Embora não tenha merecido menção mais alentada “fora dos muros da escola”, o centenário do nascimento de Lúcio Cardoso — escritor brasileiro, mineiro, antes de tudo, autor do bastante comentado Crônica da casa assassinada e do menos citado Salgueiro, entre outros livros — tem repercutido bem onde também interessa, que é no mercado editorial. Prova disto é o fato de que a obra do autor recebeu o acréscimo, em 2012, de uma nova edição de seus diários, assim como de outros estudos acerca da literatura cardosiana, como se verá ao longo deste ensaio. Com efeito, a interpretação acadêmica tem dedicado um olhar mais alentado à proposta literária deste escritor, de maneira que o leitor desavisado, se tiver interesse, poderá mergulhar na prosa de Lúcio Cardoso sem temer a chave simbólica ou o sentido oculto que por ventura a produção artística desse autor possuir.
Neste aspecto, é evidente que quando o assunto é sua obra, o livro que vem à mente é Crônica da casa assassinada, título que apresenta um autêntico representante da fina flor da experimentação modernista, mesmo sem ter pertencido à escola dos regionalistas, por exemplo. Na avaliação de André Seffrin, que assina o prefácio da edição comemorativa de 50 anos de Crônica:
Já se disse que um escritor encontra a sua maturidade entre os 40 e 50 anos. É de se notar em Lúcio que a sua maturidade artística ocorreu quase que simultânea à de alguns autores de sua geração: Érico Veríssimo publicou a trilogia O tempo e o vento de 1949 a 1962, Jorge Amado publicou Gabriela, cravo e canela em 1949 e talvez seu melhor livro em 1961: Os velhos marinheiros. São nossos contadores de histórias, que começaram a escrever seus romances no início dos anos 1930 e cerca de 20 anos depois realizaram suas obras mais importantes.
Crônica da casa assassinada, publicado em 1959, é obra que engendra um sem número de recursos estilísticos em torno de uma só narrativa, com personagens diversos e histórias entre o grotesco e o fantástico que chamam a atenção pela abordagem inventiva da realidade. Todavia, cabe destacar o livro não apenas pelo aspecto formal, como mencionado em muitos trabalhos de pesquisa, mas essencialmente pela maneira como esse estilo impacta na história que o autor desenvolve. Em se tratando de um romance de tamanha envergadura, o livro é um relato desencantado de uma certa visão do cotidiano, mais precisamente a derrocada de uma aristocrata família mineira. As famílias infelizes o são sempre cada qual à sua maneira, mas o detalhe a que chama a atenção o texto de Lúcio Cardoso remete a uma trajetória ainda mais singular.
A singularidade da obra reside no fato de que a tragédia familiar ganha fôlego graças, de um lado, à personificação da tragédia pelas vozes das personagens e, de outro, porque o autor lança mão do poderoso símbolo da casa como elemento de unidade representativa da crônica familiar. O título, neste sentido, remete à idéia da casa que sofre à medida que os personagens da família entram num redemoinho sem precedentes de perdas e desenganos. Isto é visível pela composição da história: são as cartas e os diários que dão a tônica da narrativa. É assim que aprendemos a dissolução de um núcleo familiar: a partir do diário de André, um dos personagens da obra:
Ah, era inútil relembrar o que ela fora — mais do que isto, o que havíamos sido. A explicação se achava ali: dois seres atirados à voragem de um acontecimento excepcional, e subitamente detido — ela, crispada em seu último gesto de agonia, eu, de pé ainda, sabia Deus até quando, o corpo ainda vibrando ao derradeiro eco da experiência. Nada mais me apetecia senão vagar pelas salas e corredores, tão tristes quanto uma cena de que houvesse desertado o ator principal — e todo o cansaço dos últimos dias apoderava-se do meu espírito, e a sensação do vazio me dominava, não um vazio simples, mas esse nada total que substitui de repente, e de modo irremissível, tudo o que em nós significou impulso e vibração.
