A premissa básica de que o escritor é um ser iluminado certamente não é nova ou original. Grosso modo, para certa audiência, é assim mesmo, ou seja, o escritor é parte de uma entidade que existe a despeito dos enfrentamentos com o cotidiano. Assim, em vez de lidar com o mundo que o cerca, este sujeito, porque iluminado, encarna a vida tal como um monge lida com o universo mundano. Distante ou mesmo alheio aos aspectos do mundo sensível, este escritor ora rejeita a banalidade do mal, ora absorve as partículas mais elementares que o compõem, transformando tudo isso em “arte”. Nesse sentido, o ideal artístico se fundamenta não somente pelo domínio da técnica, mas, também, por certa inspiração e capacidade de interpretar o mundo para além do óbvio, embora o material oriundo dessa produção artística, uma vez pronto, seja tão fundamental a ponto de alguém sempre arriscar: “Como é que ninguém havia pensado nisso antes?”. Desses artistas, os iluminados, o público espera mais do que entretenimento ou diversão. Espera, isto sim, uma verdade em que acreditar, para fazer valer sua existência, para poder, enfim, resgatar sua narrativa pessoal.
Em certa medida, J. D. Salinger, o escritor norte-americano morto em janeiro de 2010 aos 91 anos, representa em muito esse ideal estético ora em questionamento pela crise das narrativas. Como poucos, Salinger soube manter em torno de si essa aura artística que envolve os grandes nomes da cultura. Em um mundo que opera tomando como base os códigos do marketing e da indústria cultural, talvez seja pouco consistente falar nesses termos (arte, estética e cultura estão esgarçados pela apropriação das multidões e dos meios de comunicação). Todavia, Salinger representou esse ideal de forma bastante genuína. Com isso, não se submetia aos postulados contemporâneos da sociedade do espetáculo (ainda que não estivesse totalmente livre disso, como se verá), do mesmo modo que estabelecia para sua literatura, para sua verdadeira obra de arte, um projeto bem acabado e definido, que, por sua vez, não macaqueava estilos ou tentava emular um conceito artificialmente original. Em Salinger, a ficção naturalmente se confundia com a realidade porque seus textos, efetivamente, inventavam o real, por mais absurda que essa concepção possa parecer.
Fenômeno literário
Nascido em Nova York no ano de 1919, a trajetória de Jerome David Salinger, de algum modo, simboliza a história do século 20, em especial no tocante à influência norte-americana na cultura mundial. Isso porque, no âmbito tanto das idéias como da política, os anos 1900 comportaram a ascensão dos Estados Unidos ao posto de principal potência internacional. No tocante ao universo da literatura, a importância de Salinger também reflete essa presença da influência cultural, ainda que ele não tenha sido laureado com qualquer comenda ou prêmio Nobel. Sobre o autor, essa adesão se comprova pelo fato de o principal livro de J. D. Salinger, O apanhador no campo de centeio, ter sido abraçado por leitores de diferentes partes do globo e por um longo espaço de tempo. É certo que hoje, os chamados mega-sellers e mesmo os hits, como a série Crepúsculo ou a franquia de Harry Potter, sejam também importantes na esfera do comércio internacional. Ainda assim, é preciso entender a obra de Salinger diante da lógica de um mundo ainda não conectado pelas novas tecnologias e, mais do que isso, cuja obra jamais foi adaptada para o cinema ou para a televisão, conforme nos exemplos citados. Sim, nesse quesito, é correto afirmar que Salinger é um fenômeno essencialmente literário.
Ainda no tocante a trajetória, Salinger é um autor que se confunde com o século 20 precisamente porque sua literatura consegue captar o mal-estar de uma geração. Explica-se. No contexto do pós-guerra, havia a sensação latente a respeito de que, apesar do cessar-fogo, as coisas não estavam necessariamente bem. E, pior ainda, existia a impressão, entre aqueles que voltaram da Segunda Guerra Mundial, de que o mundo ao seu redor não era mais o mesmo, embora estivessem novamente em casa. Todos esses sentimentos, ora imperfeitos, ora inauditos, ficaram por muito tempo à espera de um criador que lhes desse forma. À sua maneira, Salinger assim o fez, e em sua obra o leitor tem a chance de descobrir um pouco sobre esse sentimento de angústia e de deslocamento contínuo entre o ser e o ter. Essa dicotomia existencial, que mais tarde seria tratada à base de remédios e antidepressivos (haja vista os exuberantes anos 1990), na década de 1950 era mais comum que se imaginava. E, de alguma forma, essa condição não atacava apenas os adultos, mas, sobretudo, aqueles mais jovens. Nesse ponto, vale a pena ressaltar o fato de que, embora Salinger não tenha inventado do ponto de vista clínico o termo adolescência, foi ele o autor que soube diagnosticar de maneira mais analítica, ainda que do ponto de vista literário, o verdadeiro alcance dessas sensações. E é nesse quesito que O apanhador no campo de centeio ganha seu status de obra magna de uma geração.
