Parece que estamos diante de um livro extremamente importante sob diversos pontos de vista: repensa o futebol contemporâneo e, ao fazê-lo, elabora uma leitura do imaginário e da escrita contemporâneos. O futebol brasileiro foi e é capaz de produzir um dos mais potentes e — por isso mesmo — problemáticos espelhamentos desta sociedade. Neste livro, lê-se uma afirmação da potência do futebol por meio da resistência aos discursos hegemônicos — sobretudo entre torcedores, técnicos e jornalistas — que não fazem jus aos fundamentos lúdicos e mágicos do esporte. Ao lidar com os restos de uma marca brasileira no futebol mundial — representada da maneira mais completa pela seleção da Copa de 1970 —, este livro encontra-se, no limite, emaranhado nas questões da literatura contemporânea, que lida sobretudo com os arquivos da modernidade.
Em busca da beleza
A escrita de Tostão conquistou um espaço de singular relevância no ensaísmo brasileiro. Publicadas semanalmente em jornais de inúmeros estados do país, suas crônicas atravessaram a primeira década deste século dando algo mais do que o testemunho de um craque da Copa de 1970 que, posteriormente, se tornou médico, professor de Medicina e estudioso em Psicanálise. Para se trabalhar bem um gênero que exige rápida comunicação, um gênero típico do jornalismo e marginal à tradição do livro, é necessário fazer ver a espessura do cotidiano — no caso, do dia-a-dia do futebol. Em Tostão, essa espessura encontra-se na crítica à linguagem com que se fala de futebol. Por isso suas crônicas são sempre propositivas, nunca impositivas. (Quando se impõe, não se questiona a linguagem utilizada.)
Mais do que propor como assistir ou jogar futebol, os textos de A perfeição não existe restituem o esporte como um lugar da cultura em que se definem valores necessários à vida, como na crônica em que interpreta o passe de bola: “Assim como o gol confirma a eficiência de um time, e o drible simboliza a individualidade e a improvisação, o passe representa o futebol coletivo, a solidariedade, a organização e a união de uma equipe”. Estes valores, que são imanentes ao esporte, podem ser encontrados com a mesma intensidade na arte, e é por isso que são inúmeros os poetas, prosadores, artistas em geral mencionados por Tostão para pensar o futebol.
Na mesma crônica, intitulada O passe, o escritor, após definir o passe de curva, reivindica a fala e a obra de um artista para dar a medida estética de um recurso do esporte:
O passe de curva, com a parte superior e interna do pé ou com os dedos laterais (três dedos, de rosca, trivela), é um ótimo recurso técnico para fazer a bola contornar o corpo do adversário e chegar ao companheiro que está atrás do marcador. É um passe bonito e inventivo. “A linha reta não sonha” (Oscar Niemeyer).
A beleza da maioria das análises de Tostão está em reivindicar o sonho e a utopia no futebol com base em recursos técnicos e táticos objetivos (como o passe em curva ou a tática de equipe aliada ao improviso individual), fugindo tanto ao tatibitate tecnicista dos técnicos quanto à mistificação emocional dos torcedores. Não se trata exatamente de ver o futebol com outros olhos, e sim de despir-se de saberes pouco úteis para se compreender uma partida de futebol como manifestação autônoma da cultura humana — e não do mercado de jogadores, da violência urbana, da corrupção política, da alienação social, etc. Também não se trata exatamente de defender o futebol-arte, pois o que se defende, antes de tudo, são as condições de possibilidade para que o futebol aconteça, quer dizer, para que um drible, em vez de ofender o adversário, expresse a beleza de uma disputa esportiva.
Força humanizadora
As crônicas de Tostão, ao posicionar o futebol no campo do sonho, da curva, da arte, numa linguagem simples e de rápida comunicação, realizam a força deste gênero literário tal qual preconizada pelo crítico Antonio Candido. No ensaio que dedicou ao gênero, A vida ao rés do chão, Candido define de maneira dialética a crônica como aquele texto cuja linguagem simples “fala de perto ao nosso modo de ser mais natural” e, ao mesmo tempo, como “compensação sorrateira”, recupera “certa profundidade de significado e certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição”. A presença desta ambigüidade entre linguagem simples e significado profundo parece constituir, para a crônica, a prova do livro. No caso do de Tostão, o título estabelece um diálogo insuspeito com o crítico: A perfeição não existe.
A reunião em livro de crônicas escritas durante pouco mais de uma década deixam muito evidentes as repetições de idéias do autor. Por exemplo, são inúmeras as crônicas em que fala do ex-companheiro Pelé, defendendo que uma das principais qualidades do jogador estava na visão de 360 graus que tinha das jogadas a serem realizadas pela equipe. Tais repetições, embora deixem à mostra o caráter circunstancial com que os textos foram escritos, fazem lembrar o caráter de ritual do futebol. Isso porque as partidas de futebol funcionam como ritos de passagem da semana para o brasileiro. Afinal, segunda-feira é o dia de se ter na ponta da língua o discurso jocoso dirigido aos torcedores do time adversário. Por isso a crônica é o gênero que mais tem se repetido para se falar de futebol, pois ela também constitui um ritual de escrita com dia certo para se fazer e quantidade certa de caracteres a atender.
