Para situar: em Somos todos iguais nesta noite, Marcelo Moutinho escolhe o óbvio para não despencar pelo lugar-comum. Vantagem? O lugar-comum é pura repetição, cópia; o óbvio às vezes permite algum tempero, logo…
Marcelo Moutinho ambienta seus contos no Rio de Janeiro e o lugar-comum estaria a sua espera caso preferisse bater nas teclas gastas e desafinadas da violência e das belezas naturais — nenhuma das duas merece tanta fama, mas para o deleite e emoção dos leitores, ele prefere o óbvio, as relações humanas, ou melhor, a condição humana e suas mazelas. Não nos equivocaríamos caso preferíssemos dizer que grande parte dos contos de Somos todos iguais nesta noite são honestos recortes do tão falado rito de passagem. Só que com um detalhe que faz a diferença, o autor não opera o corte abrupto, o tal rito é demorado, tem suas nuances e não despreza sofrimento. Não que seja defeito, mas Moutinho conduz seus contos para o anticlímax. Se acaba frustrando expectativas, problema do leitor. Quem mandou imaginar finais mirabolantes, devidamente condicionados pela literatura da repetição? A tal da surpresa para fechar o conto com um golpe de mestre. Caso soe falso, pouco importa, o que vale é o impacto. Trocando em miúdos: a imprescindível violência. O nefasto lugar-comum para o qual, de longa data, caminha a quase totalidade de nossos contistas. A nova geração, sem dúvida, marcha unida.
Marcelo Moutinho não se deixa levar pelo brilho do sangue, dos ônibus incendiados, das crianças arrastadas, não busca escandalizar utilizando-se da escatologia e da tragédia familiar. Aos apressados, e como temos apressados!, pode até parecer alienação um escritor que passe ao largo das notícias de jornal. Moutinho optou por outras possibilidades bastante plausíveis, o amor, a ternura, a infância e suas tonalidades.
Deixou de lado o sambista, a mulata, o traficante, o drogado, o bicheiro, não descreveu a subida pro Cristo Redentor, tampouco satanizou moradores da Barra da Tijuca ou glamourizou a Rocinha. Optou por vidas sem sobressaltos, protagonizadas pelos reféns da rotina.
Com a sua licença, paciente leitor, aproveito a deixa e peço atenção para o livro A solidão do diabo, de Paulo Bentancur , exatamente o oposto de Somos todos iguais nesta noite, no entender deste aprendiz os dois melhores livros de contos lançados no ano que passou.
Em ambos percebemos a opção pela emoção, pelo exame minucioso das questões que a infância suscita, para o bem e para o mal, da evolução da expectativa ao derretimento das ilusões. Conseqüência: a dor inevitável do amadurecimento. Se em A solidão do diabo a surpresa é resultado da quebra da lógica pelo inusitado na maioria das vezes, em Somos todos iguais nesta noite, o estranhamento resulta de sabermos que a perspectiva do amor, da ternura, não está de todo embaçada.
Apesar das diferenças que os coloca nas extremidades, mas que também os aproxima devido ao tratamento dispensado aos seres humanos, a multidão na fila. Para os personagens de A solidão do diabo, a vida vale pouco ou quase nada. O exemplo é a mulher que decide se matar e se joga na frente de um ônibus, mas o motorista consegue frear a tempo. Frustrada, entra no mesmo ônibus. “Se não a matou que ao menos a leve até o centro.” Para os personagens de Moutinho, a vida dá a impressão de valer muito, mas também dá entender que eles julgam não merecê-la.
No conto Rosa noturna, o travesti Teresa precisa realizar cinco programas para efetuar o pagamento das contas. Vem o primeiro e dá tudo certo, com o segundo também, no terceiro o leitor já não se agüenta na expectativa da desgraça. Não ocorre. Surge o quarto e continua dando tudo certo pra Teresa. Então o leitor, já sentindo cheiro da tragédia, reserva todas suas energias para o quinto que não pode falhar. Mas falha. E Teresa conclui sua noite de trabalho com objetivo alcançado e algo mais.
Num ato repentino, o homem escancarou a porta do carro, atirou as flores no chão, engatou a chave e arrancou de forma brusca. Os pneus gritaram por ele.
Teresa então notou que, com a rispidez da queda, uma rosa se desgarrara do buquê. Ela se abaixou, pegou a rosa e, ainda agachada, inflou o rosto num sorriso, imaginando quem seria enfim o destinatário que nunca receberia aquelas flores.
Recorda que no começo falei em anticlímax? Pois bem!