Assim, Holden Caufield, protagonista desse romance, representa o adolescente típico em crise existencial. Esqueçam os manuais de auto-ajuda, os remédios para a hiperatividade ou mesmo as dicas dos médicos de televisão. Nem mesmo a MTV conseguiria traduzir, ou mesmo sugerir, a tempestade de sensações e incômodos que assola o personagem, não como Salinger. No livro, o jovem Holden, após ser expulso do colégio, resolve passar um tempo consigo mesmo ao vagar, meio que sem rumo, em busca de respostas às suas indagações mais profundas, mas que apenas ele parece compreender. Em que pese a leitura intelectualizada desse texto, é fundamental a lembrança de que não se trata de um livro direcionado apenas a leitores iniciados; aliás, essa é uma das virtudes da obra: consegue criar uma interação, e mesmo alcançar ressonância, não apenas junto aos leitores daquele período, mas também junto àqueles que efetivamente se sentiam citados e que não estavam vivos em meados do século 20. Eis a chave para o seu sucesso: uma obra plena de verdade, sem efeitos de realismo, sem estilo decorado, sem falsear um discurso antropológico. Apenas o fingimento verdadeiro do autor, parafraseando Fernando Pessoa.
Sem qualidades
Antes de ser um fingidor, Holden Caufield, assim como seu criador, J. D. Salinger, se aproxima muito mais de um homem sem qualidades. Atualmente, seu protagonista seria criticado não só como politicamente incorreto, mas, essencialmente, por sua falta de “pró-atividade” e dos bons sentimentos que tanto povoam os corações e as mentes dos jovens bem-nascidos e/ou bem-pensantes. Ao nadar contra essa corrente, Caufield se mostra à beira de um ataque de nervos, uma vez que não atinge o objetivo de fazer com que as pessoas que o cercam o compreendam. É quase um consenso, hoje, aceitar com naturalidade essa espécie de rebeldia sem causa dos adolescentes. A sociedade de consumo, inclusive, fatura bastante com isso, criando gadgets e demais produtos que povoam as vitrines e os sites na internet. Todavia, numa época em que essa entressafra da vida infantil e da adulta ainda não era compreendida, os pensamentos imperfeitos de Holden Caufield pareciam tão somente o resultado da má educação de um menino excessivamente mimado. A permanência do livro, no entanto, mostrou que não se trata disso apenas. Afinal, são jovens e adultos que, tão logo travam contato com a obra, também encontram ali semelhanças no descontentamento, na dúvida acerca de qual caminho seguir, sem mencionar certa afetação tipicamente juvenil.
De tão verossímeis, tais características, por se confundirem com o seu estilo de vida, acabam por esconder a força do estilo de Salinger como escritor. Mais que isso: é bem verdade que sua obra é marcada por livros que não somente encontram ressonância junto à crítica especializada (não houve revista literária séria que não lhe prestasse homenagem quando de sua morte, no final de janeiro deste ano), mas que também são aceitos pelo público. No entanto, o aspecto que parece mais chamar a atenção de boa parte dos leitores é, ao menos recentemente, o fato de seus personagens remeterem à perspectiva de um criador casmurro, distante da vida real, e que não lidava bem com as pessoas, apenas com o universo da literatura. Nesse sentido, pode-se dizer que a abordagem que atenta para a vida privada do autor, em certo momento, passou a ser mais relevante do que a obra de Salinger por si mesma. Entre os poucos fatos e as muitas versões, certo leitorado aceitou a tese, não menos estapafúrdia, de que J. D. Salinger se tornara um autor recluso desde meados do século passado porque, como tantos outros, ansiava pelos louros do marketing enquanto atravessava um longo inverno de crise criativa.
