As memórias e os sonhos são complexas extensões da realidade. Ambas de total autoria de nosso cérebro, muitas vezes se mostram com uma clareza incrível, mas escondem mistérios, criam armadilhas, brincam demais com o limite entre o que é de nossa imaginação e o que aconteceu, ou poderia acontecer, na realidade. Precisamos sempre olhá-las com uma noção crítica bastante apurada para que não sejamos enganados.
Ter consciência desses labirintos que nossa consciência cria em seus diferentes tipos de atividade é fundamental para tentar ler O sonâmbulo amador, mais recente romance do pernambucano José Luiz Passos, sem ser enganado pelos sonhos e memórias — que, registrados em quatro cadernos, compõem a obra — de Jurandir. Uma das principais tarefas do leitor é identificar o que aconteceu no plano real e o que aconteceu no plano onírico ou imaginativo do protagonista. Provavelmente a riqueza de detalhes, a coerência, a razoabilidade e a verossimilhança sejam bons parâmetros para determinarmos o que se passa apenas na mente do personagem ou além dela.
Apesar de um começo aparentemente bastante lúcido, com o seu desenrolar a história vai ficando paulatinamente mais confusa e fragmentada, com sonhos e memórias — algumas absurdas e inverossímeis — que se confundem com a realidade. Da mesma forma, mas em direção contrária, com o avançar das páginas o jogo se inverte, resultando em um retrato muito bem construído da confusão mental de um homem que, aos poucos, perde e depois recupera o domínio de discernir a fantasia da realidade.
Mas o que leva Jurandir a tamanha confusão? As tragédias. Os dramas de Jurandir impulsionam toda a história. O maior deles é ter que conviver com a perda de André, o filho adolescente. Aliás, se tivesse que definir O sonâmbulo amador em apenas uma frase, diria que é um romance sobre o sofrimento para toda a vida de um pai que perde um filho jovem, com quem lutava para se entender.
Só que há mais mazelas na história de Jurandir: a falta de uma estrutura familiar, a frustração por ter uma vida sem brilho — sequer conseguiu “tirar” o curso técnico em agronomia que sonhava fazer quando jovem —, o joelho destruído na infância que o deixou permanentemente manco, a subordinação ao (ex?) amigo rico, as relações com suas mulheres (Heloísa, sua esposa, mãe do filho morto e por quem demonstra seus mais sinceros sentimentos e suas lembranças mais significativas, e Minie, uma amante de personalidade forte, bastante sensual — as duas tão marcantes quanto Ana Corama, de Nosso grão mais fino, o primeiro romance de Passos).
Os traumas, desgostos e decepções do personagem são de suma importância para entender por que o protagonista teve a atitude que o levou ao hospital psiquiátrico de onde escreve seus cadernos. Entretanto, os problemas não aparecem de maneira fácil como nesta resenha. No livro, tudo o que é revelado é feito vagarosamente, como se os feixes de luz atingissem aos poucos diferentes partes de um objeto do qual, a princípio, podemos ver apenas nuances, mas com uma iluminação que cresce vagarosamente, suas cores e sua beleza vão aparecendo — o que exige uma boa dose de atenção na leitura da obra.
Na clínica psiquiátrica Jurandir encontra valiosos aliados para que não passe a viver apenas em um mundo criado por sua própria mente. Madame Góes, a administradora do lugar, e Ramires, o enfermeiro um tanto doidão, ajudam o protagonista a se sentir importante, principalmente incentivando-o a realizar pequenas tarefas cotidianas e auxiliando-o a tentar cumprir uma missão que deixara pendente ao ser internado.
Por lá, o protagonista também conhece o doutor Ênio, médico que pede para que o personagem passe a registrar diariamente todos os seus sonhos, memórias e atividades. Além de ajudar no tratamento, a escrita serve como elo entre Jurandir e tudo o que deixou do lado de fora da clínica. “Sinto muita falta das pessoas e, enquanto escrevo, fico revendo os assuntos que deixei pendentes e que me perseguem à noite”, relata.
Na frase resgatada acima, há uma clara indicação do quanto os sonhos — que se apresentam como se acontecessem em flashs, com passagens abruptas, frases curtas, poucos detalhes, confusos, não da maneira como os sonhamos, mas da forma com que costumamos tentar contá-los quando estamos acordados — fazem parte da rotina de Jurandir. É neles que o protagonista extravasa e o inconsciente se manifesta com intensidade. O mundo onírico é um escape para as tragédias que o protagonista não superou, apenas suprimiu — e que vaza cada vez mais para o consciente. É nesse universo que Jurandir se idealiza: vira uma pessoa importante e querida, projeta no sogro Constantino uma figura paterna que lhe faltou na vida, torna-se um valentão que adora usar um revólver prateado calibre trinta e dois.
