Mágico mundano

"O escândalo do século", coletânea de textos jornalísticos, apresenta ao leitor a matéria-prima da obra ficcional de Gabriel García Márquez
Gabriel García Márquez, autor de “Diatribe de amor contra um homem sentado”
04/11/2020

Gabriel García Márquez não precisa de apresentação. Sua obra é conhecida desde que se tenha um contato mínimo com a literatura. Tampouco é necessário enfatizar seu amor pelo jornalismo. Estudiosos, críticos e resenhistas já deixaram isso claro. Logo, não haveria muito o que falar sobre O escândalo do século. Contudo, não é bem assim.

Cristóbal Pera, editor de García Márquez, já havia compilado inúmeros de seus textos produzidos para os jornais. No Brasil, a publicação foi organizada pela editora Record há alguns anos. O escândalo do século reúne 50 desses trabalhos, contribuindo para desnudar a gigantesca versatilidade do autor de Cem anos de solidão (1967) na manipulação de fatos reais e sua produção jornalística.

Através de crônicas, colunas, reportagens, entre muitas outras modalidades de escrita, nos deparamos com uma versão de Gabo, como era carinhosamente chamado, que diz muito de sua obra como um todo. Destaco, entre diversos aspectos, sua preocupação e compromisso com a realidade, seja para a produção da ficção, seja para a jornalística. Aqui, os dois pontos se tocam.

O realismo mágico
Gabo se tornou um ícone da literatura ao levar às últimas consequências a noção de realismo mágico. O complexo movimento literário adquiriu corpo ao longo do século 20, na América Latina, abrindo espaço para uma nova forma de se perceber o continente em sua cultura como um todo. Na literatura, a ideia se concentrava na apresentação de uma visão privilegiada da realidade que não se concentrasse apenas nos aspectos exclusivamente problemáticos da cultura em questão. É como se se limpassem as lentes da perspectiva ocidental, conferindo uma atenção especial à América Latina vista por si mesma. Assim sendo, a interpretação da realidade adquire particularidades a remontarem ao imaginário local, compreendidos exclusivamente pela cultura e artes locais.

Trata-se, em grande medida, de superar a aparência em seu âmbito poético, histórico e cultural. No realismo mágico, o romance resolve questões presentes na vida, observadas pelos autores, que já não eram passíveis de resolução pelas vias clássicas. É como uma ampliação da realidade que, neste caso, pode resultar na mobilização, tendo em vista o seu potencial de tocar o autor e o leitor a ponto de motivá-los a superar o real tal como apresentado aos próprios olhos. Definitivamente, é uma visão diferenciada, porém mais cuidadosa, sobre essa realidade.

Como consequência, observa-se uma desestabilização do leitor, visível quando se defronta com o que podemos chamar de duplicação da realidade. O resultado desse artifício é a criação de um mundo alternativo, de maneira a corrigir o “oficial”. Põe-se diante do inesperado. Pensando na América Latina da segunda metade do século passado, nada é mais cabível, se considerarmos as agruras políticas e sociais decorrentes, entre outros fatores, dos movimentos ditatoriais patrocinados pelos EUA. Essa recomposição do real certamente sinaliza para um posicionamento ideológico dos autores e leitores — agora, suspensos diante do que veem — ressaltando um compromisso com a sua história e cultura.

Sabemos que esse aspecto do realismo mágico é assaz presente na obra ficcional de García Márquez. Macondo, uma espécie de microcosmos da América Latina de então, reflete isso muito bem. Porém, o tema aqui é a obra jornalística de Gabo. Como podemos traçar um paralelo? Ora, fácil, levando em conta o compromisso do autor com o real, constantemente enfatizado em O escândalo do século.

Pessoalmente, acredito que o escritor, como tal, não tem outra obrigação revolucionária senão a de escrever bem. Seu inconformismo, sob qualquer regime, é uma condição essencial que não tem remédio, porque um escritor acomodado provavelmente é um bandido, e com certeza é um mau escritor.

A partir da citação acima, observamos o compromisso de Gabo com os fatos, com a realidade. Ele sabe que não é um mau escritor não por deter um Nobel, ou mesmo por ter revolucionado a literatura, ou por ter uma vastidão de leitores.

Depois dessa triste constatação, parece elementar perguntar por que nós escritores escrevemos. A resposta inevitavelmente é tanto melodramática quanto mais sincera. Alguém é escritor simplesmente como se é judeu ou negro. O sucesso é animador, o apoio dos leitores é estimulante, mas esses são ganhos secundários, porque um bom escritor continuará escrevendo de qualquer maneira ainda que com as solas dos sapatos furadas, e ainda que seus livros não sejam vendidos.

No decorrer do livro, em praticamente todos os textos, ele demonstra consciência que, embora esteja, naquele momento, fazendo jornalismo, sendo jornalista, é escritor. E, portanto, inevitavelmente falará sobre isso. Gabo sobe no púlpito. Em seu discurso, chama constantemente a atenção para a realidade. Pois, como ele mesmo diz, a “realidade escreve melhor”.

