Loucura cotidiana

Coletânea de contos de loucura apresenta o homem, suas misérias e suas capacidades de transgressão, transcendência e superação
Illustração: Osvalter
01/12/2007

A coletânea Os melhores contos de loucura, organizada por Flávio Moreira da Costa, reúne 34 narrativas que tematizam, ou melhor, dramatizam a loucura sob diferentes abordagens e pontos de vistas. Estão dispostos em quatro eixos: loucura e cotidiano, loucura e drogas, loucura e clínica, loucura e testemunho. Da mesma forma que este conjunto de texto estrutura-se sobre uma constelação de abordagens, um leque bem amplo de autores deixa neles sua assinatura, como registro de uma obra, na maioria das vezes marcada, cada uma a seu modo, pelos abismos que transitam entre tênues fios da vida e da morte. Esses nomes vão desde famosos escritores da modernidade ocidental, de várias nacionalidades, até a presença de alguns menos conhecidos, mas tão importantes e valiosos quanto os demais.

Com exceção do texto de La Fontaine, que figura na coletânea quase como uma epígrafe, os demais são produções que representam um contexto histórico e cultural do século 19 e início do século 20. Pode-se conferir isso, facilmente, através da marcação cronológica do tempo de vida de seus autores.

A loucura é o fio condutor e unificador do conjunto de textos, muito embora, como já afirmado anteriormente, apresente-se com uma multiplicidade de enfoques. Isso, inegavelmente, impõe uma leitura rica de questionamentos e, conseqüentemente, de buscas de novos sentidos. Ou seja, sob a dramatização da loucura, atuação de seus personagens tomados por ela, ou mesmo alienados de sua condição de “loucos”, as temáticas, propriamente ditas, de cada texto precisam ser reavaliadas a cada leitura. Isso porque, por diversas vezes, a loucura apresenta-se como um pré-texto para outras discussões cujo eixo é, invariavelmente, o homem e sua condição como tal, suas misérias e suas capacidades de transgressão, transcendência e superação.

O primeiro bloco de contos — Loucura e o cotidiano — reúne autores como Anton Tchekhov, Qorpo-Santo, Horacio Quiroga, Luigi Pirandello, entre outros. Em Lenz, Georg Büchner cria um narrador em 3ª pessoa que se reporta a um período importante da vida de Lenz (1752-1792), seus delírios e crise paranóide-esquizofrênica. Segundo J. Guinsburg e Ingred Koudela, o conto tem um caráter pioneiro, pois se apresenta como o primeiro ou um dos primeiros textos da literatura alemã que descreve a crise em seus detalhes. A referência a um diário de um religioso que acolheu o personagem em suas viagens, garante a verossimilhança da trama e o relativo afastamento do autor dos fatos que pela distância do tempo não poderia testemunhar. Angústia, medo, pânico e abismos vão construindo o protagonista e “documentando” a loucura e seus desatinos.

Foi tomado de um imenso pavor diante de seu estado no dia anterior, encontrava-se agora a beira do abismo, onde uma volúpia alucinada o impelia a olhar sempre de novo para baixo, e a repetir esse tormento….

Olhos mortos de sono, de Tchekhov, Judas, de Miguel Sawa, e Vera, de Villiers de L’isle-Adam apresentam figuras comuns do cotidiano envolvidas em ações diferentes, todas testadas e exacerbadas em situações limites: o sono da babá, a opressão dos patrões e do choro do bebê, o amor e o luto de um marido, o homem que encontra Judas e se exaspera em convencer os outros de sua verdade. Em A galinha degolada, de Quiroga, Um cavalo ao luar e Male di luna, de Pirandello, João Urso, de Breno Accioly, e O crime perfeito, de Samuel Rawet, a partir de situações cotidianas sociais e familiares, o homem comum vivencia a sua loucura na relação direta com sua animalidade mais primitiva. Vida, morte, delírio, mentiras e verdades entram em conflito e explodem em surtos, assassinatos reais ou imaginários, ou a mais louca reconciliação com a natureza.

