Retratos da cidade, organizado por Adriano Macedo, é uma coletânea de textos, como sugere o título, que tematiza a cidade a partir de retratos, ou seja, recortes da vida social, cotidiana e afetiva de seus habitantes. Desperta a curiosidade pela variedade de perspectivas e pontos de vistas. Da mesma forma, o tempo histórico em que estão contextualizados esses textos e os espaços físicos que servem de referenciais geográficos são diferentes entre si.
Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e outras localidades urbanas periféricas se descortinam aos olhos dos leitores sem pretensão de totalização. O livro reúne treze autores de diferentes propostas, momentos da nossa história literária, estilos e gêneros. São crônicas, contos, crônicas memorialistas e capítulo de romance, cujos critérios comuns parecem ser apenas o eixo temático da experiência urbana e a boa qualidade estética das narrativas. Uma leitura panorâmica conduzirá nossas lentes a cada texto, antes de pensar em pontos de convergência, já que a marca mais forte da coletânea reside na especificidade de cada um.
O primeiro texto é um capítulo do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, ambientado no final do século 18. O fragmento em questão apresenta em detalhes os personagens e a formação da cidade, a partir de um aglomerado urbano que vai sendo construído no bairro de Botafogo. Aos moldes naturalistas, O cortiço reflete o contexto histórico e social de uma época escravocrata e suas relações de classe, na qual explorados, exploradores e oportunistas de plantão vão estabelecendo entre carne e pedra os alicerces da cidade. Esta, mais que espaço, ganha ares de personagem principal do romance.
Em Por montes e vales, Alfredo Camarate tece uma crônica que hoje “integra o conjunto de textos escritos sobre a construção da capital mineira”. O narrador, ao visitar o único hotel existente na cidade, na ocasião (por volta de 1984), é agraciado com o quarto e a cama onde dormiu Tiradentes. Orgulhoso, recebe como herança também os malditos percevejos com todos os seus ferrões e sobressaltos.
João do Rio, em A era do automóvel, discute a substancial mudança que esse veículo representou na vida vertiginosa da modernidade. Com algumas tomadas proféticas, visualiza o encurtamento das distâncias, a economia de palavras e de contato humano e a influência de tudo isso na linguagem. Ou seja, tenta avaliar as consequências que a velocidade e as paixões despertadas por ela começaram a desencadear.
Em O moleque, conto de Lima Barreto, o recorte fotografa, no início do século passado, o subúrbio carioca de Inhaúma, no qual o povo pobre se debatia na luta pela sobrevivência, contra o preconceito, na esperança de viver com dignidade. Gaetinho, de Alcântara Machado, dramatiza a tragédia urbana cujo palco é a rua, num São Paulo de 1920. De repente, a ingenuidade dos brinquedos de crianças humildes, a bola de meia, a disputa da sorte e um bonde indiferente às paixões dos pequenos se encontram numa esquina.
Poluição sonora
Ferreira Gullar, na crônica E durma-se com um barulho desse…, problematiza a poluição sonora que invade a vida privada de quem precisa e gosta de sossego. A cidade grande continua, nos dias atuais, estupidamente com pressa, na plenitude da realização prevista por João do Rio, na sua crônica A era do automóvel. Buzinas, máquinas escavadeiras, vozes e gritos das ruas, dos bares, dos meios de comunicação invadem o silêncio da folha em branco e o apartamento do personagem.
Milagre de papel, de Antônio Barreto, centra seus holofotes sobre familiares, que, juntos, articulam seus sonhos com uma realidade muito concreta de papel e lixo. Ali, encontram seu lugar no mundo, disputam e comungam sonhos, amor, sorrisos e milagres. A vida de pessoas simples ganha grandiosidade através da maneira com que esses personagens a encaram e como a linguagem poética esboça a representação desse cotidiano. “Então, eles estacionaram seu carro de papel, à beira do bosque de matéria-prima, no centro da cidade. Da cidade de papel.”
Heródoto Barbeiro, através de uma crônica memorialista, retoma a suas origens na infância, para desvendar sua paixão, ainda preservada, por visitar e consumir relíquias dos ferros-velhos. O narrador percorre a cidade através de uma cartografia afetiva, apesar de usar concretamente a referencialidade das ruas. “Confesso que eu e meu irmão revirávamos a Rua 25 de março, a Rua do Gasômetro, a Rua das Carmelitas, …, em busca da sucata que garantiria as guloseimas do dia.”
Luiz Vilela, em Rodoviária, constrói sua narrativa com uma feliz mistura de vozes e ruídos cruzados de conversas telefônicas aos berros, autofalantes que tentam orientar a multidão alvoroçada em busca de um destino: “Passageiros que se destinam ao Rio de Janeiro no horário das dezessete horas”, anúncios luminosos: BEBA COCA-COLA E SORRIA FELIZ, músicas radiofônicas: “Olha que coisa mais linda/ mais cheia de graça”. A rodoviária é um ponto de encontro de personagens preocupados ou desorientados pelo excesso de luzes, cores, ruídos e informações da cidade grande contemporânea.
João Paulo Vaz, em Château d’Orly, constrói uma narrativa bem divertida apesar das problemáticas afetivas e sociais que suscita. O humor em situações tensas é um elemento importante. Ele dramatiza a relação de moradores de um condomínio de luxo da Zona Sul do Rio e as misérias e mesquinharias do cotidiano do protagonista com seus vizinhos e familiares — o falecido pai militar, principalmente. “Mas acho que exerço bem, aqui no Château d’Orly, a intermediação entre as classes – um papel fundamental para a manutenção da paz num país cheio de contraste como é o nosso. O general ficaria orgulhoso de mim.”
A crônica de Ivan Angelo também retrata a vizinhança do condomínio de uma cidade grande. Biquínis, mulheres ao sol, envolvidas com o disse me disse de um dia de verão, e uma luneta indiscreta por trás de um voyeur a postos. A cidade aqui são seus mil olhos e mil bocas famintas de notícias e enganos.
Café na esquina, lembra?, de Vivina de Assis Viana, é um fragmento, com predominância do diálogo entre mãe, filho e um motorista de táxi, perdidos nos labirintos da cidade e da memória. A desorientação espacial está entremeada de pitadas de humor, o que, de certa forma, torna cômico o que poderia ser trágico na cena urbana.
Como chave de ouro, entra Clarice Lispector com A bela e a fera ou A ferida grande demais. A Bela sai de um salão de beleza, repleta de frivolidade e depara-se com um mendigo sujo e de ferida aberta. A diferença de classe e de condição de vida, longe de afastá-la, lança-a a um amor visceral e maldito, num ímpeto de comunhão e repulsa com o homem largado à sorte. Aos moldes do famoso conto Amor, de Laços de família, no qual um cego abre revelações a Ana, uma dona de casa alienada do mundo exterior, até então, o mendigo lança a bela mulher a uma fulminante epifania.
Retratos da cidade é, portanto, um excelente recorte da literatura que, centrada nas luzes acesas pela experiência urbana, desde os primórdios da modernidade, radicaliza suas potencialidades de expressão na fragmentação caleidoscópica do momento contemporâneo em que vivemos. Vale conferir.