Toda literatura dialoga com o seu tempo, mas o atual é o das cotações das bolsas, das cifras impiedosas, do valor do dinheiro que oscila proporcionando riqueza a poucos e pobreza à maior parte das pessoas. Vivemos sob o domínio da especulação. Livros que tratam do gênero fantasia, ou do universo mágico, são bem-vindos. Já que não vemos saída na realidade contundente, que tal encontrarmos numa via se não expressa, ao menos pouco turbulenta do universo da fantasia ou da magia? Talvez o realismo mágico tenha surgido e tomado impulso no continente latino-americano devido à violência imposta pelas colonizações, como a portuguesa e a espanhola. Quem venceria esses colonizadores implacáveis, destrutivos, egoístas, que caçavam tesouros por todo lado?
Sobre o Brasil, a questão merece ainda ser mais aprofundada. A escravidão aqui foi devastadora. O resgate merecido pelas populações afrodescendentes foi muito discutido, mas não pago. O direito à propriedade, que lhe seria devida, jamais foi discutido, e quanto às demarcações das terras dos habitantes brasileiros que já se encontravam aqui antes da chegada dos portugueses são cada vez mais violadas.
A cabeça cortada de Dona Justa, novo livro de Rosa Amanda Strausz, trata destas questões, mas tenta resolvê-las pelo viés fantástico. Num continente complicado em termos de colonização, de política, com vasta tradição no extermínio de tribos indígenas e no suplício impostos a negros africanos escravizados, o gênero encaixa-se, embora não responda de todo. O que não se pode resolver pela racionalidade, que na verdade não nos serve, porque faz parte dos instrumentos de dominação utilizados pelo colonizador e pela elite que de uma forma ou de outra não se eximem do poder, a magia, ou o universo mágico, cai como uma luva.
O romance é dividido em três partes. Na primeira, ambientada em 1982, Margarete Dias, moradora de um apartamento conjugado em Copacabana, após voltar de sua caminhada matinal no calçadão da praia, recebe do porteiro um estranho envelope. Quando abre e examina seu conteúdo, descobre que se trata da escritura de uma fazenda localizada no norte do estado, cuja herdeira é ela. Sem perder tempo, apronta-se e ruma para o local. Depois de dirigir durante algumas horas, a mulher chega à localidade e percebe a presença de algo estranho no solo e no ar.
A segunda parte apresenta o cirurgião barbeiro francês Armand Maurois, que chegou ao Brasil em 1797, fugindo de seu país por causa de uma conquista amorosa malsucedida. Recolhido do anonimato e salvo por Justiniana Silvério, Dona Justa, rezadeira que operava verdadeiros milagres pela cidade, os dois vão cair nos favores dos administradores portugueses locais, após uma cura conseguida por Dona Justa a um alto dignitário da coroa portuguesa no Brasil. O francês, através dos relacionamentos que estabelece a partir de então, consegue a cessão de uma sesmaria, que vai dar origem à Fazenda Francesa, conhecida também como Fazenda Policarpo.
A terceira parte compreende um empreendimento para desfazer um feitiço que já dura cento e cinquenta anos e perturba várias gerações que se sucederam à Dona Justa. Tal ação envolve desde pessoas chegada no início da exploração local, até a herdeira, Margarete Dias, a moradora de Copacabana.
O romance é rico em descrições e na criação de personagens, embora muitos deles sejam estereótipos. O realismo mágico, ao estilo García Márquez, faz o enredo avançar e desperta muito interesse no leitor, que em determinados momentos, tenho certeza, não conseguirá abandonar a leitura.
O estrangeiro
A narradora, mãe Justa, ou Justiniana Silvério, a primeira proprietária da fazenda (o trato era de que o francês colocaria a propriedade no nome dela, o que ele não deixou de fazer), já está morta quando conta a história, sua voz aparece em letras menores no começo dos capítulos. Ela explica sobre o local e sobre os personagens. Tal fato ajuda muito no entendimento da trama e contribui para criar a sugestão mágica da narrativa.
Além de acompanharmos as peripécias locais, ocorridas tanto na fazenda como na cidade vizinha, de nos inteirarmos sobre a origem das maldições que precisam ser desfeitas, podemos levantar questões sugeridas pela narrativa. A primeira delas é o papel do personagem estrangeiro na literatura brasileira. Este não é apenas o francês, mas envolve Policarpo, o feitor — porque ele também é estranho ao local —, os escravos recém-chegados (muitos não falam o português), incluindo uma sacerdotisa negra que faz parte da trama. Poderíamos perguntar: qual o papel do estrangeiro na formação do Brasil? Qual o papel do estrangeiro na literatura brasileira? Qual o comprometimento dos negros, também estrangeiros, na formação da nossa cultura, já que perderam sua língua de origem, sua pátria e vieram escravizados? Uma nova cultura está em fermentação, mas ela surge em meio a melancolia e a muito sofrimento.
Talvez possamos perguntar se procede a opção pelo fantástico num momento em que ele já se encontra por demais utilizado e quase esgotado. A primeira hipótese é que o autor é dono de sua narrativa e pode escolher o modo como deseja contá-la. Lê o livro aquele que se sente bem com esse tipo de conceito de romance. Outra questão se impõe: num momento de preocupação com o aquecimento global, com o desmatamento e com o desregramento climático, um livro que opta pela solução dos problemas por meio de encantos e desencantos não estaria contribuindo para a alienação de seus leitores? Não sei, mas o que se pode afirmar é que a narrativa pode pender para ambos os lados, o da crítica social e o da magia, além disso, o Brasil é um país onde crenças místicas prosperaram.
Mas há a crítica social sim, como à escravidão e à crueldade a que os negros foram submetidos. Outra crítica, embora menor, é a respeito da habitação urbana, quando a narradora relata o caráter exíguo do apartamento em que mora Margarete, em Copacabana. Um último argumento, que ajuda na escolha da autora, é de que nos dias de hoje escritores se distanciaram das questões sociais e optaram pela busca de uma “boa história para contar”. O livro de Rosa Amanda não deixa de apresentar este feitiço. E, por último, como estamos no universo das cifras econômicas, esse tipo de literatura traz bons resultados. Para editores e para autores.
Outro ponto que vem à tona, quando se fala da autora de A cabeça cortada de Dona Justa é que ela optou durante muitos anos em escrever livros de literatura infantojuvenil. Isso é uma grande bobagem. Ninguém opta escrever livros para crianças, para jovens ou para adultos. Opta-se, sim, por contar uma história, e se apegue a ela aquele que se interessar.
A crítica literária tem sempre dificuldade de lidar com o tipo de literatura que escapa a seu tempo. O romance de Amanda Strausz mergulha nesta seara, pois não tem interlocutores direto na atual literatura brasileira, que não produz com frequência histórias desse tipo, um gênero histórico-fantástico. Mas, quanto a isso, também não vejo problema. Um livro sempre está a estabelecer novos diálogos, mesmo fora do universo a que se propõe. No fundo, no fundo, todos gostaríamos de resolver as coisas com um pouco de magia.