêndice O baile da ilha fiscal não escondem o mar de lama surgido desde as Jornadas de Junho, o “movimento popular” que acabou por revelar o MBL e escancarar o neofascismo, personificado pelo bolsonarismo.
Desde o título, uma brincadeira com o sotaque da artista suíço-brasileira Mira Schendel em dizer “foi o que deu”, criando um jogo de palavras entre o fuck e o fodeu, Nuno Ramos estabelece uma relação em que os limites são esgarçados. Refletindo sobre a aceleração da modernidade — em Descanse em paz, Preferiria não fazê-lo, por exemplo — e a solidão das cidades — Pasteur, Direito à preguiça e o Mais sozinho –, a obra é uma conversa machadiana, Caro leitor, cara leitora, com o leitor. No show de horrores que apresenta, tem seu ápice no mendigo eletrocutado em Belo Horizonte e na apatia de todos frente a tragédia de um “merduncho” (para resgatar João Antônio), coloca-se na tradição da sua geração, mesmo que a negue. E essa negação, explica Geoff Dyer em seu também fragmentário Working the room (2010), é o que reforça essa ideologia rebelde que imperou no Brasil nos anos 1980, o limbo entre a ditadura e a reabertura à democracia, e permitiu não só o surgimento do rock nacional — Nuno, por sinal, era da turma dos Titãs —, mas também uma arte capaz de dialogar com as novas demandas sociais. Aqui, Tunga, Leonilson, Beatriz Milhazes, Alex Vallauri e Daniel Senise fazem parte dessa mesma trupe, trupe que queria olhar adiante. Lá fora, Basquiat, Keith Haring, Jeff Koons e Damien Hirst, ainda que guardada as devidas proporções, também.
Fascismo à brasileira
Em tempos como os nossos, em que lidamos com o negacionismo generalizado em tantas esferas, é difícil enxergar a diferença entre o show dos horrores e a sociedade do espetáculo. Nesse sentido, Fooquedeu (um diário) parece um manifesto iconoclasta. Como Gordon Matta-Clark, o artista que fatiava casas e prédios, Nuno Ramos implode a memória, atingindo seu ápice, em 2012, com a instalação Ai, pareciam eternas! (3 lamas), montada em galeria mineira — e inspirada no poema Morte das casas de Ouro Preto, de Drummond — e que soterrava de lama réplicas da casa em que o artista nasceu, da casa da avó ou onde cresceram seus filhos. Em uma das proposições de Tractatus logico-philosophicus, Wittgenstein afirma que tudo o que existe no pensamento pode existir no mundo real. Poucos foram os artistas que conseguiram expressar a relação entre mente e realidade, ou seja, mente e corpo/mundo físico.
Muitos dos textos que integram o metadiário de Ramos se parecem com as casas sob o barro — representação que ganharia outros significados após os desastres de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) —: é preciso chafurdar o passado, colocá-lo em xeque, para tentar entender o presente. Em 2015, no auge do soft porn nas livrarias, publicou Sermões, uma coleção de poemas eróticos cuja tessitura dialoga com a formação do país. Os sermões, textos religiosos e alegóricos, no livro de Nuno Ramos retornam à função primeira do sexo: o encontro cego entre os corpos. Aqui, a religiosidade volta ao caráter primitivo da vida, algo que já havia se debruçado sobre em O pão do corvo (2002) e O mau vidraceiro (2010), e Ó (2009), que lhe rendeu o Prêmio Portugal Telecom. Como se vê, seus textos são pontas de iceberg: ler, superficialmente, não é suficiente. É preciso mergulhar. Essa estratégia de narrativa fica ainda mais notável em Fooquedeu (um diário). Muitas de suas anotações são lembretes das pequenas e grandes tragédias brasileiras. É uma literatura que não aceita passividade.
Quando participou do programa Roda viva, anos atrás, o artista disse que a arte era a transformação da limitação em linguagem. No texto que abre o volume, Montagem, Ramos volta a esse mesmo tema, entretanto, de maneira diferente, explorando a sua necessidade de produzir e o seu desejo de não se repetir. Não é à toa que, em geral, Nuno não remonta as suas obras e não faz coletâneas de seus textos já publicados. O que está no mundo, simplesmente, está — não há por que voltar. Nuno Ramos representa o avesso do artista em greve de fome: é alguém sempre pronto a devorar, a consumir e devolver o que mundo oferece, como se fosse sempre necessário — em uma urgência que nada tem de banal — estar na contramão, estar no sentido contrário e dançar em campo minado.
Nessa encruzilhada de narrativas e de sentidos, em que o espaço urbano é algoz e exílio, Nuno traz à tona em sua obra versos de Poema sujo, de Ferreira Gullar, e que dizem: “O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade”. Quando escreveu essas linhas, em 1976, o poeta estava contra a parede. Havia deixado o Brasil para escapar ao regime militar, escolhendo o Chile. Pouco depois de sua chegada Pinochet matou Allende e estabeleceu a ditadura na terra de Neruda — que talvez também tenha sido assassinado pelo general. Chegando na Argentina, Gullar se deparada com outro generalato e volta ao Brasil, em regresso, assim como no caso de Chico Buarque, patrocinado por Vinicius de Morais. Fooquedeu (um diário) é isso também: o retrato de uma democracia fragilizada, que encurrala e asfixia, que imobiliza e mata por inanição e inação do Estado.
A extinção é para sempre
Em Fooquedeu (um diário), Nuno Ramos cria mesmo um itinerário entre as tensões que atravessam a sua obra e o seu pensar artístico. A metáfora que melhor explica essa relação é a fita de Moebius e a ideia de infinito. De alguma maneira, há uma conexão entre os textos e que dá ao livro uma ideia de unidade. E essa unidade dá corpo à tensão. Ensaio geral (2007), a primeira reunião de escritos e ensaios do artista, já buscava essa mesma tensão, voltando-se para dentro. Esse olhar, como uma força centrífuga, é, propositalmente, um evento de ruptura — como já dito antes. De qualquer forma, há nos textos de Fooquedeu uma fotografia em altíssima exposição.
Robert Capra, que registrou o Dia D em suas lentes, dizia que o mais importante está na força da cena — naquilo que ela tem a mostrar — e não na perfeição técnica. Nuno Ramos está nessa mesma linhagem. A coloquialidade dos seus textos — o tom de conversa de bar, de uma anotação inocente — é a grande força da sua narrativa. Essa pessoalidade, em um diálogo direto com seu interlocutor, transforma os temas mais complexos, como a montagem de uma obra, em uma experiência íntima, porém, coletiva. Diferentemente do que afirma no penúltimo texto, Introdução, o livro não está desatualizado e tampouco extemporâneo.
Quem espera de Fooquedeu (um diário) a logicidade de uma linha de produção literária irá se deparar com o completo oposto e, a fórceps, se dará conta de que este não é um livro fácil: é uma obra que releva o mais bárbaro do Brasil, que mostra as portas abertas de um inferno que existe enquanto projeto de país, que sucateia as instituições públicas — que viram balcão de favores e nomeações apadrinhadas — e que leva o homem médio ao nocaute pela burocracia e imprecisão de dimensões continentais. É a materialização da frase mais célebre de O coração das trevas, de Conrad — “O horror! O horror!” — ou de uma de suas obras mais recentes, A extinção é para sempre. Ao mesmo tempo, é um antídoto contra tudo isso, uma luz no final do túnel e uma ponta de esperança de que podemos ser, enfim, um povo em bons termos com seu presente.