As partes e o todo
Salinger, de fato, deixou a vida pública, se é que é possível escrever nesses termos, em meados do século passado, mais precisamente no ano de 1953. Desde então, viveu numa casa em New Hampshire, mais afeita aos hábitos espartanos de um servo da literatura como ele. De qualquer modo, se sua intenção era se afastar desse universo do espetáculo, em que a forma, muitas vezes, chama mais a atenção que o conteúdo, o tiro saiu pela culatra. De repente, foi como se leitores e não-leitores de Salinger tivessem várias certezas acerca do escritor, como a de que ele não escrevia nada desde a década de 1960; ou como a de que sua personalidade não admitia o convívio com pessoas, apenas com livros. Boa parte desses “causos”, com efeito, ajudou a criar uma espécie de mística em torno de Salinger, mas, ao contrário do que muitos crêem, pouco ou nada acrescentou para se compreender sua verve literária, ou, ainda, para tentar resgatar um pouco das origens de seu trabalho. Apenas certa abordagem parajornalística da cultura foi privilegiada com isso.
Também a ficção tentou pegar carona na trajetória de J. D. Salinger. Em 2000, o cineasta Gus Van Sant levou às telas a película Encontrando Forrester. A trama traz a relação entre Jamal Wallace, um aspirante a escritor vivido pelo ator Robert Brown, e um autor recluso, vivido por Sean Connery. No filme, existem diversas menções, como que cifradas, à imagem de Salinger. O estilo, a dedicação à literatura, a tentativa de mostrar ao jovem escritor como encontrar sua própria voz. São temas recorrentes para a atividade de escritor e que, mais recentemente, tornaram-se comuns nos cursos de criação literária que existem hoje no Brasil. Como peça ficcional, a obra de Gus Van Sant não invade questões sensíveis e presta uma bela homenagem a Salinger, ainda que, para tanto, tenha de recorrer a inúmeros lugares-comuns. O que é curioso observar é o fato de Salinger, ele mesmo inspirador do personagem e alvo dos clichês do filme, ter mais ou menos estabelecido os parâmetros acerca desse modo de se comportar diante do público e diante do mundo. Na era da informação, o autor inventou uma máscara que serviria para enquadrar escritores como ele, mas que não servia para emoldurar sua própria personalidade. Desse modo, talvez a única forma de tentar interpretar esse gênio recluso seja olhar com mais carinho para sua obra, para além de O apanhador no campo de centeio.
As partes que compõem esse todo estão mais próximas do que qualquer especulação esotérica acerca da vida privada do autor. Uma rápida pesquisa em livrarias, sebos e até mesmo em sites especializados na internet indica alguns livros que ajudam a compor a galeria de obras que tornam Salinger um autor tão singular. É o caso de Nove estórias, publicado pela primeira vez em 1953. Os contos reunidos nesse livro, a princípio apareceram em publicações tradicionais da imprensa cultural norte-americana, como a Harper’s Magazine e a The New Yorker. No tocante aos textos, é possível compreender que Salinger era um amante das narrativas breves. Afinal, O apanhador foi seu único romance. Em certo sentido, o autor faz jus à idéia de que, para escrever um bom conto, é fundamental o domínio da técnica literária, posto que os elementos que constituem esse tipo de texto precisam ser articulados em um espaço bastante exíguo se comparado ao do romance.
Dessa coletânea, um dos textos mais significativos é A perfect day for bananafish. Aqui, temos um dia na vida de Seymour Glass. Não um dia qualquer, mas o dia em que ele se encontra com o anticlímax de sua existência. Assim, ao mesmo tempo em que passa o feriado com sua esposa, acaba por se envolver com Sybil, uma garota ingênua que, talvez por isso, se apaixona por ele. O conto apresenta certo tom de isolamento e de resignação, ainda que essas impressões não sejam definitivas no que se refere à sua interpretação. Ocorre que, em Salinger, os personagens remetem a outras obras. A família Glass, nesse ponto, pertence a esse projeto literário que tinha como objetivo investigar o vazio existencial da sociedade norte-americana. Tal painel, ainda que abrangente, não necessariamente se pautava pelas bordas, como querem hoje os romancistas pós-modernos, e muito menos se fundamentava numa linhagem mais acadêmica, adotando a cartilha do estruturalismo. Em vez disso, pautou-se por revelar os segredos dos afetos que permeavam a família Glass.
