Um olhar sobre o drama, que parece não ter fim, da classe operária brasileira. Uma narrativa que apresenta o cotidiano desses sujeitos, ou objetos, históricos. Onze capítulos, ou onze fragmentos, reunidos, agora, num volume de 154 páginas. Linguagem viva que mistura ação, reflexão, diálogos, tipologias as mais variadas, itálico, travessão, negrito, etc. Um recorte do Brasil real traduzido em ficção. Um projeto, enfim, composto por cinco livros — com este, três já publicados. Um dilema para a crítica, para os resenhistas, para os rotuladores: o que dizer da proposta de Luiz Ruffato?
Vista parcial da noite desafia o leitor. Os personagens, pobres brasileiros, abduzidos da realidade, transformados em matéria-prima literária, sofrem o destino e quem não o sofre?. O passado, deles, está numa Europa remota e inatingível. O presente é em preto-e-branco ou então sem cores ou mesmo cinzento. E o porvir — ah, o porvir — se anuncia em ruínas. Trabalham para ir levando isto quando há o que fazer. O lar, casas mal ajambradas, é o território dos conflitos. Dos embates. Das discussões. De morte. Quase nunca do amor. O cenário se dá a partir de uma referência geográfica: a real Cataguases mineira. No mais, pai briga com filho que se desentende com o vizinho e sobra reclamação pra mãe às vezes as autoridades interferem alguém até some e tudo fica por isso mesmo, não é mesmo?
Zé Bundinha vestiu a calça e a camisa, botou os sapatos, enfiou a carteira no bolso, acendeu um Continental, e saiu batendo a porta da sala com estrondo.
Por dois dias sumido, Fátima em desespero. Acharam-no na Casa Branca, refém do pejo, até a bicicleta empenhara para beber, “Desde ontem lá, homiziado…”, o doutor Romulado Nascente relatava, franqueando-lhe a porta do Aerowillys. “Toma juízo, rapaz!”, aconselhou, afagando-lhe as costas, grave, mas porém compreensivo, a turba semicírcula curiosa, meninos acarinhando a lataria do carro. Lenço amanhando os cabelos crespos, olheiras, Fátima balançava a cabeça, desconsolada, à mão direita Isidoro cheirava uma fralda, “de estima”, Teresinha, apenas de calcinhas, agarrava-se à barra do vestido estampado. “Vambora, Zé!”, e galgaram os degraus, escadaria abaixo.
Noturnos dramas
Luiz Ruffato explicou o seu projeto a este resenhista em entrevista publicada na edição 62 do Rascunho, em junho de 2005: “Inferno provisório é a história dos últimos 50 anos do Brasil. Começa com Mamma, son tanto felice, que flagra uma pequena comunidade de italianos no interior de Minas Gerais, decadente e iniciando o êxodo rural. No segundo volume, O mundo inimigo, os descendentes dessa comunidade, já totalmente brasileira e abrasileirada, estão numa pequena cidade industrial, Cataguases, tentando sobreviver como mão-de-obra desqualificada em um meio que lhes é extremamente indócil. Essa mesma estrutura temática aparece no terceiro volume, Vista parcial da noite, que poderíamos, grosso modo, identificar como sendo as décadas de 60, 70 e 80”.
E, realmente, Vista parcial da noite problematiza por meio da literatura os impasses de uma comunidade pobre no interior do Brasil no século 20. Os sujeitos, apresentados por apelidos como Zito Pereira, Zé Pinto, Zé Bundinha, Zé Preguiça, Seu Lino, Vicente Cambota, Bibica, e outros, apenas subvivem. Suas existências cotidianas, além das oito horas obrigatórias na Manufatora, reservam doses mínimas de prazer entre tragadas de Mistura Fina ou Continental, goles de quissuco, balas-de-coco, saco-de-pipoca, picolé e pouco mais. Ah, como foi dito no segundo parágrafo desta resenha, não há nenhuma perspectiva. Há sim um certo desespero. E algum desânimo. O Brasil do futuro se desmancha no próximo passo desses personagens. Dias melhores não passam de miragem. Ou se delineiam, apenas, durante um porre.
