Beatriz engravida e espera o momento certo para compartilhar sua enorme alegria com o marido. Mas o tempo se acelera diante da morte e atravessa a vida do casal deixando tudo ao revés. Beatriz não pôde contar, o pai do seu filho morreu sem saber. Grávida e viúva, ela recapitula consigo mesma todas as vezes em que planejou ter dito a ele: estou grávida, para sentir o abraço e a alegria plena que viria em seguida. Isso ela imaginou durante os meses de gravidez e, possivelmente, prosseguiu sua vida imaginando, porque é assim que a mente lida com a incompletude. Luto é transição, e O último sábado de julho amanhece quieto, romance de estreia de Silvana Tavano, termina com o nascimento do bebê trazendo a promessa de restauração de uma perda incalculável.
Beatriz é uma mulher de classe média, tradutora, recém viúva de um médico (Cristiano). O casal tem hábitos, valores e padrões de consumo da sua classe (se deita numa banheira para relaxar), que passa pela descrição de ambientes e comidas (sabe preparar uma salada de queijos), viagens ao exterior. Mas o universo de Beatriz são os livros e, o do marido, é o trabalho. A diferença às vezes atrapalha, mas não impede o amor. Com a morte do marido, resta o apoio dos amigos, da mãe, do pai. Amigos com os quais se dá bem, mas também se indispõe; a mãe com quem nunca teve uma boa relação — marcada por ressentimentos e ausências; e um pai quase idolatrado, o que a impede de compreender a decisão da sua mãe pela separação. Nenhuma relação é simples, nem de mão única. A reaproximação da mãe ocorre paralelamente ao seu afastamento da melhor amiga. Uns vêm, outros vão.
A morte trágica do marido deixa um rastro interminável de perguntas (por quê?, como seria se ele soubesse?). Inicialmente, Beatriz desenvolve um quadro semicatatônico. Emudecida, ela apenas ouve, evasiva, as pessoas falando em sua volta: você precisa elaborar o luto. O que ela consegue, de fato, é rememorar, vivenciar internamente o momento em que conheceu o marido, a importância que a medicina tinha na vida dele e como ela o admirava — uma admiração que imaginava ser para sempre porque a única coisa que realmente ela quer, no momento da perda, é “alimentar a parte de Cristiano que agora vive dentro dela”.
Restaurar a vida
Para quem quiser conhecer o luto como um fenômeno psicanalítico, a leitura de Luto e melancolia, de Freud, em paralelo com O último sábado de julho amanhece quieto, cai como uma luva para acompanhar cada etapa do processo de perda do objeto amado, elaboração e ressignificação da perda, processo em que o luto deixa de ser passivo para ser ativo. Elaborar o luto equivale a restaurar a vida no sentido cotidiano, cognitivo e afetivo. Enfrentar o luto é lidar com a perda se reconstruindo a partir dele.
Além de tradutora, Beatriz também escreve. Escrever é tentar compreender a morte de Cristiano, registrar cada uma das vezes em que planejou contar a ele sobre sua gravidez, de lidar com pessoas e relações difíceis e, sobretudo, buscar a si mesma. Ela escreve fragmentos da vida em forma de poemas. Por isso, o livro tem um narrador em terceira pessoa, mas os poemas são escritos em primeira pessoa. Os capítulos breves com parágrafos longos trazem os diálogos incrustrados na narrativa, sem marcação e sem verbos dicendi, o que funciona muito bem para dar uma voz íntima ao narrador em terceira pessoa, que tende a ser mais distante.
Nos meses de gestação, oscilando entre a elaboração do luto e a não aceitação, Beatriz se movimenta entre a vida e a morte até poder receber seu filho e recuperar a própria voz: “A cabeça de Beatriz escorrega pelo lençol branco (…) Dalí vê surgirem palavras quase-aqui-ele-já-encaixado (…) e se entrega aos sons”.
O livro é escrito com muita clareza, sem excessos, de modo direto (sem rodeios), mas também poético. Há trechos em espanhol, língua paterna de Beatriz que, no livro, soa melodiosamente. No que pesem os saltos da marcação temporal, e de as memórias serem intercaladas com relatos no presente, em nenhum momento o leitor se perde, nem se desprende da leitura. Ao contrário, ele se deixa levar pelo fluxo da prosa e do verso, pelo ritmo sonoro na escolha das palavras, pela velocidade trágica do luto e, ao mesmo tempo, por um tipo de esperança que, não abertamente declarada ao longo do livro, se faz presente no momento em que Beatriz se torna mãe.