Insônia é um bicho terrível. Um monstrengo que te perturba toda a noite. Ronda sua cama, sua sala, sua cozinha. E como é um bicho malvadão, que gosta de torturar, só te deixa em paz quando você chega ao trabalho. Mas faz questão de deixar suas marcas bem roxas sob os olhos caídos e avermelhados escondidos atrás de óculos escuros.
Não há uma cura instantânea para ela. Mas há alguns remédios paliativos. Alguns momentos de alívio enquanto o sono não desmorona o corpo. Ler um livro enfadonho pode apressar o sono. Mas também pode dar uma raiva danada e piorar a situação. Então, dar uma boa e alta gargalhada quando perceber que o sono não vai chegar tão cedo pode ser uma boa. É uma forma de enganar o bichão. Os programas da madrugada nas tevês abertas podem ser uma boa, nesse caso. Quanto mais tosco, melhor. Pode ser, por exemplo, aquele comandado por um cara atarracado e baixinho, com um porrete na mão, apresentando shows de strip-tease com mulheres que, para desgosto dos homens, não se parecem nem de longe com as garotas da Playboy. Nem se eles beberem dez drinks dos que o apresentador diz serem os melhores da madruga no bar em que as mocinhas se apresentam.
Há ainda as reprises de programas de auditório. Os de final de ano são especialmente hilários. Aqueles em que o apresentador comanda o “show de réveillon” bebendo champanhe. Em todos os blocos do programa. E, no final das contas, tenta beber no microfone e cantar na taça vazia, dançando e exibindo sua barriguinha nada em forma estrangulada entre os botões desalinhados de um colete de couro branco. Não há como segurar a gargalhada.
E o melhor é que esses programas podem servir como excelentes assuntos nos momentos de intervalo na empresa em que o insone trabalha. São temas para as famosas “conversas de bebedouro”. Ou de cafezinho, como queiram. Há muitos desses por aí, embolados entre os pastores e seus sermões televisionados e os vendedores de jóias em leilões. São programas esdrúxulos alimentados pelos coitados que não conseguem cair nos aconchegantes braços de Morfeu. Feitos com baixo orçamento, conteúdo zero, cenário de quinta mão, em horários pagos, provavelmente a preço de banana.
Em Assombros urbanos, o escritor paulista Dionisio Jacob inventa um desses programas. Não trata do assunto insônia, porém. Na verdade, é uma crítica a esses programetes sem sentido que tomam conta da tevê. E que, infelizmente, não têm se restringido aos horários próprios — aquele dos insones, para ajudá-los a esquecer que não conseguem dormir.
O nome do programa é Assombros na madrugada. Mas não é de terror, não. Num cenário restrito a uma poltrona mais velha do que o indiozinho da Tupi, um apresentador (Lima) tenta entrevistar pessoas que tenham histórias bizarras para contar. Histórias sensacionais. Por exemplo: uma senhorinha que acredita ser uma fada (como a Sininho ou uma das que transformam farrapos em um vestido de baile acompanhado de sapatinho de cristal), um técnico da vigilância sanitária que jura de pés juntos que há um sanduíche mutante que quer devorar as pessoas que comem em lanchonetes, um anjo caído, o Rei do Mundo, e até um senhor que leva para onde quer que vá o seu melhor amigo, Sebastião, tragicamente transformado em um sapato velho. Sim, um sapato, “uma coisa meio esquecida de si mesma” (p. 143).
É a década de 80, o programa passa às duas da matina. E Lima tem certeza de que ninguém o assiste. Por isso, chama a “fada”, um pouco roliça, de gorda; ri do técnico da vigilância sanitária enquanto pede para que as pessoas não comam sanduíches com alface (é ali que o bicho pega, segundo o entrevistado); humilha o Rei do mundo e desafia o amigão do Sebastião, aquele que virou sapato. Não está nem aí, já que a audiência é traço (nem mesmo a família dos entrevistados devia assistir ao Assombros na madrugada). Era feliz assim, o Lima. Mas ele não contava que, em alguns lugares, pessoas que não conseguiam ou não podiam dormir, entre um zap e outro no controle remoto, acabariam se fixando naquele freak show. Sim. Os insones começaram a dar audiência ao programa. Um, dois, três pontos no Ibope. Nada mal para uma emissora de pequeníssimo porte.
As entrevistas começaram a ser comentadas nas panificadoras e nos botecos. Nos ônibus e nos salões de cabeleireiros. Chegaram aos jornais especializados e, pronto, a audiência foi para a casa dos dois dígitos. Aquela besteira virou um programa de família. Pessoas colocavam seus despertadores para 1h50 para conferirem qual seria a loucura do dia. Ora, com boa audiência o cenário tem de melhorar, o tempo tem de aumentar e os entrevistados têm de ser mais bizarros do que nunca. Isso vende! Até anunciantes compram a idéia.
Essas porcarias se proliferam pelos quatro cantos da Terra. No país dos Bush, por exemplo, há um programa, atualmente exportado por todos os continentes, em que um bando de desocupados resolveu filmar aquelas besteiras que só os “piás pançudos” (expressão que aqui em minha terra significa algo como bobalhões, “sem-noção”, e não se restringem necessariamente aos meninos) fazem e acham graça. Por exemplo: grampeiam folhas nas próprias costas, tomam litros e mais litros de leite com achocolatado em um ritmo alucinante até vomitar tudo — e por todos os buracos do corpo que se possa imaginar — sob o olhar e as gargalhadas de outros tantos piás pançudos, mergulham em esgotos e fazem piercings ligando uma banda dos glúteos à outra. Ganham milhões! Lixo cultural não é exclusividade tupiniquim, afinal.
Por aqui, há um festival de bizarrices em horário vespertino. São apresentadores que manipulam uma platéia de pobres coitados, trazendo histórias insanas que expõe seus convidados ao ridículo extremo — mesmo que muito bem disfarçados por uma peruca, um chapéu panamá, voz de pato e óculos Ambervision —, fazendo testes de paternidade, ou dando porrada numa mesa enquanto reclama da violência nas cidades.
A forma como Jacob usou para falar sobre esse assunto não poderia ser mais acertada. Mesclando as interessantíssimas entrevistas com as crises de consciência de Lima (ele não queria participar daquele show de horrores, mas, ao mesmo tempo, precisava do emprego para pagar o apartamento que comprou em financiamento no conjunto Saturno), o livro prende a atenção de todo tipo de leitor. Daquele que quer se divertir (especialmente com as entrevistas e com a ranhetice de Lima), daquele que procura críticas ao governo, à TV, ao Brasil etc (quando mostra a transformação do programa), e daquele que analisa semioticamente todas as obras literárias, pretendendo, através dos símbolos lingüísticos usados para a construção das frases, adivinhar o que o autor quis dizer (quando escreveu, por exemplo, a já citada frase: “um sapato é uma coisa esquecida de si mesma”). Simples, divertido, irônico, criativo. Uma leitura envolvente e de fácil digestão. Para ler com ou sem insônia.