Talvez alguns ainda se lembrarão de como, no começo da atual pandemia, diante do momento propício à leitura, muita gente começou a ler romances tematicamente afinados com os novos tempos, como A peste (1947), de Camus, ou O amor nos tempos do cólera (1985), de García Márquez. Apesar de convidar a alarmantes especulações sobre uma falta generalizada de apetite pelo que normalmente atrai na prosa de ficção — a capacidade de pensar em coisas que não estão se passando no aqui e agora —, ou sobre que tipo de circunstância poderia inspirar leituras que solicitassem um esforço maior de abstração do cotidiano, a tendência é natural e até saudável. Mesmo porque, se o problema está na recusa da fantasia, pode-se argumentar que nas histórias inventadas mais próximas do real à nossa volta, temos uma janela privilegiada para compreender a natureza dessa arte.
Apesar de ser uma boa candidata a participar desse mesmo fenômeno — o que poderia ser menos fantasioso, agora, do que um relato de confinamento? —, a ficção curta Viagem ao redor do meu quarto dá muito que pensar sobre as possibilidades da ficção numa época contrária à imaginação de um mundo diferente deste que efetivamente é.
Curiosamente, este livro de 1795 poderia ser encaixado com alguma liberdade num gênero dos mais (pós-) modernos, supostamente indicativo do anunciado “fim do romance”: a chamada autoficção. Um pouco à maneira de alguns romances escritos por professores universitários em residências artísticas, onde se conta a história de um professor universitário que tenta escrever um romance numa residência artística, Xavier de Maistre ambienta sua narrativa em seu quarto, no período em que passou preso por ter participado de um duelo, adotando a perspectiva de uma persona literária que quem lê é estimulado por diversos indícios a identificar com o próprio autor.
Mas não se pode dizer que Viagem ao redor do meu quarto tenha nascido de uma incapacidade para o ficcional. Na verdade, o narrador exibe uma disposição para a fabulação realmente impressionante, estimulada, provavelmente, pela situação de confinamento. Forçado a permanecer num quarto onde, militar e nobre, ele tem acesso aos cuidados de um criado, o protagonista narra seus dias de cárcere — 42, o mesmo número dos capítulos da obra — num gesto que parece, a princípio, pouco propício à ficção.
A narração, porém, trata de modo quase delirante o material narrado. Xavier de Maistre olha para sua “cela”, mas o que ele vê é uma viagem, e das mais animadas. Impõe, assim, sobre seu relato superficialmente confessional e sedentário uma inversão estrutural e temática que antes esperaríamos encontrar na ficção modernista do século 20. Borges, aliás, aprendeu uma ou duas coisas sobre o estilo de peripécia intelectual característico de sua prosa neste livro, que é objeto de uma sutil alusão no conto-título do volume O aleph.
Sinceridade ingênua
As traquinagens narrativas do nobre francês são executadas com desenvoltura e brilho. Também versado na arte da pintura, o escritor combina o engenho de seu olhar com o das palavras para elaborar imagens de uma grandiloquência comicamente despropositada. As vistas da cama, da lareira, da janela são traçadas com recurso jocoso a lugares-comuns da poesia bucólica e dos relatos de viagem, como se merecessem a dignidade estética de lindos lagos, montanhas ou vales. Divertidamente prolixo e desorganizado em sua exposição, o narrador nos conduz, a certa altura, equilibrado em sua poltrona, dando pequenos empurrões no chão com seus pés, pela travessia de alguns centímetros, percorrida lentissimamente e entrecortada de devaneios amorosos e filosóficos. Terminado um trecho fatigante, ele para um pouco para descansar. Um estudo minucioso que procurasse estimar a extensão “real” dos movimentos físicos narrados talvez chegasse à conclusão de que a Viagem de 42 dias não chega a alcançar a marca de 42 metros.
Seria apressado concluir que o autor empreende aqui apenas um frívolo, ainda que elaborado, exercício retórico, do tipo que cairia em descrédito literário com a revolução romântica, ou que pretenda simplesmente atacar a “literatura de ideias” do Iluminismo, ou do já nascente romantismo. Em algumas passagens, somos levados a suspeitar que Xavier de Maistre, militar aristocrata a serviço de exércitos antirrevolucionários, esteja especialmente empenhado em zombar do racionalismo humanitário e edificante da literatura pedagógica de um Rousseau. Mas a mensagem do livro está muito longe de ser puramente negativa ou cínica. Apesar de ironizar convenções sociais, artísticas, a filosofia e as ciências, nada indica que Maistre seja um inimigo rancoroso de seus alvos. O sinuoso vaguear sem rumo pelo quarto, entremeado de excursos, alguns humorísticos, outros lacrimosos, onde a imaginação sai do cárcere para ir passear entre memórias e sonhos, é de uma sinceridade ingênua, até comovente.
Xavier de Maistre não está convencido da maldade irremediável do ser humano, como seu irmão, o pensador reacionário Joseph de Maistre. Sua narrativa é temperada pelo que chamaríamos, no jargão da moda, de uma abertura para a vulnerabilidade, que não parece puramente declamatória, e que dificilmente se vai encontrar nas paródias realmente amargas, como as de Machado de Assis — provavelmente o responsável pela celebridade deste texto relativamente obscuro no Brasil. Nosso grande ficcionista fez seu Brás Cubas confessar ter adotado, em sua “autobiografia” póstuma, “a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre”. Apenas ele acrescenta algo que não está nesta Viagem: as conhecidas “rabugens de pessimismo” das Memórias póstumas e, de modo geral, dos romances machadianos da fase madura.
Alma e animal
Talvez o elemento mais impressionante deste livrinho tão singular seja o pequeno tratado de psicologia que nele é apresentado em forma fragmentária e intermitente. Essa teoria exposta com autoirônica gravidade interrompe repetidamente o curso normal da viagem, sendo, ao mesmo tempo, um dos mais interessantes veículos para a fantasia na narrativa. Vemos ser construída aos poucos uma interessante tese sobre a divisão do ser humano entre “a alma” e “o animal” [la bête] — também chamado de “o outro” — isto é, aproximadamente, o que chamamos de corpo. Essa divisão, entretanto, não é tão simples quanto sugere a formulação inicial do sistema, pois o “animal” também tem suas vontades e até, pode-se dizer, uma inteligência própria.
Perto do final da narrativa, a “alma” e o “animal” travam um divertido diálogo onde o segundo se dirige à primeira, tratando-a sarcasticamente por “minha senhora”, como acontece em algumas querelas conjugais passivo-agressivas, numa queixa à qual a alma responde tratando-o por “meu senhor”, mas sem ter percebido a malícia por trás do formalismo de seu companheiro. Esse passo em falso, mais do que qualquer fato substancial em causa, dá ao “animal” a vitória na discussão.
Está claro que, na concepção do narrador, “o animal” é como um serviçal da alma, mas não deixa de ter alguns direitos e de influenciar sub-repticiamente as ações dirigidas por sua senhora, antecipando alguns elementos da teoria freudiana das relações entre consciente e inconsciente. Mas aqui, mais uma vez, caímos na tentação de uma leitura pautada por critérios inteiramente estranhos à elaboração desse relato. Creio que a melhor maneira de tirar proveito desta Viagem é despreocupar-se da poeira dos fatos e dos séculos e entregar-se ao seu ritmo delirante e febril — a toda sua luminosa estranheza.