Nesse sentido, em outro texto sobre os Glass, Seymour: an introduction, o que se lê é uma narrativa convulsiva, num fluxo de consciência que até hoje confunde os leitores mais críticos de Salinger, pois nem mesmo eles são capazes de identificar a qual esteio literário a narrativa pertence. Em verdade, o texto articula várias histórias ao mesmo tempo. Seymour Glass é, de fato, apresentado como personalidade distinta das demais porque é um ser separado dos outros, mesmo vivendo em um centro urbano. Em um exercício de interpretação, alguns tentam enxergar algumas semelhanças, ou mesmo alusões à vida íntima de Salinger. E é evidente que as pegadas que levam até o autor estão ali. Ademais, o fato de o texto não conter um estilo mais tradicional de ficção apenas faz crescer a suspeita de que a história ali existente é a do autor. Em se tratando do escritor norte-americano, não seria a primeira nem a última vez que isso aconteceria.
Seymour: an introduction está contido no livro Raise high the roof beam, carpenters (que, no Brasil, recebeu o título de Pra cima com a viga, moçada). Este livro, ainda que no formato de história breve, traz duas novelas. Além de Seymour, os leitores contam com a chance de conhecer os detalhes da visita de Buddy Glass a seu irmão, Seymour, no dia do casamento desse último. O não comparecimento do noivo à cerimônia, porém, é o que dá início à novela. Aqui, o que merece ser destacado é a possibilidade de desfrutar a agilidade dos diálogos, bem como a fluidez quase natural das narrativas. Eis o aspecto do fingidor: é como se, em algumas passagens, os leitores se esquecessem que de fato estão imiscuídos em uma aventura literária, tamanha é naturalidade com que o autor maneja os elementos constitutivos do texto. É uma virtude que poucos escritores dominam com precisão. E esse é o caso de Salinger.
Em busca da felicidade
De início, Franny and Zooey foi lido pelos críticos como peça literária que assumia certa arrogância em relação ao seu argumento: o fato de uma das personagens, Franny, dar às costas às vaidades cotidianas e procurar o caminho da felicidade. Todavia, essa felicidade não se vincula aos prazeres oferecidos pelo consumo. Antes, se aproxima da busca pelo “primeiro amor”, nada associado ao mundo material ou do consumo. Críticos como John Updike, por exemplo, demonstraram reservas quanto ao livro por essa inclinação, leitura que não foi compartilhada pelo grande público, de um modo geral. Em verdade, pode-se afirmar que Franny and Zooey consagrou Salinger como um dos principais prosadores de sua geração.
O que certa crítica não observou a respeito do livro foi o domínio da técnica narrativa do autor. Em outras palavras, Salinger constrói o texto em cima de dois personagens, articulando suas histórias de maneira a torná-las distintas, porém não dissociadas uma da outra. Com isso, em Zooey, o leitor tem a história a partir do momento em que Franny acabou, numa estratégia narrativa que demonstra a unicidade do projeto literário de Salinger em consolidar sua literatura para além dos maneirismos ou das experimentações inócuas ou de falsas novidades. Existe, portanto, um sentido para a literatura do escritor norte-americano a despeito do que a crítica observa sobre o autor.
Dentre os muitos artigos e obituários publicados a respeito da morte de Salinger, cumpre destacar o relato de Lillian Ross, jornalista da The New Yorker, sobre sua longa amizade com o autor de O apanhador no campo de centeio. Ross não entrega detalhes de sua vida íntima, embora dê indícios, aqui e ali, sobre sua personalidade (era um apreciador de cinema, daqueles que se prendem aos detalhes de clássicos do diretor Alfred Hitchcock, e não gostava de Audrey Hepburn). Todavia, de todas essas curiosidades, deduz-se das palavras da jornalista que qualquer leitor pode efetivamente descobrir quem era J. D. Salinger. Para ela, a peculiaridade do autor estava sublinhada em seus livros, pois, assim como sua personalidade, o estilo de Salinger era único. Mais distinta do que a realidade.