Apesar disso, o livro que reúne as crônicas de Tostão pode ser considerado um ensaio dedicado ao futebol brasileiro contemporâneo. As análises de Tostão transitam entre variados campos do saber, podendo ser consideradas interdisciplinares. O autor chega a apresentar resultados de pesquisas científicas para elaborar seus argumentos, sem utilizá-los como argumento de autoridade. Ao mencionar um livro de psicologia esportiva que procurava analisar o peso dos aspectos psicológicos em relação aos aspectos técnicos em atletas profissionais, Tostão se apropria do resultado, sem no entanto aderir totalmente ao ponto de vista da pesquisa: “Os dois especialistas disseram ainda que, em competição de alto nível, 70% das decisões são definidas pelos fatores psicológicos. Exageros à parte, é indiscutível sua importância”.
Outro aspecto que aproxima A perfeição não existe do gênero ensaístico é a mescla de estilos de que se compõem os textos. Além das análises de jogos, jogadores, técnicos, confederações e campeonatos, as crônicas de Tostão compõem-se muitas vezes de suas memórias — algumas não relacionadas diretamente com sua atividade de jogador de futebol — e de pequenas narrativas ficcionais, como naquelas em que imagina o drama psicológico de técnicos de futebol como Luxemburgo e Felipão. Uma das crônicas narra a noite de Natal de João, um menino pobre que sonha em ser craque de futebol. Sem poder entrar numa escolinha de futebol do bairro (pois a família não tinha condições de pagar a mensalidade), o menino passa a noite de 25 de dezembro sonhando com o dia em que se torna um craque. “João acordou e, ao lado da cama, viu uma bola de presente. Era de couro, novinha, igual à do sonho. Seus olhos brilharam. Era feliz e sabia.”
Através de uma narrativa como essa, baseada num lugar-comum da cultura brasileira, o autor relaciona uma imensa memória social a sua defesa do futebol como sonho, ou, mais precisamente, como espaço de definição dos valores da vida. Em Conto de Natal e de futebol, uma bola, brinquedo que dispensa manual de instruções, dribla a pobreza da família e restitui, para o menino, a possibilidade de buscar o sonho. A bola humaniza.
A voz de Tostão transforma a seleção brasileira de 1970 em um ponto de vista do futebol. Esta seleção é o objeto de reflexão da crônica homônima ao livro: é “fascinante”, mas não perfeita. O encontro entre jogadores altamente técnicos e habilidosos não produziu uma seleção perfeita, mas encerrou um ciclo de afirmação mundial do futebol brasileiro que havia se iniciado em 1950 e que enredou o futebol na cultura brasileira. Pelé, protagonista deste ciclo histórico, é uma referência para a própria escrita de Tostão ou, antes, para a própria escrita da crônica: “Quando joguei ao lado de Pelé, percebi que uma de suas principais qualidades era tornar simples o que era complexo. Tudo se iluminava à sua frente”. Na mesma crônica, Pelé é comparado com Freud: “Quando entrei no curso de psicanálise, imaginei que jamais entenderia as idéias de Freud. Logo percebi que seus textos eram tão claros, convincentes e simples que até os mistérios da alma tinham lógica. Freud colocou ordem no caos”.
Estilo em campo
Essa simplicidade como prova de evidência dos argumentos é conquistada pelo estilo de Tostão. Predominam no seu texto as relações de coordenação entre as orações, há muitos “isso e aquilo” e, sobretudo, muitos pontos finais. “Temos virtudes e defeitos. Somos humanos. Ambivalentes e pecadores. Uns mais, outros menos.” Assim como a interdisciplinaridade estabelece relações entre um campo de conhecimento e outro, o predomínio desse estilo coordenativo (tecnicamente denominado parataxe) mantém a equivalência entre uma idéia e outra — em detrimento das relações hierárquicas que a subordinação estabelece. Tudo isso resulta num texto que, através de sua simplicidade, compõe uma extensa superfície, um plano de idéias, memórias, conhecimentos que somam entre si.
Para Tostão, as palavras não são a bola com a qual se joga. Seu trabalho move-se por um desejo anterior, mais fundamental: o de estabelecer para o leitor um campo de jogo, um espaço discursivo no qual o futebol possa ser pensado em seus valores mais fundamentais. É este campo — de linguagem — que não está dado, mas que não cessa de ser jogado a cada partida de futebol. Repetindo a maestria com que conduzia a seleção brasileira, Tostão “dá o campo” para o leitor fazer o seu gol. Nesse sentido, todo bom escritor é superficial: inventa uma superfície — generosa, nua — apta à participação do leitor.