Mais que juvenil

Sergio Napp discute o poder de transformação da leitura em "A gangue dos livros"
Sergio Napp, autor de “A gangue dos livros”
01/07/2005

A gangue dos livros, de Sergio Napp, a exemplo do que o título sugere, é uma obra que trata de livros. O título também traz o substantivo gangue — e a leitura confirmará que a obra ainda discute questões sociais (isso não quer dizer que livros não sejam um assunto social, pelo contrário).

O enredo tem como personagem central Fernando. Ele fica órfão muito cedo. Estuda e trabalha. E entre a escola e o emprego convive com outros personagens. Seu Vander, o proprietário do minimercado, é o patrão, e amigo, e com ele Fernando dialoga a respeito de questões cotidianas. Margarida é a professora de português e a interlocutora de Fernando para assuntos ligados ao mundo das idéias — e isso é algo que fascina o protagonista de A gangue dos livros.

A relação de Fernando com os livros amarra a trama. No início, ele se depara com Dom Casmurro, de Machado de Assis. A obra se revela indecifrável. O personagem, biblicamente, entende que há tempo para tudo. Ele vai retomar o clássico machadiano apenas no desfecho de A gangue dos livros. Antes disso, muito se passa. Surgem outros livros. E outros personagens.

Fernando, uma vez órfão, continua a residir, mas sozinho, na mesma casa em que vivia com os pais — em uma vila distante do centro da cidade. Ele observa, reflete e não se conforma com o que está ao seu redor. O personagem age com a finalidade de transformar as coisas. Um dia, entra em uma favela e constata que a existência dos moradores daquela região era ainda mais severina que a sua. Livros o aproximarão de guris e gurias: Emersão, Zecatraz, Náutila, Mariaboa, Birolho, Silene, Sonolento, Fofo e um personagem sem nome, o Líder. Fernando freqüenta a comunidade aos sábados. Passa a ser identificado como professor. E ao lado desses personagens — assim como ele, sem sobrenome — vai promover uma pequena, mas irreversível, revolução.

O personagem central, à medida que se move, percebe que a máquina do mundo tem lá suas pedras espalhadas em meio ao caminho. Mas ele faz opções e paga o preço de cada escolha. Fernando e os amigos da favela formam uma gangue: em vez de delitos, leitura e discussão. O protagonista abre em sua casa espaço para um clube de leitores: é ali o território da gangue dos livros.

O tempo passa e é a curiosidade que leva Fernando em frente — e que faz com que ele avance, tanto pela vida, como pelas páginas da literatura. A gangue dos livros apresenta trechos de obras que o personagem lê (ou sugestões da professora), desde clássicos como Alguma poesia (de Carlos Drummond de Andrade), O menino maluquinho (de Ziraldo), A rua dos cataventos (de Mario Quintana), até livros com ressonância mais intensificada na cultura gaúcha, entre os quais Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez (de Tabajara Ruas), Os meninos da Rua da Praia (de Sergio Caparelli), Enquanto a noite não chega (de Josué Guimarães), além de citações de entrevistas — como a que Décio Pignatari concedeu ao Zero Hora no dia 14 de junho de 2003. Os fragmentos das obras e os trechos das entrevistas são apresentados em itálico, com crédito aos autores, e servem como ponto de partida para reflexões a respeito de linguagem, visão de mundo ou algum aspecto da leitura.

Fernando, em determinando momento, pergunta à professora qual o sentido de gostar tanto do ato de ler. Eis a resposta:

É o prazer que nos move, Fernando. Que nos impulsiona. Que abre nossos sentidos para o mundo. E esse prazer não tem preço. Claro, um bom vinho, uma boa conversa com amigos, um encontro amoroso, e ela ensaia um sorriso, têm lá o seu valor, e eu não vou negar que me agradam, e muito. Mas nada melhor do que ler, Fernando. Nada é mais revigorante. Nada me proporciona maior prazer do que um encontro, a sós, com os meus livros. Eu viajo quando leio. Eu descubro outros mundos, outros costumes. Eu aprendo novas palavras. É o que me faz sentir viva. (págs. 38 e 39)

Fernando, a exemplo da professora, também encontra na leitura um dos momentos mais agradáveis da existência, e sofre quando o dia-a-dia não deixa tempo para isso. O personagem gasta o pouco que sobra do salário com livros. Um dia, constata que seu pai, pobre e sem tempo para o lazer, havia deixado uma estante repleta de obras: a herança era pequena, mas literária. Ele chega a dormir e a sonhar com livros. E, quando surge a oportunidade, abandona o emprego no mercado para trabalhar, justamente, em uma livraria.

Sergio Napp construiu um enredo ambientado em Porto Alegre sem se valer de nenhum referencial geográfico (a narrativa não menciona, por exemplo, nem o Rio Guaíba, nem o Parque da Redenção, nem a Usina do Gasômetro, nem a Rua da Praia ou a Praça da Alfândega). Mas a oralidade das ruas da capital gaúcha está recriada em cada uma das linhas de A gangue dos livros, seja pelo uso do “tu”, do “capaz”, da “sinaleira”, entre outras palavras e expressões porto-alegrenses. A cidade (re)inventada é o cenário onde anônimos se envolvem em desventuras e aventuras, e o personagem central, Fernando, problematiza questões em que livro, leitura, existência e reflexão permeiam tudo.

(A gangue dos livros é identificado, e catalogado, como juvenil: mas transcende, e muito, esse “limite”).

LEIA ENTREVISTA COM SERGIO NAPP

A gangue dos livros
Sergio Napp
W/S Editor
112 págs.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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