O inferno desses personagens — que é mesmo provisório, e nunca cessa — foi recriado literariamente de duas maneiras. Em alguns momentos, a narrativa acontece em primeira pessoa — o que aproxima o personagem do embate com a situação, a exemplo do que a página 57 oferece:
Eu tinha onze anos incompletos e estudava no Colégio Cataguases, de manhã. À tarde, me enturmando, jogava pelada no campinho do Paraíso de depois-do-almoço até a hora-do-ângelus. À noite, descia para o Beira Rio, peixe-fora-dágua, perambulava, desconfiado, fazendo nada, observando os bandos que sanfonavam para cima e para baixo, despropositadamente, uma partida de jogo-de-botão, uma briga de catadores de marra, o carro novo da rua, um programa engraçado na televisão, um bêbado recalcitrante, uma revista-de-mulher-pelada, uma luta arranjada, um pique-salva, um desarranjo intestinal, uma pedrada numa vidraça, uma bola-de-meia, um caco de vidro no pé, uma bicicleta enfeitada…
A narrativa também se faz em terceira pessoa, o que proporciona certo distanciamento entre a voz que narra e o personagem — e, ao invés de sugestão de depoimento, surgem quadros, descrições, painéis de possíveis cenários, como na página 120:
Embora desgostasse desgrudar da mãe, a Vicente enojava a convivência com os ratos e baratas que vagavam hipócritas pelo cômodo estreito — até uma lacraia encontrara! —, sufocava-o a mescla de urina mofo podridão que de tudo emanava, assustava-o o incessante ruído da bomba-dágua, adoceia-o o abraço molhado da friagem. Então, nos raros períodos em que ela aparentava-se tranqüila, Vicente engolia a luz das manhãs e tardes azuis, possuído de uma muda alegria que solidária abarcava as estridentes maritacas que em bando cruzam o céu, os silenciosos pardais que ciscam junto ao meio-fio, o obediente cavalo que arrasta a charrete de entrega de leite, o indiferente gato de pêlos eriçados que desfila no muro, o acovardado viralata que coça a orelha carcinômica […]
O “x” do problema
Há muitas vozes neste projeto literário de Luiz Ruffato não sei, mas parece que é sempre a mesma voz, a do mesmo narrador mas que dá uma impressão de polifonia, isso dá. O uso de recursos visuais proporciona quase que um efeito gráfico isso sim, cada página parece, além de uma página de livro, um quadro a tipologia “normal”, e as suas variações, os itálicos e os negritos às vezes confundem. Mas o leitor, neste presente século 21, não precisa mais de certezas, linearidades a literatura de Ruffato dialoga com o cinema, com a televisão, com o rádio, com as artes plásticas, com a vida e com a própria literatura e pensar que tem escritor que ainda pensa que vive no século 19. Vista parcial da noite, e os outros livros da série Inferno provisório, se traduzem em ousadia, em um marco enquanto muitos outros livros não passam de epígonos com pelo menos dois séculos de atraso talvez poucos tenham entendido o projeto de Ruffato.
Cadê a Teresinha, meu deus? Com o patrocínio do Armazém do Lino, a Rádio Cataguases faz agora uma singela homenagem àquelas que emprestaram sua beleza e simpatia aos carnavais de antigamente. Aqui, as rainhas do carnaval! Palmas para elas! (Aplausos. Apupos.) Antes de apresentá-las, gostaríamos de agradecer ao digníssimo presidente do Clube do Remo, doutor Pelágio dos Reis Antunes, e sua digníssima esposa, dona Flora, pelo incansável apoio. Sem eles, nada disso seria possível. Agradecemos ainda ao excelentíssimo senhor prefeito municipal, doutor Armando Prata, aqui representado pelo Cadê a Teresinha, meu deus?
…de 1955!
— Maria de Fátima Ribeiro Martins! Rainha do Carnaval de 1956!
E ofertou o estojo de veludo azul que ainda aninhava uma placa de prata, a margem superior direita retorcida:
Maria de Fátima Martins Pág. 39
A série de cinco livros, Inferno provisório, incluindo este Vista parcial da noite, é uma das mais arrojadas propostas da literatura contemporânea que é isso, o Lobo Antunes, e aquele outro escritor, qual mesmo?, é tão ou mais ousado mas ninguém enfrentou um tema como o Ruffato está a fazer. A idéia do Ruffato conversa com os anos 30 do século 20, quando os escritores brasileiros estavam a retratar o país mas tem gente que fica dizendo que esse negócio de realismo já era pra que discutir com madame? Ruffato está com o foco direcionado para aquilo que muitos preferem esquecer e a maneira como ele escreve transcende o que alguns chamam de realismo o projeto de Ruffato divide um tempo e todo um jeito de fazer literatura.