A geração de escritores nipônicos pós-Segunda Guerra notabilizou-se por um enfoque mais intimista no ser humano, especialmente no que diz respeito à descoberta de si e do próprio erotismo. É o caminho trilhado já de início por Yukio Mishima cujas Confissões de uma máscara tratam justamente da dualidade sexual tortuosa de seu protagonista.
Sintomático inclusive nelas uma citação à Sodoma e Gomorra, do francês Marcel Proust, obra que, a seu modo particular, trata das mesmas questões, com estética literária semelhante (guardadas as individualidades criativas). Sente-se assim que a literatura ocidental de cunho intimista exerceu relevante influência nos escritores japoneses, de Mishima a Yasunari Kawabata, cujo romance Beleza e tristeza é objeto da presente análise.
Não que ambos, e outros mais, limitassem-se a esse enfoque. Kawabata mesmo, em seu A gangue escarlate de Asakusa, tece uma narrativa de olhar mais voltado ao social, nas estratificações presentes na sociedade japonesa em franco desenvolvimento e ocidentalização após as chagas da guerra. Contudo, a tendência estética oposta a essa literatura parece dar o tom preponderante a essa geração de escritores, os celebrizando, sendo o auge desse processo a premiação do Nobel de Literatura justamente a Kawabata.
Beleza e tristeza não deixa de seguir o caminho aludido inicialmente, contudo façam-se as devidas distinções: o tema do erotismo, mais especificamente o homoerotismo, se na literatura proustiana e em grande parte da ocidental é tratado de forma um tanto velada, como que sufocada pela moral católico-cristã que prepondera na parte de cá do mundo, não obstante a explosão de cenas em que o sadismo e voyerismo dão o tom, na literatura oriental, por motivos obviamente culturais, as coisas se dão de forma diversa.
Tanto o erotismo como o homoerotismo são elementos de destaque na literatura nipônica sem prejuízo da ideia de recato, que é senso-comum da visão ocidental quanto à sociedade japonesa. Geralmente trabalhados com expressividade e ornamentação visual, seja com discrição ou com as tintas fortes do sadismo e voyerismo, tais elementos são desenvolvidos de forma distinta do que se costuma ver na literatura ocidental, e não deixam de ser o eixo central de Beleza e tristeza.
Muitas camadas
A narrativa propõe uma história simples na superfície, mas que oculta muitas camadas. Oki é um escritor de meia idade cujo maior sucesso ficcional trata justamente de sua aventura extraconjugal passada com uma jovem de dezesseis anos, quando ele era mais jovem. Sua amante, Otoko, com o passar dos anos tornou-se uma estoica pintora de 40 anos, ainda bela, mas longe da jovem que um dia foi deflorada por seu ex-amante por quem ainda resguarda uma paixão pungente. Mas os destinos de ambos já estão traçados, e não podem tornar a se cruzar. Descrito assim, o foco da obra parece ser a narrativa de um amor impossível que recalcitra no tempo e espaço, tendo como testemunha o leitor expectante, torcendo pelo desfecho feliz desse enlace amoroso. Mas é um equívoco. Um terceiro elemento se junta a essa equação, complicando-a, complexificando os rumos desses dois destinos, fadados a não mais se encontrarem: Keiko, a jovem e fascinante discípula de Otoko.
As peças assim organizadas trazem à obra alguns temas que são trabalhados com esmero: a solidão, o remorso por escolhas tomadas, a arte e sua presença na vida das pessoas, além da capacidade dela de cristalizar momentos da existência e suas sensações etc.
Oki é um homem marcado por suas escolhas e realizações. Sua obra Uma garota de dezesseis anos logrou não apenas traduzir artisticamente e compactar o momento da relação mais importante de sua existência, como também lhe trouxe um sucesso inesperado, sucesso esse que lhe deixa um gosto amargo: sendo essa uma obra de início de carreira, é como se tudo que fizera posteriormente não se nivelasse com ela, ou alcançasse a mesma relevância. Tem-se aqui uma nuance artisticamente trabalhada, pois é como se o ápice da existência do vívido escritor estivesse aprisionado naquela relação de outrora.
Esse marco de sua vida é a pedra incontornável não só para ele, mas para aqueles ao seu redor. Isso é verdade especialmente no que toca à Fumiko, sua sofrida esposa, que é também a datilógrafa por quem todos seus manuscritos passam. Especialmente doloroso para ela é ter transcrito o original, conhecendo assim as entranhas daquela relação e, mais tarde, ironicamente, usufruir financeiramente dos frutos de seu sucesso, não sendo exagero dizer que a vida de sua família é sustentada pelo êxito daquela realização.
Otoko, por sua vez, vive às voltas com as escolhas que fez, e a maneira como elas elidiram as que recusou: casar-se e constituir uma família. Embora pintora reconhecida, a maior parte de sua notoriedade vem do fato de ser o modelo para a personagem do livro de Oki, o que a manieta ainda mais a seu passado. Também sua arte está consideravelmente comprometida com ele: o grande projeto que nutre é compor um quadro que eternize não apenas a memória de seu filho natimorto, mas todo o pesar sentido por sua perda.
Sua solidão advém também da perda de sua mãe, única testemunha da paixão insensata que nutrira quando jovem impetuosa. Contudo, acaba por constituir uma família substituta com uma misteriosa jovem que, em certo sentido, é um duplo de seu eu passado, e vem a ser a personagem mais impressionante do livro: Keiko.
Muito e pouco é dito sobre essa jovem de dezenove anos, aspirante à pintora: sem pais, praticamente expulsa do convívio de seus tios por “mimar muito” seu pequeno primo, Keiko toma contato com a figura e obra de Otoko, e implora para ser por ela aceita como discípula.
O mútuo convívio ganha cores ambíguas. A ligação ora assume tons maternais, ora homoeróticos, em sutis alusões:
— Mestra! Mestra! — Keiko estava sentada e procurava acordá-la. — Estava tendo um pesadelo? Parecia atormentada…
— Sim… — Otoko arfava; Keiko se inclinou e lhe afagou o peito (…)
— Foi um sonho bom. Mestra, estou certa que sim. Keiko cobriu-lhe os olhos com uma das mãos. Com a outra, pegou um dos dedos de Otoko, colocou na boca e mordeu.
Mas há muito mais em torno dessa figura com inclinações masoquistas, que declara querer “vingar sua mestra”. Não à toa, o estilo que Keiko adota em sua arte pictórica é o abstracionismo: é próprio dessa arte suscitar as mais diversas impressões e interpretações, resguardando em si algo que sempre permanece a certa distância do espectador.
Esse drama se desenrola num Japão pós-Segunda Guerra em franco processo de modernização, aberto à influência e ao povo do Ocidente, e sendo por ele transformado:
Arashiyama, que costumava ser tumultuado com os grupos de turistas que visitam o local da primavera ao outono, tinha uma atmosfera completamente diferente (…) Estava agora em sua forma original, silenciosa.
É, contudo, o Japão que se mostra ainda hoje ao ocidental, exótico em seus costumes e sua vegetação nativa cheia de flores de beleza inigualável que, nessa obra, assumem papel essencial por conta da pintura, mas também pelo que revelam do interior dos personagens. Perceba-se inclusive a presença de tais elementos até nos títulos dos capítulos: Jardim de pedras, Lótus em meio às chamas etc.
Estilo sereno
Kawabata é dono de um estilo sereno, de grande apuro imagético, descritivo, mas sobretudo fluente e de uma singeleza enganadora. Como seu enfoque é o interior dos personagens, é preciso ler sua prosa com atenção, atentando-se às relações estabelecidas entre os mais diversos elementos.
O ritmo de sua escrita vai revelando aos poucos, às vezes de súbito, novos elementos constitutivos da trama, dando uma nova perspectiva ao leitor. A tradução tem o cuidado de preservar tais pontos, e a edição traz cuidadosas notas de rodapé para familiarizar o leitor a uma cultura tão singular.
Beleza e tristeza, no fim, traz doses generosas de ambos os elementos, e constitui leitura profunda e agradável.