No início de Ébano sobre os canaviais há a imagem de um menino: “quis partir para o outro lado do mundo”. Trata-se de José, que foge de um Portugal dominado pela pobreza e tomado pela epidemia de cólera. O período é a segunda metade do século 19.
Quando a morte ameaça, a saída é fugir, consequência natural; às vezes, a fuga pode dar certo. José, cuja mãe é morta pela epidemia, tem quinze anos, encontra-se com o pai num cais no Porto, Portugal, escapa dele e, sem documento algum, embarca como clandestino para o Brasil. Esconde-se no porão, local úmido e tomado pelos ratos. Tem como único amigo, Antônio, outro menino, este com documentos, que viaja como emigrante. Graças ao alimento trazido por Antônio, José sobrevive e chega são e salvo a terra prometida, o Brasil.
Quando o navio atraca no porto do Recife, os meninos e rapazes desembarcam, seus documentos são vistoriados, trata-se de um tráfico legal de menores oriundos das Ilhas dos Açores, irão trabalhar nas fazendas de cana-de-açúcar, serão futuros feitores, profissão quase sem salário, terão de dar conta dos negros escravizados. José, no entanto, não faz parte do grupo, seu objetivo foi escapar de Portugal, viajar pelo mundo, fazer fortuna. Desembarca clandestino e se esconde nas sombras noturnas de um Recife que lhe é estrangeiro.
Deste ponto em diante, o personagem é ajudado pelo acaso. Pede um pedaço de pão para comer numa mercearia, dorme na rua, tosta-se debaixo de um sol abrasador, até que vai ser encontrado e encaminhado ao consulado de Portugal, onde cruza com uma alma compadecida.
O romance de Adriana Vieira Lomar aborda a trajetória não apenas de José, mas da cidade do Recife, dos engenhos de cana-de-açúcar e do Brasil do momento em que ainda faltam quase duas décadas para a abolição do negro escravizado. Além do enredo até certo ponto pleno de volteios, questões importantes são discutidas: a primeira delas é a escravidão, depois a questão dos imigrantes portugueses que chegam por aqui fugindo da fome e da pobreza, há ainda a opressão a que as mulheres são submetidas, no caso não apenas as negras, mas também e, principalmente, as brancas, porque são muitas delas que intercedem a favor de escravos e escravas. Outro ponto ainda digno de nota é a mestiçagem como saída para a crise racial brasileira, que resulta na personagem feminina chamada Ébano.
O livro possui uma estrutura sofisticada, com dois polos narrativos. Um é ambientado no Recife, onde se desenrola a vida do funcionário do consulado de Portugal chamado Henrique. O outro é fazenda aonde chegam Shakina e Chisulo, um casal de negros capturados na bacia do Congo e transportado num navio negreiro para o Brasil. Enquanto no Recife, José torna-se adulto numa cidade até certo ponto receptiva e ensolarada, a fazenda onde Shakina dará Ébano à luz vive mergulhada no obscurantismo e na violência.
Num determinado ponto, a narrativa aborda o tempo presente, através de uma descendente de José, Maria Antonieta. Ela, ao contrário do seu longínquo trisavô, não deseja o Brasil, mas a cidadania portuguesa. Malhas que o império tece.
Passado lúgubre
A autora aproveita-se do assunto premente: o lugar da voz do negro no universo brasileiro. Assim, consegue inventariar o nosso passado lúgubre e acaba por dar dignidade à luta pela emancipação do homem e da mulher negra, de modo geral.
O que se pode criticar no livro é a respeito da construção dos personagens. Nenhum deles é aprofundado plenamente, os problemas que enfrentam são tratados na maioria das vezes de modo superficial e soam um tanto caricaturais. Tais personagens representam segmentos da sociedade brasileira. Ora são bons, compadecidos, trabalhadores; ora são maus, estão para atrapalhar a vida dos outros e pensar no próprio benefício.
Ponto importante explorado pela autora com certo conhecimento é a história do Brasil e das contradições do país. Muitas vezes idealizada, a realidade brasileira é dura demais, o que acabou por gerar historiadores de tendência a utilizar eufemismos para dar um brilho à capa dos livros cujos temas abordam os assuntos que a ideologia branca gostaria de deixar no esquecimento.
No entanto, em alguns momentos, Lomar também tropeça nessa tendência freyriana de driblar pontos cruciais da nossa história com soluções advindas da pureza de sentimentos e do convívio que seria até certo ponto cordial entre brancos e negros, gerando acordos tácitos ou situações de aceitabilidade do ex-escravizado e/ou de seus descendentes, como acontece com a progressão ainda que penosa da própria Ébano.
Há uma espécie de concessão da autora a alguns afrodescendentes, o que geraria a ideia de que progrediram porque deram tudo de si. Tal progressão, na verdade, jamais seria possível a todos, ainda que seguissem o exemplo da mulher, Ébano. Há a esposa do proprietário do engenho tentando suavizar a situação, a colocar panos quentes para minorar os problemas gerados pelos conflitos raciais.
Na cidade, por incrível que pareça, temos o cônsul, Henrique, abolicionista e republicano, que pede a José nada comentar sobre o assunto, sob pena de ser retirado da sua função diplomática e chamado de volta a Portugal. Em outras palavras: através de um processo metonímico, observamos que o ex-colonizador tira o corpo fora, a lambança geral não foi de autoria dele.
José, como quase todos os portugueses imigrantes (percebe-se desde o início), não vai perecer em terra estrangeira. Aliás, de estrangeiro, o Brasil não tem nada. E Ébano, fruto da violência contra a mulher negra, progredirá como nenhuma outra mulher conseguiu.
Como menciono no início, José “quis partir para o outro lado do mundo”, fugir da doença, da pobreza, fazer fortuna e hoje… Hoje, o Brasil dos engenhos não existe mais, os tempos mudaram, não há mais a escravidão. E o que sobrou disso tudo? Talvez a memória, talvez a busca pelas origens, como faz a autora. Para outros, a solução seria fazer o caminho de volta, Portugal, terra estrangeira.
Ébano já não vive nos canaviais, mas ainda há uma árdua luta pela frente.