A velha e o velho. Sempre os mesmos. O lugar não importa. Os pensamentos, as manias, os gostos e as cores são iguais aqui ou acolá. São velhos, não têm filhos, não têm perspectivas, não têm mais amor um pelo outro. Mas convivem, como sempre, todos os dias iguais. A vida não tem muita cor. Parece ter um filtro meio amarelado sobre tudo. Assim como as memórias dos dias que não eram assim, tão iguais. O som é o dos ônibus e das crianças dos vizinhos. Ou da água que lava os dois copos, dois pratos e quatro talheres.
O velho e a velha não têm nem nome. Não precisam. Não se chamam. E ninguém os chama. São apenas o velho e a velha. Falam em monossílabos ou em palavras soltas. Não precisam que ninguém as ouça. Nem eles mesmos. Principalmente nem eles mesmos. Moram em um lugar que parece ser qualquer um. Nada de especial ou diferente. Sobrevivem aos dias, um a um, porque sim. Porque ninguém falou para que eles parassem. Respiram, apenas. Como as plantas.
Milhares de velhos e velhas vivem por aí. E — pensam —, se tudo correr bem, não deixarão rastro por esse mundão sem porteira. Apesar de ser o que acontece com a maioria deles, não foi o que sucedeu ao velho do romance Subúrbio, de Fernando Bonassi. Ele passou invisível quase até o fim da vida. Estava chegando perto de ser mais um entre milhares. Mas aí apareceu a menininha. E o mundo do velho virou de ponta-cabeça. Ele não quis ser apenas mais um entre os invisíveis. Quis experimentar a vida novamente. Quis começar de novo. Mas não podia recomeçar: já estava gasto, enrugado, cansado, marcado pela não-vida que levara até ali. Tentou tirar aquele filtro amarelado de sua história e incluir as cores vivas daquela guria linda que brincava de casinha com ele. Mesmo sabendo que juntar a secura de suas mãos calejadas de operário aposentado e sem alegria com o vestidinho colorido e esvoaçante da criança não poderia dar em coisa boa. Foi incontrolável para o velho. Ele quis que a menininha — que via nele o pai que estava sempre ausente por trabalhar como vigia noturno — fosse sua mulher. E foi aí que manchou sua passagem por essa vida.
Bonassi é dono de uma prosa muito segura. Seca e doída, muitas vezes. Mas sempre segura do que quer e do que é. Os estudiosos da literatura dizem que é representante da prosa urbana, da geração 90. Eu diria que ele é representante da literatura. Nem diria que nacional… Não concordo com o que falam por aí: que é uma prosa urbana, que mostra o lado B das grandes metrópoles. Esses velhos — e todos os personagens que passam pelo livro — poderiam ser de qualquer lugar. Poderiam morar no interior. Sem problemas. A única coisa que identifica a história com uma cidade é o fato de o velho trabalhar numa fábrica. Mas a vida dele seria monótona se morasse em qualquer outro lugar e se trabalhasse em qualquer outra coisa. O que Bonassi escreveu poderia ser brasileiro, americano, holandês, alemão, indiano. Não é à toa que nenhum personagem — com exceção de alguns apelidos aqui e ali — tem nome. É a história de vidas iguais a todas as vidas por aí. Em qualquer lugar e a qualquer tempo. A vida crua e seca daqueles que estão aqui só de passagem. Sem ambições, sem grandes expectativas. Miseráveis, cansados e indiferentes ao mundo ao redor.
Tarde. O dia deslizando. Louças. Louças quebrando. Panelas batendo ao longe. O velho na cozinha. Sentado na cozinha. A cabeça pendurada no pescoço. Os ladrilhos vermelhos. A meia. As bolinhas de cobertor da meia. O cadarço. A ponta do sapato. A poeira suspensa na ponta do sapato. Barulhos. Barulhos mais perto, chegando. Chegaram. (p. 61)
A vida monótona e indiferente desses personagens — que bem poderiam ter saído de uma notícia de jornal — é, como não poderia deixar de ser, triste e feia para boa parte do público leitor. Mas é real, sem dúvida. A vida no subúrbio não é apenas colorida como nas novelas da Globo. É também escura, fria e suja. Não chega a ser uma Cidade de Deus, como a descrita no livro de Paulo Lins — livro que veio depois do Subúrbio de Bonassi, lançado originalmente em 1994, com características semelhantes. É mais seco. Mais universal. E, por isso, mais impactante.
Experiente no trato de escritos para cinema e TV — Bonassi foi co-roteirista de filmes como Matadores, Carandiru e Cazuza, por exemplo —, o autor usa uma linguagem cheia de cortes secos, descrições precisas — e até exaustivas, a certo ponto — e diálogos poucos, mas enfáticos. É bem possível que o leitor elabore um filme bastante denso em sua cabeça no decorrer das páginas. No melhor estilo tradicional, foge da (agora lugar-comum) desconstrução dos capítulos. Subúrbio é linear. Cresce e prende a atenção de quem lê naturalmente. E o fim é o fim mesmo. Não está no começo ou no meio. Passa das descrições dos velhos, dos locais, das monotonias, até o encontro com a menina e o desfecho triste e doído. Como a vida do velho.