Bem mais que o real
Ainda que sejam fascinantes as histórias de Fermina e Florentino, dos Buendía, de Cândida Erêndira, entre muitos outros de seus célebres personagens, não são pura criação imaginária. Os limites entre o real e a ficção são bem mais tênues. O bom escritor, em seu entendimento, tem obrigação de saber disso. Nesse caso, O escândalo do século não é somente um testemunho de seu primeiro amor, o jornalismo, conforme dito por Cristóbal Pera na apresentação da obra, mas, fundamentalmente, uma forma de exercitar a sua capacidade de captar a realidade.

Estamos diante de um grande passo para entender não somente a obra de García Márquez, mas, igualmente, o lugar ocupado pelo jornalismo na produção literária. Parece paradoxal, mas a ficção não tem limites, pelo menos não enquanto se se mantiver a sintonia com a realidade, bem como o conhecimento mínimo de fatos, aspectos culturais, sociais, do mundo em questão.

A identificação com o leitor, nesse caso, é produto desse incômodo provocado pelo autor, bem como de sua acuidade visual. Em um dos textos de O escândalo do século, Gabo se incomoda por ninguém dar atenção a fatos aparentemente comezinhos, como o do fantasma de uma mulher que aparece na beira da estrada. Redimensiona esse episódio, ocorrido na França, demonstrando como o orgulho francófono é incapaz de perceber a sua relevância.

Com essa capacidade de ampliar a realidade, o comum deixa de ser comum. Adquire um novo status — ou, contrariamente, o maravilhoso passa a ser algo comum. Portanto, o indivíduo latino-americano, vivendo em uma condição completamente desfavorável, pelo menos no instante da escrita de García Márquez, por exemplo, nunca poderia ser tomado somente como um sujeito digno de pena, de comiseração, por não viver em um mundo tomado como modelo de desenvolvimento social, econômico e político. Não se trata de uma idealização, ou qualquer forma de alienação, mas, sobretudo, de reposicionamento dos atores em questão.

Se o realismo mágico, predominante em sua obra ficcional, abre espaço para uma descrição diferenciada da América Latina, o contato com a produção jornalística de García Márquez nos permite atentar para o produto que alimenta a obra ficcional propriamente dita. É como se nos deparássemos com a matéria-prima de Gabo. E isso exige, igualmente, o reposicionamento dos dois ofícios.

Em determinado momento, Gabo enfatiza que o escritor é alguém com a capacidade de manipular palavras com alguma elegância. A sua capacidade criadora está diretamente relacionada a essa particularidade, aparentemente simples. O jornalista, por sua vez, deve estar atento à realidade, ao que o cerca, observando os fatos tidos como desimportantes a ponto de redimensiona-los. Notamos, nesse caso, uma valorização sem precedentes dos dois ofícios pela existência de uma interseção entre eles.

O ficcionista, quando preso exclusivamente à imaginação, tende a se distanciar do leitor por apresentar um universo próprio. Fecha-se em si mesmo, em sua capacidade de inventar, não estando mais aberto aos aspectos do real que podem ser fascinantes. Antes do mágico, García Márquez cobra o realismo, tomando-o como inevitável.

O escândalo do século é uma ode de mão dupla a duas formas de escritas completamente distintas, a jornalística e a literária — bem como uma ode aos dois tipos de profissionais. E o elemento base para isso, por meio de uma lógica relacional, é a maneira como se trabalha com a realidade. No jornalismo, ela é imprescindível. Conseguir descrevê-la, fundamental. Ter a sensibilidade quanto ao que deve ser considerado digno de divulgação faz parte disso.

Assim é que García Márquez se sente à vontade para escrever, nos jornais, sobre os temas mais diversos, como as ditaduras latino-americanas, as revoluções socialistas, os aspectos particulares de sua terra, Aracataca, o prêmio Nobel e eventual desconhecimento da Academia Sueca quanto à literatura hispânica, o dia a dia de personalidades famosas em todo o mundo, o papa, a morte de uma jovem desconhecida mas ligada a autoridades italianas, os Beatles, entre muitos outros temas. Nada lhe escapa.

Se ao ler a obra ficcional de García Márquez percebemos que o mundo é mais surpreendente do que nos aparenta, lendo sua obra jornalística vemos que o surpreendente é mais mundano do que pensamos. Ou o contrário. No final das contas, tanto faz.

O escândalo do século
Gabriel García Márquez
Trad.: Joel Silveira, Léo Schlafman e Remy Gorga Filho
Record
348 págs.
Gabriel García Márquez
Nascido em 1928, em Aracataca, próximo a Barranquilla, Colômbia, é considerado um dos maiores escritores de todos os tempos. Mestre do realismo mágico latino-americano, foi contemplado com o Nobel de Literatura em 1982. Em sua vasta obra, merecem destaque Cem anos de solidão (1967), O amor nos tempos do cólera (1985), Crônica de uma morte anunciada (1981), Doze contos peregrinos (1992), Ninguém escreve ao coronel (1961), Notícia de um sequestro (1996) e Memória de minhas putas tristes (2004). García Márquez morreu em 2014, no México.
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

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