À primeira vista, uma descrição assim seria a expressão de uma literatura artificial, forjada a partir de beletrismo típico de certa produção ficcional no século 20. Ocorre que, no caso de Lúcio Cardoso, trata-se da forma genuína com a qual este escritor concebe sua prosa. É um tom poético, em verdade, que pode surpreender o leitor desavisado da poesia do autor.
Em um texto sobre Cardoso, Fausto Wolff se esmera em listar as qualidades deste escritor. E antes mesmo de comentar sobre o romance, destacou as qualidades de um poeta capaz de elaborar um soneto “comparável aos melhores de Mario Quintana e Vinicius de Moraes”. Não por acaso, foi também um poeta, desta vez Manuel Bandeira, quem melhor definiu as qualidades de um grande romance em tom menor: “O dom poético, o dom de criar vida, atmosfera, de armar os lances imprevisíveis e patéticos do destino. Na Crônica da casa assassinada culminou essa força demiúrgica de Lúcio”.
A utilidade da poesia
“Não se ama os poetas. O que se ama é a obra deixada para especulação literária”, escreveu Lúcio Cardoso em seus Diários. Quem resgatou essa anotação foi Ésio Macedo Ribeiro, organizador da edição crítica do volume Poesia completa. O livro de mais de mil páginas apresenta a dedicação abnegada de um pesquisador a propósito de uma produção tão extensa quanto rica em possibilidades de interpretação. E, de fato, em poucos escritores se verá o talento capaz de produzir imagens tão fortes e consistentes quanto em Lúcio Cardoso. É como se a poesia fosse a vocação primeira de um artista multifacetado, cuja verve é responsável por textos como o que segue: “A casa do solteiro é alta e de paredes de angústia, muros escorrem como verdes contornos e colunas de mármore frio guardam seus limites”.
Interessante atentar ao fato de que a idéia da casa é retomada pelo autor. Mas o que chama verdadeiramente atenção no poema A casa do solteiro é o torpor que amarra o solteiro à condição de um sujeito escravizado pelos limites de seu domínio. Para além disso, nota-se que Cardoso, como observa Macedo, trabalha a idéia da habitação como mito, estabelecendo uma conexão com a realidade. E é essa mesma casa que se altera ao longo do poema, elaborado em 56 versos livres, sem preocupações com efeitos sonoros ou rítmicos. A poesia é aqui a declaração de uma espécie de verdade, tão ou mais importante que a sua expressão formal. Mas esse é um poema que foi descoberto apenas em 1982, sem data de sua possível escritura.
Muito antes de A casa dos solteiros, como observa Ésio Macedo, a poesia de Cardoso já se mostrava tão variada e obediente a tantas exigências estéticas que é mesmo difícil cravar um só modelo, ainda que o organizador mencione alguns clássicos nesse texto de introdução. Para Macedo, Virgílio, Homero e Dante orbitam em torno de A casa dos solteiros, mas no caso específico de Cardoso o desconcerto no mundo evidencia uma inútil busca por uma paz interior, algo que fora diagnosticado pelo também poeta Vinicius de Moraes em texto assinado sobre o colega de letras.
A introdução, todavia, não consegue dar conta da rica diversidade desses versos. Assim, quando se lê Poema (um dos muitos textos com esse título ao longo da coletânea), pode-se realmente escolher por onde é que se deseja precisar seu sentido. Presente no livro Novas poesias, de 1944, o texto exala elementos caros à produção artística de Lúcio Cardoso, como a idéia do desengano e da negação, logo no início: “A visão que me segue não é a do teu corpo/ repousando à sombra do mistério,/ nem a dos teus lábios, nem a dos teus olhos/ como rosas que ardem entre gazes molhadas (…)”. Ou ainda o reforço do simbolismo e da metáfora no verso livre; com isso, numa aparente contradição, sem rima, o poema possui ritmo: “Foge, ó espaço! Deixa vagar livremente/ A demência deste sonho terrível (…)”. E no destaque para o ponto de exclamação em vez das reticências, o estilo em detalhe aparece como sinalizações de uma comoção que está longe de parecer excessiva. E de um texto que começa com a negação, nota-se o desfecho da fuga: “Foge, ó memória! Deixa arrastar-me/ o ímpeto deste vento que assassina”.