Recursos
Se o enredo e a forma como ele é explorado já fazem de O sonâmbulo amador um grande livro, as qualidades literárias do autor tornam a obra ainda mais significativa. O sofisticado estilo de Passos, com parágrafos bem construídos, ritmo preciso e domínio sobre a trama, faz com que o autor atinja uma estética primorosa, invejável.
Apesar de jovem — nasceu em 1971 —, Passos apresenta uma escrita bastante madura e segura. Impressiona, por exemplo, a habilidade para trabalhar com a história em diferentes níveis temporais e psicológicos sem causar confusão ou prejuízo ao leitor. O domínio das técnicas e recursos literários também merece ser salientado. Eis um modelo simples, presente em um dos ótimos diálogos da obra:
Jurandir, eu não quis ser indelicada com você. Falei aquilo só por falar, ela disse.
Você falou. Como foi? Que eu tinha perdido a coragem?
Falei que antes você era mais dado. Que saía com a gente. Só isso.
Que nada, Minie. O que é que há? Pensa que eu sou feito suas colegas, para ficar rindo de besteira? Você é muito engraçada.
Como assim, ela perguntou. Hem, Jurandir?
Você às vezes não liga para nada. É muito fácil, eu disse, e então calamos nisto
A utilização da indagação “Como foi?”, como se Jurandir quisesse enfatizar ainda mais o que Minie havia dito; o comentário “você é muito engraçada” que vem no final de uma fala, após duas perguntas provocativas, tal qual um desabafo inesperado para o momento da discussão; e o “Hem, Jurandir” de Minie, que pressiona o personagem com uma pergunta e a cobrança pela resposta dentro da mesma fala, dão vida e verossimilhança ao diálogo.
Passos também sabe utilizar detalhes que parecem desnecessários para revelar a personalidade de seus personagens.
(…) fui e acendi a luz do cômodo. Vi a cama, com as cabeceiras encostadas contra o guarda-roupa, uma mesinha nova ao lado da janela e, já em cima dela, o abajur com a manga de vidro enroscada em volta de uma lâmpada transparente, amarela, das que gosto de usar. Até ali não tive qualquer reação. O que experimentei depois foi curioso como um golpe de conforto. Como se minha mulher tivesse posto um ponto final na questão que vinha nos causando tanta confusão e remordimento. Passei para lá naquela mesma noite, cuidando de organizar alguma coisa do trabalho e também as minhas próprias anotações.
Notem que quando o personagem acende a luz do quarto, vê apenas o que está diante dos seus olhos, mas quando percebe o abajur com a manga de vidro enroscada em volta de uma lâmpada transparente amarela (e não um simples abajur, como a cama, o guarda-roupa e a mesinha), das que ele gosta, e provavelmente o acende, é como se o personagem voltasse para si mesmo e encontrasse o ponto final do problema que havia tido com sua mulher — que soube montar o espaço com uma sutileza que agrada o marido, que gosta de ser paparicado.
Para não ser só elogios — o que não seria um problema —, o escritor poderia usar os verbos dicendi com maior parcimônia. Vejam este exemplo (os grifos são meus):
Com a porta aberta pude ouvir o falatório. Ela queria saber se eu precisava de ajuda para descer. Falei que não.
A senhora estava aí fazia tempo?
Que pergunta, ela disse.
Só por curiosidade, insisti.
Ficamos em silêncio.
Hoje, não, ela disse, e passou outra vista pelo meu quarto.
É mesmo imprescindível a utilização do “ela disse” nas duas situações? Ou tal repetição foi proposital? Acredito que o segundo seja mesmo de suma importância, principalmente por ligar a fala à ação que a sucede, mas se o primeiro tivesse sido suprimido, o texto continuaria funcionando muito bem. Não seria exigir muito do leitor que inferisse quem estava dizendo “que pergunta”.
Esse pequeno problema, porém, não causa prejuízo algum ao excelente O sonâmbulo amador, obra das mais marcantes da literatura brasileira contemporânea, na qual Passos apresenta uma linguagem ainda mais redonda do que em Nosso grão mais fino. É o tipo de livro que o leitor continua lendo simplesmente por ser bom, não por querer descobrir algo ou chegar a algum lugar — ainda que descubra, ainda que chegue.
LEIA COLUNA DE RAIMUNDO CARRERO SOBRE O sonâmbulo amador.