Na segunda parte — Loucura e drogas , as narrativas se estruturam problematizando a relação dos efeitos químicos e da dependência dos vícios com alucinações, destruição, e linguagem onírica e delirante da loucura. Alguns contos se aproximam do terror ou do fantástico em sua estrutura e trama. Exemplo disso é Inferno artificial, de Horacio Quiroga, cujo personagem principal, tentando se livrar do vício, busca a morte. Quando pensa, enfim, ter se livrado da drogam, é surpreendido com um retorno, depois de morto, ao mundo dos vivos: “— Cocaína, por favor, um pouco de cocaína!”

Em Loucura e clínica, o conjunto de textos traz uma densidade muito grande de discussão e muito curto é este espaço para uma leitura de fôlego. Entretanto, é importante destacar os nomes de escritores que participam com seus textos desse bloco: Nikolai Gogol, Edgar Alan Poe, Charles Dickens, Guy de Maupassant, Machado de Assis, entre outros. Discutem a relação da loucura com os cuidados clínicos em manicômios, seus tratamentos, o desespero do isolamento e a necessidade de registro da experiência absurda e traumática. Alguns dos textos carregam na dramaticidade, outros, mediados pela ironia, apostam na postura crítica, portanto racional dos tratamentos clínicos e da relação de tudo isso com a sociedade em questão. Exemplos disso são os contos O sistema do doutor Alcatrão e do professor Pena, de Allan Poe e O alienista, de Machado de Assis. Curioso observar que na biografia da maioria dos autores há uma referência a algum tipo de loucura vivenciado em sua existência. Só Machado de Assis se manteve imune à relação vida, obra, loucura. Estaria a sua maior loucura escondida sob a capa da mais impecável racionalidade crítica? Quem saberá?

Ainda nesse grupo de textos destacam-se Dentro de um espelho, de Valiéri Briússov, cuja protagonista se vê às voltas com uma busca permanente de identidade, e O quadrado de Joana, da brasileira Maura Lopes Cançado. Neste conto, a personagem catatônica busca a formulação de uma linguagem própria para sua loucura e se debate entre o silêncio e seus vazios e a infinitude de vozes que se levantam na busca de expressão e sentidos. “Está só, no quadro ainda infecto de moscas e serpentes ondeadas. Dançam ao seu redor e Joana não tem palavras…” Joana “luta para manter-se enquadrada na hora, o pensamento liso à espera de forma de expressão: uma nova linguagem”.

Testemunhos
O último grupo, Leitura e testemunho, reúne depoimentos de Antonin Artaud, cartas de Van Gogh e até um capítulo de um romance inacabado do nosso Lima Barreto. O cemitério dos vivos, que se pretendia texto ficcional, poderia ter sido incluído no terceiro bloco. Teria sido interessante, ainda, a inclusão do Diário do hospício, nesta sessão Leitura e testemunho. Este diário consistiu-se no registro fragmentado de anotações dos dias de internação de Lima Barreto, que depois seria ficcionalizado no romance que não foi concluído (apenas três capítulos foram escritos). Provavelmente, a morte prematura interrompeu o projeto da obra. A comparação entre anotações do alcoólatra considerado e aprisionado como louco e os escritos, daí organizados em narrativa ficcional, do escritor é um material riquíssimo de leitura e de discussão da relação, loucura-escritura e subjetividade.

O amor e a loucura, de La Fontaine, o primeiro conto da coletânea, discute a relação entre amor e loucura de maneira suave e inexorável. A loucura está condenada a guiar o amor por tê-lo cegado em suas violentas brincadeiras. Os fatos falam por si e o laço de dependência está firmado para sempre, na perspectiva atemporal do mito. O conteúdo dramático da narrativa movimenta-se, de certa forma, dentro da perspectiva de Erasmo de Rotterdam (1465-1536) em seu Elogio da loucura. Neste elogio, a loucura é personagem que com voz própria vai se insinuando e discutindo sua presença e importância na vida dos homens nos seus mais variados aspectos. Ela se coloca como motor imprescindível e companheira fiel do homem desde a vivência do amor, até a das demais paixões que o mobilizam e o caracterizam em sua humanidade. É uma sátira filosófica que estabelece uma crítica contundente ao momento histórico vivido e, em especial, ao universo religioso dominante. Teve sua importância e deixou suas marcas de continuidade em outros escritos. A abordagem, mediada pela ironia, levantava apenas um aspecto da loucura inerente aos homens, aquele que dizia respeito ao seu caráter inocente e alienado de razão, não constituía ameaça direta.