Já quando se trata da composição de sonetos, o rigor da rima parece ser uma obsessão que em vez de aprisioná-la torna a composição ainda mais sugestiva, como no caso do texto O rio. Mais uma vez, o leitor se vê diante de versos que sinalizam sentimentos turbulentos. É o que se lê em “O imenso rio, como um tigre/ fechado em seu âmbito de fome/ depois de devorar noturna selva/ a própria espuma em si consome”. Se fosse feito aqui um inventário das palavras-chave indexadas a partir da experiência de leitura, certamente surgiriam: rebeldia, selvageria; concepção instintiva da realidade. Há espaço, também, para a justaposição de palavras que provocam outro sentido, conforme se lê em: “devasso tua alma sem receio;/ e se assim me vejo em teu espelho/ rio, como ser, sem ser o meio?”.
Em outro poema, A Ismênia, num certo domingo, nota-se a presença da justaposição dos contrários: “Imaginemos que no havido sucede o não poder/ nas das combinadas foi mais de amor que nos concedemos/ imaginemos que em seu amor há sempre amor”. A musicalidade é fruto aqui de esforço e competência de um poeta preocupado com a forma e na maneira como esta interfere na mensagem que deseja transmitir. Não é absurdo, nesse aspecto, observar que o poeta está mais vivo do que o prosador celebrado pela crítica literária. Neste, há, sim, a necessidade de expressão de um desejo e de uma força da natureza que só caberá nos romances em forma simbólica. Aprende-se, assim, que o Lúcio Cardoso prosador só pode efetivamente existir quando o poeta abre espaço para o seu baú de memórias, de imaginações, de ressentimento e da dor “que deveras sente”. Em [A linha da chaga], por exemplo, as palavras que se ajeitam uma ao lado da outra causam essa sensação que não pode ser melhor traduzida que por estupor — por favor, me corrijam aqueles que esperam por um afago de uma hiena: “A linha de chaga/ dardada, febril, erguida em adaga/ contra o anil/ Serei esta praga? Serei. É pena,/ o gesto que afaga/ afago de hiena”.
Uma aproximação da poesia de Lúcio Cardoso passaria longe de ser completa se não mencionasse suas Poesias dedicadas (cuja seleta inclui, originalmente, o já comentado A casa do solteiro), que expressam o afeto que não se encerrava de um poeta que se travestia de prosador. Num soneto dedicado a Jayme Adour de Câmara, datado de 1959, as imagens seguem fortes e drásticas, mas sempre com a perspectiva de alguma ternura: Meu sangue se esvai/ nesta tinha de breu;/ o vermelho é que cai/ sobre o que aconteceu/ Vivido ou dado? Fado,/ desta sorte existe?/ Acontecer é alado.
De forma semelhante, dado o seu grau de complexidade e subjetividade, é preciso comentar aqui a série de poemas “Em tom de…”. Aqui, cores e sensações se misturam, novamente ecoando as múltiplas vozes do mesmo poeta. Assim, se no Em tom de preto, a rima determina a pedra de toque do verso (“No azul, uma águia passa: cor de mim mesmo — pura e devassa”), em outros poemas o que se percebe é a autoconsciência de um dilema existencial que, por sua vez, não deixa perder o viço do ritmo, como se lê num angustiado Em tom de branco: “A cor não existe./ Somos o que inventamos./ Passamos./ Mas o nada insiste”.
A leitura proporcionada pela edição da Poesia completa possibilita a investigação literária e também biográfica de um autor conhecido mormente pela sua prosa. Isso porque a organização permite ao leitor, com o acréscimo das notas de rodapé e dos textos de suporte, não apenas a contextualização de sua obra, mas a força que emana de sua literatura. Nesse sentido, a contribuição do pesquisador é ímpar exatamente porque se fia no método de crítica textual, que resgata os textos conforme sua primeira elaboração. Esse trabalho, que aparentemente só faz sentido para a produção acadêmica, em verdade, acaba por consagrar a premissa fundamental de Lúcio Cardoso tomando como base aquilo que efetivamente foi escrito. Para tanto, o autor obteve acesso ao acervo do escritor localizado na Casa Rui Barbosa. E, a propósito deste acervo, cabe mencionar aqui a outra vertente do poeta que está vivo: Lúcio Cardoso a partir dos seus diários.
Impressões
O principal documento que atesta para o fato de que Lúcio Cardoso era um escritor por excelência está nos volumes do seu diário, também organizados por Ésio Macedo. Acrescidos de mais anotações, que antes permaneciam desconhecidas, Os diários, editados agora pela Civilização Brasileira, dão a oportunidade para que o leitor adquira um percurso de leitura que possibilita descortinar as impressões do autor ao longo de sua produção ficcional. É, sem dúvida alguma, o melhor testamento da obra de Cardoso – a ponto de Ésio Macedo ressaltar que se trata de uma edição anotada, e não crítica, tentando deixar o texto cada vez mais livre de qualquer tipo de amarra com esta ou aquela corrente interpretativa. Tudo isso porque se é certo que a obra de Cardoso é acentuadamente simbólica e confessional, tem-se aqui a chance de obter uma contrapartida a textos que muitas vezes carecem de mais chaves interpretativas, tamanhas são as correntes possíveis a partir de sua prosa e da sua poesia. Assim, os diários servem como uma espécie de guia assinado por um grande escritor sobre a própria produção artística.
Vale a pena ressaltar o real sentido desses Diários de Lúcio Cardoso. Em vez de prosaicas confissões de seus pequenos dramas cotidianos — eis uma percepção banalizada, oriunda, talvez, de nossa própria relação com os textos em primeira pessoa, que falam mais de uma espécie de subjetividade banal do que das informações que realmente interessam —, o que o leitor tem a seu dispor é o itinerário de um escritor, com suas reflexões e comentários da sua trajetória intelectual. Aqui, comentários de leituras, anotações sobre escritores e, principalmente, confissões de sua inquietude, o sentimento avassalador de uma opressão que gerava a produção escrita em doses cavalares.
Esses relatos de um homem atormentado impactam menos pelo escândalo — outra noção bastante em voga exatamente por uma reorganização da idéia de literatura a partir da classificação das minorias; logo, por um critério político, e não estético — e mais pela maneira que o autor escolhe para elaborar suas confissões. Temos aqui um escritor que examina a todo tempo seus dilemas à luz dos seus autores e textos prediletos: Nietzsche, Pascal, o Velho Testamento, além de Rimbaud, Tolstói e Dostoiévski. A qualidade do texto cresce à medida que essas referências extravasam sua subjetividade de forma eloquente e verossímil. Para atualizar a referência: no lugar de um sentimentalismo forjado, de araque, midiático, em Lúcio Cardoso, o poeta está presente também nos diários, representante de uma escola em que as contradições e idiossincrasias do autor deveriam ser extravasadas pelo recurso da ironia e do humor.
Seja em sua prosa simbólica, seja em sua poesia sofisticadamente dramática, seja através das manifestações confessionais, por onde quer que passe, a obra de Lúcio Cardoso deixa marca inegável, um farol para a literatura brasileira de ontem e de hoje. Escritor habilidoso e dono de recursos estilísticos acima da média, Cardoso monopolizou as atenções sobretudo graças à sua prosa carnavalescamente erigida nas imagens, na metáfora e nas estilizações. Felizmente, o leitor tem agora a oportunidade de perceber que esse recurso não era um exercício de sofisticação, mas se tratava de sua poética, ou seja, da forma como o autor concebia sua produção literária, atendendo às expectativas de uma agenda que tinha como norte a poesia. Se fosse, então, possível uma qualificação por ordem de relevância, seria possível afirmar que a poesia tem tanta importância para a compreensão do significado da obra de Lúcio Cardoso quanto o celebrado Crônica da casa assassinada. Em tempo: o leitor não perde com isso, apenas ganha.
Cem anos depois do seu nascimento, o poeta Lúcio Cardoso está vivo.