Fator de estranhamento e ao mesmo tempo grande qualidade dos contos de Moutinho é a ausência de impactos. As alegrias, as frustrações, as surpresas e as resignações se dão na maciez rotineira do dia-a-dia tão familiar a todos. No entanto, convém um alerta: o autor não busca confundir realidade com literatura, embora as cores e as luzes sejam verdadeiras.
Pra resumir: o livro de Bentancur e o de Moutinho salvaram o gênero de um grande vexame em 2006, o que publicaram de abobrinha no quesito conto foi constrangedor.
Voltando a Somos todos iguais nesta noite, temos 20 contos divididos em duas partes, Iguais e Noites, entremeados por vinhetas ou máximas de grande impacto moral, obviamente, e lírico, mas que fazem com que resida nelas o único problema, probleminha, porém, grave do livro. Esses “minutos de sabedoria” jogam por terra a sutileza dos contos, acabam estabelecendo julgamento quando no conto o autor estava apenas interessado em mostrar. Extremamente desnecessárias, as tais vinhetas jogam baldes e baldes de água fria na sabedoria dos personagens, que cada um a seu modo acaba criando métodos próprios para lidar com ausências, atrasos e surpresas.
O autor conseguiu um equilíbrio perfeito entre seus contos, não fossem aqueles malditos “minutos de sabedoria”, teríamos um livro perfeito. Destaco alguns que considero antológicos e recomendo aos professores das oficinas literárias, por favor, apresente-os aos seus alunos para que possam constatar o quanto o gênero ainda permite de criatividade.
No conto Passeio em família, o pai na “voltinha de estréia” do carro novo desfere um tapa na coxa do filho por pensar que este tivesse batido na irmã. Desfeito o equívoco, pedido de desculpas. O que podia ser uma besteirinha arranhou o coração do menino e as desculpas não foram suficientes para que a coxa, agora adulta, deixasse de arder.
Em Fogos a mulher relata como conheceu o homem da sua vida. Como tudo se deu depois do primeiro telefonema, casamento, logo em seguida o filho, depois a neta. Quando o leitor se acostuma com toda harmonia, a resignação: “Poxa, ele bem que podia ter ligado”.
Desfile é um conto repleto de tensão do começo até quase seu final. Dona Dita, a costureira que está ficando cega, atrasou a entrega das fantasias para o desfile da escola de samba. Enquanto o final não acontece, pairam duas suspeitas: perfeccionista, e por isso a demora, ou então a velhice, está ficando cega e combina as cores pelo som, que não permite atender a demanda. Na verdade, não se pode desprezar nenhuma das possibilidades. Missão cumprida, Dona Dita promete ir ao desfile. Mentira, prefere ficar em casa e assisti-lo pela televisão. A felicidade da sua escola é a sua felicidade.
No conto Jujuba verde, uma menina espera em frente à televisão a chegada de um cantor romântico. Mentira criada e sustentada pela mãe.
Com algum esforço, carregou-a até o quarto, onde deu-lhe um beijo terno, sussurrou um “boa — noite, a menina”, deitou-a na cama e apagou a luz.
— Amanhã ele vem — ainda disse, antes de sair.
Em Menino no escuro nos deparamos com Peter Pan pelo avesso. As fotos da infância e os brinquedos somem sem que o menino perceba que é a infância que está chegando ao fim. Enquanto a adolescência se anuncia, o menino permanece encantado pelas lembranças. Talvez mais tarde entenda as intenções de Dona Dita, do conto Desfile, quando disse que “lembrança até quando é boa dói”.
Inventivo e de uma áspera ternura é Dedicatórias. Está se tornando um hábito nefasto a tal da metalinguagem e resulta daí um borrão de repetições e chatices. Pois então, patéticos inventores do já sabido leiam e releiam Dedicatórias, aqui se transcendem as obviedades, o que se lê é pura criatividade. Coisa feita por quem é do ramo, manjam?
Um casal troca livros e o leitor percebe a evolução do romance pelos recados escritos na folha de rosto. E mesmo com livros a rotina impiedosa corrói o amor. Repete-se a cena inicial — com dedicatória num livro, o romance chega ao fim.
Das profundezas do azul pode ser encarado como o emblema da sensibilidade do autor. Funcionário que está para se aposentar, vive numa quitinete em Copacabana e vangloria-se de poder ver o mar da sua janela. No final do conto o leitor sofrerá com o protagonista no afã de realizar a engenharia que lhe permite ver o mar.
Somos todos iguais nesta noite é uma aula de literatura. É impressionante o quanto de surpresas a simplicidade encerra!