A partir do momento em que razão e não-razão passaram a se contrapor antagonicamente, o “Penso, logo não sou louco” cartesiano impõe o silêncio. O louco era sempre o outro, o objeto de análise e estudo da racionalidade positivista. Segundo Foucault, “a loucura clássica pertencia às regiões do silêncio. Há muito tempo se havia calado essa linguagem de si mesma sobre si mesma que entoava seu elogio”. Depois da voz satírica entoada sobre si mesma e seu elogio, a loucura foi submetida ao silêncio. Apesar de nos séculos subseqüentes (17 e 18) muito ainda iria se falar sobre ela, todo esse discurso desenvolvia-se de fora, sob o ponto de vista médico, cartesiano, da ciência positiva. Ou seja, a loucura, “em si mesma, é coisa muda: não existe, na sua era clássica da literatura da loucura, no sentido em que não há para a loucura uma linguagem autônoma”, uma possibilidade de se dizer por si e para si.

Os melhores contos de loucura presenteiam-nos com uma coletânea de textos que documenta um novo momento na história da loucura, no qual esta adquire, ou melhor, experimenta o exercício de uma linguagem própria que radicaliza o questionamento de velhas verdades e discussões. Razão e não-razão, o sujeito racional e seu outro, sãos e loucos, luz e sombra, gritos e silêncio, sonhos e realidades perdem seus estatuto de polaridades excludentes e estabelecem uma relação dialógica de complementaridade, num momento em que a subjetividade aflora e se impõe enquanto manifestação estética legitimada e capaz de colocar em questão o próprio homem tanto em sua natureza física e animal, quanto cultural e social.

Daí, cada texto ficcional ou confessional apresentado traz uma breve apresentação biográfica de seus autores e seu contexto de atuação e relação com sua loucura particular de sujeito no mundo. Antes de entender isso como uma crítica impressionista que justifica o texto pela vida do autor, é importante a sinalização que precisa ser feita da relação da obra de arte com a loucura e sua linguagem. Esta passa a expressar um sujeito lírico inquieto a se manifestar, assumindo um poder e uma autoridade no que expressa, delegados pela tomada de consciência de sua própria loucura. Esta deixa de ser simples alienação da razão e passa a fazer parte, de alguma forma, da racionalização de uma não-razão em vários domínios. Não é mais possível isolar os atingidos pela loucura nas Naus dos Loucos da Idade Média, ou interná-los nos Hospitais Gerais com os demais miseráveis, leprosos e indigentes das grandes cidades, ou tomá-los como objetos de estudo dos doutores da racionalidade, imunes a sua influência. A loucura, nesse contexto, passa a dizer respeito a cada homem em particular e a humanidade no geral, rompe o silêncio ou negocia com o seu vazio e seus abismos a experiência de uma linguagem.

Segundo Derrida, apesar da evidente relação entre o sujeito autor e a escritura, é importante considerar que “constituindo-o e deslocando-o ao mesmo tempo, a escritura é outra que o sujeito, em qualquer sentido em que seja entendida. Ela não poderá jamais ser pensada sob sua categoria…” Cada texto precisa ser lido dentro da categoria de escritura que, apesar de possibilitar a constituição do sujeito autor e do sujeito leitor, desloca-os de sua condição particular para levantar generalizações e novas discussões.

Especialmente, a escritura literária, enquanto categoria de arte é artifício, portanto, invenção, da qual a linguagem da loucura não tem como fugir e, pelo contrário, nela se insere, potencializando suas capacidades de expressão. A leitura do livro organizado por Flávio Moreira da Costa é de extrema importância para se compreender um conjunto de questões que dizem respeito não apenas à história da loucura nossa de cada dia, mas da nossa história social e cultural do século 18 e início do século 20, nos quais a modernidade se afirma. Dentro dessa linha, fica a necessidade de continuidade como sugestão. Não seria o momento de um Os melhores contos de loucura II, que selecionasse contemporâneos com produções do final do século 20 e início do século 21?

Os melhores contos de loucura
Org. Flávio Moreira da Costa
Ediouro
399 págs.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho